O Prazer de uma Batalha Desigual

Bélgica, próximo ao porto de Antuérpia, começo do inverno em 1916. Sob a chuva de balas inimigas há pouco mais de três dias, enregelados, sem comer nem dormir, ainda assim os últimos sobreviventes do terceiro grupamento resistiam sem esmorecer. Além de Gabriel Youth, deviam estar ali entrincheirados com ele três ou quatro soldados, todos de Manchester. A comida havia acabado há tempos, a água estava por acabar, e a munição idem. Do outro lado não sabiam quantos tinham, nem se estariam na mesma situação em que eles estavam. Não haveria outro jeito, teriam que sair da trincheira e atacar os alemães, do outro lado da terra de ninguém. John não concordava, deviam esperar por reforços, dizia, não sabiam se o grupamento alemão estaria melhor que eles, talvez estivessem com mais munição, e melhor alimentados.

“Por isso mesmo!” disse Gabriel, argumentando. “Se eles estiverem mesmo em melhores condições que nós, temos que tomar a posição onde estão, assim podemos ficar com suas armas e suprimentos, não te parece correto?” O soldado John não tinha como argumentar contra aquilo, fosse por não ter como rechaçar aquele pensamento, fosse por ser menos graduado que Gabriel, sargento de uma tropa com apenas quatro homens, mal-armados e desnutridos. “Okay, então preparem-se” disse o sargento apenas, com um estranho olhar e um sorriso meio selvagem, que o soldado John atribuiu a um princípio de loucura.

O sargento foi o primeiro a sair do buraco e correr desabaladamente pelo vasto território cheio de obstáculos, como arames farpados, restos de bombas e cartuchos deflagrados, cadáveres de soldados aliados e inimigos. Logo a trincheira inimiga estava ao alcance e ele começou a disparar com o fuzil, sem desperdiçar as últimas balas, acertando ao menos dois ou três soldados alemães. Tinha uma noção de que os companheiros estavam logo atrás. Os projéteis dos fuzis zuniam a sua volta, sem olhar para o lado, soube que John caiu, mas o tiro do inimigo não tinha sido fatal, ele não havia morrido ainda. Os outros soldados seguiam seu superior, aparentando ter a mesma bravura dele. Mas não era bravura que movia Gabriel a frente, era a adrenalina, o fato de saber estar em uma situação inferior a do inimigo, sem grandes possibilidades de sucesso, isso paradoxalmente o animava, e até o alegrava. O clique seco do fuzil, completamente descarregado, o fez gargalhar e dizer a si mesmo: “Que se dane, isso é ridículo!” Continuou em frente, arrancando a baioneta do fuzil, jogando-o fora e empunhando a lâmina quase sem fio como a um punhal. O alemão de pé na boca da trincheira inimiga, tentava desesperadamente recarregar seu rifle, e não viu o que o atingiu, quando, tal qual um puma selvagem, Gabriel se atirou sobre ele, gritando.

Curioso como fora se lembrar daquela batalha desesperada agora, lembrou-se de que naquela manhã fria e úmida, na Bélgica, há tanto tempo, a sensação de estar em inferioridade não o atemorizara, como a seu colega, John, mas o deixara bastante excitado. Agora a situação era outra, a garota era um pouco mais baixa que John Stevens, mas não parecia temerosa como ele, e tinha uma forma física e uma força admiráveis. O próprio Gabriel esperou por muito tempo pela oportunidade de reencontrar com os irmãos McCulling, que sentia antecipadamente a excitação por confrontá-los novamente. O fato de terem se reunido aos desafetos da garota valente que bufava de raiva e rilhava os dentes a seu lado lhe animava ainda mais para a batalha que estava prestes a começar, ali na beira da praia, naquela quente noite de lua cheia. Sentindo-se meio que hipnotizado, como se incorporasse um espírito, ou aquele puma selvagem voltasse a dominá-lo, enchendo-o de uma força tão forte que fazia seu corpo todo formigar, como se fosse explodir, realmente, levantou a mão e tocou o ombro da menina. Viu que a assustara um pouco, e cogitou se não estava lhe parecendo louco, quando olhou para ela. Os olhos dela eram claros, verdes da cor do mar, límpidos demais para esconder qualquer pensamento ou emoção, praticamente. Antes de soltar seu ombro e preparar-se para receber o primeiro golpe, com o sorriso selvagem de felino, disse a ela: “Fica esperta, que o forró já vai começar!”

Evangelina tinha quase certeza de que aquele a quem Edmonton chamara de Gabriel era louco, os seus olhos eram completamente negros e aparentemente sem brilho, como os dos vampiros da galera da Noite Preta, mas tinha uma estranha faísca, parecendo elétrica, entre o azul e o alaranjado. Seu sorriso era o esgar de um felino selvagem que fora solto da jaula. E o jeito como ele debochava da situação... sentiu-se um pouco intimidada, e admirada. Obviamente eles encontravam-se em desvantagem, mas parecia que para ele isso era ainda mais instigante! Sentiu o hálito forte e quente do Boi no seu rosto, e isso pareceu fazê-la despertar, e teria sido tarde demais para desviar-se do seu ataque, se Gabriel não se posicionasse agilmente, com seu braço entre os dois, ela mal o viu levantar, com uma só mão, o outro parasita pela garganta. Tudo que viu depois foi o gigante de tez tão escura quanto o boi que lhe conferia o apelido sendo disparado, como uma bala de canhão, numa velocidade absurda, caindo e deslizando sobre a areia úmida, muito adiante de onde estavam. Selminho e um outro, de cabelos claros como os de Edmonton, aparentemente mais velho que ele, vieram juntos e o seguraram, envolvendo-o com seus braços bastante fortes, porém, ele desvencilhou-se com imensa facilidade, e com golpes de mãos e pés que lembravam os movimentos do tai shi, os desequilibrou e os fez golpearem-se mutuamente, após, clarões como de raios que prenunciam um temporal saíram de suas mãos, com que golpeava a ambos, na altura do abdome, jogando-os um pouco para trás. Lançou um olhar para além dela e depois fitou-a nos olhos: “É sério!” disse ele, num alerta, “o forró já começou, menina!”

Sem olhar, Evangelina segurou o punho de Braddock, com a outra mão arrancando-lhe a adaga que ela perdera na luta em Manaus, e com a mesma golpeando-o no rosto, depois dando mais duas estocadas, no ombro e no peito, para que Ticado continuasse fazendo jus a seu nome de guerra. Sentiu a adrenalina subir absurdamente, de repente a expressão de Gabriel, chamando aquela contenda de “forró” fazia todo o sentido do mundo. E Evangelina sorriu, dando vazão a sua fúria. Com golpes certeiros, rasgou duas vezes o flanco de Edmonton, que viera a seu encontro, e não esperava que ela reagisse tão agilmente. A surpresa dele durou bem pouco, e o terceiro golpe de adaga foi aparado, sentiu ele agarrar seu pulso, torcendo seu braço e esmigalhando seu pulso. Em vez de gritar, ela rilhou os dentes e murmurou, alto o bastante para ser ouvida por Ed:

“Pode torcer meu braço o quanto quiser, isso não me faz nem cócegas!” Com a nuca, acertou o seu nariz com tanta força que ouviu o som seco que denotava que havia quebrado-o. A reação de Edmonton foi imediata, soltando seu braço, o tempo suficiente para Evangelina desferir mais dois socos, ambos no nariz, terminando de espatifá-lo.

Parecia que haviam combinado a troca de adversários, o quarteto de parasitas tentavam derrubar Gabriel, que parecia fazer o possível para prolongar a briga, pois em vez de golpear com toda sua força, os desequilibrava com malabarismos dignos do Circo Imperial da China e movimentos um pouco acelerados de tai shi. Após ter deixado Edmonton McCulling fora de combate, agora Evangelina tinha de enfrentar o mais velho, também o mais forte dos irmãos, Joe, com seus golpes ágeis e destruidores de boxe tailandês, que muito embora o tamanho quase igual ao do Boi, Evangelina conseguia repelir cada um de seus golpes. Lutava agora com mais destreza e frieza do que vontade, Ed é quem lhe havia enganado e ofendido, tê-la chamado de vadia havia doído muito mais que ter-lhe torcido o braço e quase quebrado o pulso. E Joe, apesar de lutar bem, e ser mais forte, parecia não conhecer a própria força, e ser um pouco desajeitado, o que facilitava para Evangelina ficar só se defendendo até cansá-lo, se assim o quisesse.

Mas Joe McCulling também não queria isso, e partiu com mais força e raiva para cima de Evangelina, que desviou de dois socos que passaram rente a seu rosto, e teve dificuldade para defender-se de uma canelada, até decidir-se em também colocá-lo fora de combate, com alguns golpes de capoeira; uma rasteira, um giro com o pé que o levantou, apoiou-se sobre as mãos, girando e golpeando-o no ar com um giro de pernas, por fim terminando com uma pisada que o fez afundar na areia fofa, totalmente sem forças.

Da Noite Preta, só o Boi continuava de pé, tentando derrubar sozinho Gabriel, que o levantou com dois cruzados de boxeador, e antes que caísse no chão, acertou o gigante amazonense bem no meio do peito, com o punho fechado, num golpe tão forte, que o clarão pareceu atravessar-lhe o peito, como o tiro de uma pistola a queima-roupa. Quando o Boi da Estrela caiu a seus pés, não estava apenas desacordado, mas sim morto, os olhos esbugalhados lentamente perdiam o negror, e seus olhos castanhos escuros apareciam novamente.

O ar de repente pareceu ficar mais frio, um vento gelado soprou, vindo do mar, a noite tornou-se mais escura, com a lua escondendo-se por trás de pesadas nuvens. Os outros integrantes da gangue pareciam não acreditar nos seus olhos, Boi da Estrela estava caído na areia, imóvel, os olhos arregalados fitando o espaço, sem o estranho negror que identificava os olhos de um parasita, e mais opacos que antes, quase como os de peixe estragado. Evangelina, boquiaberta, também parecia não acreditar em seus olhos. Ouvira algo como um tiro ao mesmo tempo que Gabriel golpeava o líder da galera, e sentiu como se o soco fosse no seu peito. Sentiu as pernas bambearem, de uma forma que não entendia direito, levou a mão ao peito, sentindo que seu coração queria saltar para fora do peito, e teve uma estranha sensação, como se água tivesse molhado sua blusa.

Gabriel provocara a explosão pela terceira vez, quando golpeou o peito de seu oponente, o impacto tinha sido de uma marretada, implodindo o coração de Boi da Estrela, e terminando por matá-lo. Percebeu que os outros integrantes da gangue haviam parado, viu dois dos irmãos McCulling caídos no chão, pouco atrás de si, postos fora de combate por Evangelina. Mas não vira, em momento nenhum, desde o momento em que a luta começou, James McCulling atacar. Olhou para todos os lados, tentou ver qualquer faísca de shi que desse sua localização na praia, até que seus olhos bateram na garota, viu-a segurando o peito, tão surpresa com o que ele fizera, que não percebia o sangue escorrendo profusamente e encharcando seus dedos. Correu até ela e a segurou num dos braços, quando ela perdeu o equilíbrio, evitando que caísse na areia, Evangelina não entendia porque estava fraca, só lhe perguntava com um olhar vidrado como ele fizera aquilo. “Eu ouvi, quando você socou ele”, disse, com a voz enrouquecida, “como se fosse um tiro...”

“Olha pra tua mão, menina”, ouviu-o dizer com certa dureza no tom de voz. Ele segurou sua mão com firmeza e a levantou diante de seus olhos. “Não é como se fosse um tiro, isso FOI um tiro!”

Evangelina viu seus olhos embaçarem-se, viu o sangue, teve então consciência da ferida de bala, sentiu a cabeça rodar, a visão turvar-se e por fim desfalecer nos braços de Gabriel.

Mais tiros, balas zuniam em torno dos dois, brilhando intensamente, balas de prata, como a que ferira Evangelina. Só podia ser o irmão ausente dos McCulling, Jesse James, protegido pela escuridão, atirava com um revólver Colt, calibre 44”. Gabriel praguejou, pois não poderia deixá-la ali e ir atrás do sanguessuga covarde que escondia-se nas sombras, tinha que tirar Evangelina dali. A levantou nos braços e saiu da praia, em disparada, ouvindo os estampidos do revólver e o zunido das balas de prata ficando cada vez mais pra trás.

Quando Gabriel e Evangelina estavam bem longe, Jesse James desceu a duna onde havia se escondido, chamou os três integrantes da galera da Noite Preta, e disse: “Ei! Me ajudem aqui, vamos levar Ed e Joe lá pra casa...”

“Mas tu é muito folgado, gringo!”, ouviu Selminho dizer, “Ficou escondido até agora, deixou nosso brother morrer, aí vem querendo dar ordens, 'coé'?”

“Fica frio, man”, disse Braddock, conciliadoramente. “Bora, o gringo tava cuidando da nossa retaguarda, a gente vai pegar eles, não viu como aquele gringo saiu correndo, todo preocupado com Evangelina? A gente acerta as contas com eles depois... bora!”

Ayrton Mortimer
Enviado por Ayrton Mortimer em 06/11/2009
Reeditado em 09/11/2009
Código do texto: T1908923
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.