Não pode ter sido suicídio
Contra fatos não há argumento; este fato desmentia o adágio: argumentava-se o fato. A grande verdade é que a roupa chamuscada, resíduos de pólvora na mão e o ângulo do tiro afiançavam um suicídio – fato; o segundo tiro no corpo sugeria um homicídio- argumento.
As evidências mostravam que o tiro relativo ao suicídio fora fatal, acertara o coração em cheio, não havia o que se contrariar, o segundo tiro tornara-se apenas um complemento...mas intrigante. O cadáver havia dado um segundo tiro? Alguém iria atentar contra uma pessoa morta?
A vítima, uma pessoa realizada, sem que apresentasse sinais de alterações nervosas, casada, situação financeira estabilizada, um casamento sólido e uma filha linda de 5 anos; o marido, um dentista conceituado, não jogava, não tinha amantes e só se excedia na bebida em esporádicos finas de semanas, em reuniões familiares.
O corpo fora encontrado pela faxineira, que prestava serviços à família, quinzenalmente, e teria sido a faxineira quem chamou a polícia. Ela uma senhora, viúva de, aproximadamente, 45 anos, apresentou-se humilde, mas impecavelmente vestida, afinal ainda não havia iniciado suas tarefas, que poderiam desfazer uma impressão de extrema higiene pessoal, ou roubar da serviçal o suave aroma de alfazema. Segundo seu relato, a porta da frente não havia sido arrombada, mas, estranhamente, não estava trancada.
O marido havia saído de casa as 7 horas da manhã, deixando na cama a esposa e no outro quarto a filha, ambas ainda dormiam.
O corpo fora encontrado as 8,0h, quando chegou a Olga, faxineira, que não vendo sinais da patroa, na cozinha, percebeu algo de anormal, pois sempre era recebida pela dona da casa, que distribuía as tarefas do dia.
Indubitavelmente, o marido era o primeiro suspeito, as bebidas nos churrascos semanais desagradavam a esposa; ele ficava um tanto inconveniente sob os efeitos do alcool e, na semana que antecedera aos fatos, a discussão entre o casal foi percebida por todos; mas suspeito do que, não havia sido um suicídio?
Ele reiterava que deixara a esposa tranquilamente dormindo, e nada de anormal poderia sugerir uma tragédia. As discussões da segunda-feira, pós-churrasco, não dariam a ele motivos para forjar um suicido, muito menos praticar um homicídio,..era inquestionável a afeição que sentia pela esposa, agora morta, mas como se fosse bater um escanteio, todos os olhares recaíram-se sobre o cônjuge, seria o predador natural, assim foi colocado na berlinda: motivo fútil, ocasião real.
Olga colocava-se, naturalmente, como a segunda suspeita, encontrava-se no local do fato, porém suas baixas diárias não davam oportunidade a um homicídio, existem outras formas de se pedir aumento....presume-se.
Quando interrogada, verificou-se que a faxina, como profissão, era quase uma marca genética, em seu currículo mostrava, reportando, como referência, que as mulheres de sua família também foram faxineiras, isto revelava qualificação, capacidade profissional.
Usando mangas longas, numa manhã de muito calor, revelou ao detetive, após detalhado interrogatório, que a tradição familiar não resumia-se só no aspecto profissional, o uso de drogas também esteve presente em antepassados e colaterais, na vida da faxineira, picadas nos braços deixavam marcas indeléveis, e um levantamento da vida pregressa confirmara a habitualidade, da família, na pratica da faxina.
Uma irmã de Olga, já falecida, era usuária de entorpecentes e já havia trabalhado na residência do crime ou suicídio que estava sendo, agora investigado.
Há 4 anos atrás, a irmã de Olga, que trabalhava para a mesma família, fora flagrada, pela dona da casa usando drogas, quando limpava o quarto da criança, à época com apenas um ano de idade. A mãe, numa atitude precipitada gritou, xingou e chamou a polícia e o fato teve desdobramentos trágicos: prisão, vergonha para a família da drogada, penalidade e de resto uma ficha corrida negativa para quem trabalha com famílias.
Uma superdose colocaria um fim naquele fato ocorrido há 4 anos, a vergonha e a promessa de uma vida sem futuro levara aquela faxineira à morte, e despertou o desejo de vingança na irmã.
Na investigação atual, Olga vem a revelar que, com uma ficha de emprego para uma agência de trabalho perto do local onde os fatos se desenvolveram, no anonimato conseguiu uma vaga na casa objeto de seus planos, e na manhã daquele dia, viu a oportunidade se apresentar, chegando para o trabalho,foi até o quarto da criança e a levou até o quarto da mãe, Para realizar seus propósitos, ela havia chegado mais cedo, encontrando as pessoas da casa dormindo, acordou a dona da casa, e, estando com a criança no colo e com a arma na outra mão exigia vingança, queria, literalmente, ver sangue. A criança tornara-se refém, e a mão sendo coagida e ameaçada; entre a morte da filha, na sua presença, e a própria morte, a mãe da criança optou pela segunda alternativa, pegando a arma do marido, numa gaveta ao lado da cama, atirou no coração.
A tragédia teria terminado aí, mas o desejo de vingança ainda latejava em Olga, visualizou a possibilidade de, com um segundo tiro, incriminar o marido da suposta suicida. Cuidadosamente pegou o revólver da mão do cadáver, atirou pela segunda vez.. levou a criança novamente para o berço e foi para um banho, desfazendo-se de eventuais vestígios de pólvora pelo seu corpo.
Colocou a arma de volta à mão da vítima, certa de que um segundo tiro levaria o dono da casa a sofrer o constrangimento de um crime em família, pois ninguém acreditaria em um suicídio, onde fosse encontrado, na vítima, lesões provocadas por duas balas: todos perguntariam...como pode ter sido suicídio?