A Segunda Explosão - Luar Sobre a Ponte
Gabriel Youth já controlava bem a energia liberada a cada explosão de fúria. Já sabia que não só sua força aumentava até sete vezes mais, como também sua agilidade, seus reflexos e sua velocidade. Conseguia desenvolver, numa corrida em terreno plano, pouco mais de 80 quilômetros por hora. O impulso que podia ser tomado a tal velocidade lhe permitia saltar grandes distâncias, planando por alguns segundos no ar, dando a impressão a quem o visse de que voava como os pássaros – mas planar não é o mesmo que voar. Seus sentidos “vampiros” já eram mais fortes do que os sentidos “humanos”, mas após a explosão tornavam-se sensivelmente mais aguçados que a média dos vampiros, podia ver com mais clareza o “mundo invisível”, enxergar a grandes distâncias, no espaço e, algumas vezes, no tempo, perceber as auras nas pessoas, com sua força real, ou potencial, e a força desenvolvida. Toda vez que isso acontecia, sentia uma certa pena dos humanos normais – tanto potencial, tanta força, e o que conseguiam desenvolver estava tão abaixo de onde poderiam chegar. Perguntava-se se também estava desenvolvendo tudo o que podia.
Durante a manhã, nas montanhas ao norte de Hong Kong, na divisa com o território do império Manchu, em 1934, mestre Ching Hong e Gabriel praticavam o tai shi, treinavam combates marciais, e com armas. No início dos treinamentos, Gabriel desequilibrava-se facilmente, física e emocionalmente, e logo tinha as explosões de fúria. Agora, já tinha um melhor controle, sabia manter algum controle emocional, mas não como manter a força extra a não ser por alguns minutos. Toda vez que a explosão manifestava-se, via a aura em torno de Ching Hong, a energia a qual o mestre dava o nome de shi, via que o velho chinês havia quase alcançado todo o potencial de sua força interior. Após a força extra esvair-se por completo, pela milionésima vez e o mestre acertar-lhe uma ou duas boas bordoadas, Gabriel abordou o assunto que por vezes lhe preocupava:
“Ching Hong, quando tenho uma explosão de fúria, percebo que meus sentidos se tornam mais aguçados. E consigo ver o shi em torno das pessoas. Você também o vê, quando provoca a explosão?”
O mestre chinês sorriu, aparentando alguma surpresa: “Realmente, somos parasitas bem peculiares, nós dois” disse, rindo-se. “Também vejo o shi, mas todo o tempo, não apenas quando provoco explosões, Gabriel. Talvez você também o consiga, com o tempo. Acontece que na China, sempre ouvimos falar que temos uma força interior, o shi, e talvez por isso para mim não seja tão estranho ver aquilo que sempre tive consciência de existir. Acredito que você esteja agora tomando consciência dessa força, e do potencial ao qual pode chegar.”
À beira mar, no Campeche, em Florianópolis, Gabriel lembrava a conversa que tivera com o mestre, seus ensinamentos, as tundas que recebera. Apenas duas vezes conseguira equiparar-se a Ching Hong, a primeira foi no mesmo ano de 1934, quando descobriu que podia provocar mais de uma explosão. Com a primeira explosão de fúria, conseguia ver o shi do oponente, as cores daquela onda de luz que envolvia o velho mestre, como alguns pontos trocavam de cor e ficavam mais escuros, enquanto que pontos de seu corpo, como os punhos, pernas, pés, assim como um ponto na testa, no meio e um pouco acima dos olhos, ou no meio do peito, difundindo-se para a esquerda, iluminavam-se com ondas fortes, parecendo raios elétricos, de cores claras. Assim, podia prever e evitar, ou repelir, cada golpe de Ching Hong. Ao repelir um soco do velho mestre, seus punhos encontraram-se, a força de repulsão provocada jogou o chinês para trás. Mas Gabriel, surpreso, olhando para a própria mão, ficou parado, no mesmo lugar. Distraído, não percebeu a rápida aproximação do mestre, que com um encontrão de ombro, o jogou para trás, tão rápido quanto se um canhão o tivesse disparado, caindo pesadamente sobre uma rocha, que quebrou-se facilmente com o impacto. O rapaz lentamente se levantou e espanou a poeira com as mãos, nada sentiu e ainda encontrava-se intrigado com tal força. Ao Ching Hong aproximar-se num salto, perguntou-lhe: “ O que aconteceu?”
“Não sentiu a segunda explosão, Gabriel Youth?”
“Segunda explosão?”, repetiu Gabriel. “Você quer dizer que provoquei uma segunda explosão, sem perceber?”
“Por que a surpresa? Se da primeira vez a explosão foi provocada sob uma alta carga emocional, sem que você percebesse, esperava que fosse diferente com a segunda?”
“Talvez...” disse o rapaz, com um sorriso de incerteza. “Não esperava que pudesse provocar a explosão logo após já tê-la provocado!”
O mestre acenou afirmativamente com a cabeça. “Eu consegui provocar sete explosões consecutivas. Estava testando minha capacidade, para saber qual meu limite. Provavelmente você também tem essa capacidade. Mas não é bom forçar demais o corpo. Essa energia pode ser demais para suportar.”
“Eu entendo” disse Gabriel em resposta.
Até hoje, não sabia se também podia alcançar as sete explosões, mas não se preocupava com isso, até hoje não precisou sequer provocar mais que uma explosão. Via o shi das pessoas todo o tempo, não mais sob o efeito da força extra da explosão, percebia as (às vezes) sutis diferenças entre o shi humano normal e o shi vampiro – ou dos invisíveis. Pelo shi, podia perceber as flutuações de humor das pessoas. Mesmo com o belo sol à beira mar, o céu limpo, sem uma nuvem, a temperatura agradável e a brisa suave, via muitas pessoas que não encontravam-se felizes, ou que sentiam-se tristes, amarguradas, etc. Se alcançaram, ou não, o potencial que tinham, era o de menos, ele cogitava as sensações que as pessoas a seu redor podiam estar tendo. Apenas o shi das crianças parecia não estar contaminado por tais flutuações de humor, depressões, etc, e isso lhe trazia uma estranha alegria melancólica.
Evangelina estava impacientemente esperando que o sol vencesse a neblina seca, que por volta das 8 horas baixara sobre o centro histórico da cidade. Quando os raios luminosos do astro se insinuaram pela janela de seu quarto, no pequeno porém aconchegante hotel, seus olhos, seu sorriso, dentro de seu peito sentiu iluminar-se e encher-se de calor. Iria rever o homem da sua vida, o homem fabuloso por quem sentia-se perdidamente apaixonada, logo mais tarde, à noite. Mas já animava-se por antecipação, mal podia esperar por mais um encontro com Edmonton, pensava o tempo todo que estava sozinha, ali naquele quarto de hotel, no seu olhar, nos seus olhos que mudavam de cor, conforme a lua, no seu sorriso límpido e amorável, na sua pele branca, tão suave, até delicada, sempre bem barbeada. Seu pensamento desviou-se um pouco, e ela lembrou-se do porquê de ter ido a Florianópolis, sentiu-se de certa forma incomodada, tinha uma promessa a cumprir, e tinha que encontrar a maldita galera que provocara tanta desgraça meses antes, provavelmente estariam fazendo o mesmo por ali. Pensou que não tinha muitas pistas do paradeiro dos comparsas de Braddock, e Edmonton fora tão gentil em ajudá-la, deixar de lado suas férias e sua família para lhe guiar pela cidade, sem nem saber do que ela queria fazer... lembrando-se do belo rapaz, novamente esqueceu-se do acerto de contas, só conseguia pensar nas mãos dele a segurar as suas, nos seus braços fortes e gentis, ao mesmo tempo, a segurá-la e aconchegá-la junto de si, lembrava-se de seu coração batendo compassadamente junto dela. Seu hálito era perfumado, ele era perfeito, cavalheiro à moda antiga, às vezes parecia ser de outros tempos, tão diferente dos outros homens. Evangelina sentia-se totalmente encantada por ele, e não conseguia, mesmo que quisesse tentar, tirá-lo da cabeça.
À tarde foi banhar-se, ligou a ducha e deixou-se relaxar sob a água quente que escorria por seu corpo, seu rosto e seus cabelos, riu-se ao imaginar que aquela água eram as mãos dele a percorrer seu pescoço, seus ombros, seus seios, suas pernas, suas nádegas... sentiu uma leve excitação que não sentia a muito, muito tempo. Deixando a água quente cair por seu corpo, tocava-se e acariciava-se, imaginando as mãos de Edmonton a tocá-la, acariciá-la, seus lábios a beijar todo seu corpo. Aumentou o ritmo dos toques, e chamava o nome dele, cada vez mais alto, repetindo “te amo, me possua, eu sou tua...”, até sentir os espasmos, a doce sensação de prazer. Terminou o banho, secou-se, penteou os cabelos lentamente, usando um pente de osso que lembrava-se de ter desde menina bem pequena, e um creme especial, enquanto penteava-se pensava nas mãos de Edmonton a acariciar seus cabelos suavemente, perfumou todo o corpo, provou uma dúzia de peças de roupas, com uma dúzia de combinações cada, até decidir-se por uma bata leve e folgada, sem mangas, e uma calça jeans azul turquesa. Preocupava-se ainda se o agradaria, se ele a acharia bonita, naquelas roupas. Riu-se de si mesma, de repente, dizendo a si mesma: “Maninha, você está pensando como uma adolescente! Você só parece ter 17 anos, Evangelina, você tem mais que dezessete!” Sentiu um arrepio subir-lhe a espinha, pensava que um dia teria que falar a verdade a Ed, temia que ao saber o que ela era realmente, talvez ele se assustasse e se afastasse dela. Balançou negativamente a cabeça, voltou a falar consigo mesma: “Não vamos pensar nisso agora. Não é o momento de nos preocuparmos com isso ainda, vamos deixar rolar...” Examinou-se no espelho mais uma vez, acenou positivamente e saiu, para encontrar-se com Edmonton. Voltou e examinou-se mais umas três vezes diante do espelho, para então, aí sim, sair, já atrasada, ao encontro do rapaz.
Encontrou Edmonton, já impaciente, em frente a catedral a sua espera. Até sua impaciência parecia a ela maravilhosa e romântica. Pediu desculpas pelo atraso e ele sorriu-lhe, um sorriso iluminado e franco, que lhe encantava. Beijou-a e ela sentiu as pernas tremerem levemente, o coração disparar, a cabeça rodar, parecia-lhe que uma borboleta se debatia em seu estômago. Seu perfume inebriava-a, o toque de sua mão na dela parecia aquecer seu corpo todo.
“Para onde vamos?” perguntou ela.
“Conheço um lugar, com uma vista fantástica da cidade, quero que você venha comigo” disse ele, sua voz soava melodiosa, seu sotaque inglês lhe parecia tão belo.
A noite demora a chegar nessa época do ano, eram quase oito horas da noite, e o sol recém estava se pondo no continente distante. As luzes de Florianópolis e da própria ponte Hercílio Luz acendiam-se, a lua aparecia por entre as nuvens avermelhadas pela luz crepuscular do poente. A brisa do mar soprava um pouco mais forte, o calor do dia dava lugar às temperaturas mais agradáveis da noite, mas dentro de si, Evangelina sentia um calor escaldante, mais abafado que o das noites à beira do Rio Negro, em Manaus, no verão. Um calor muito forte, mas que lhe fazia sentir-se muito bem, estando ao lado daquele homem, de sorriso doce e meigo, de olhos que prateados como a lua, simplesmente encantadores, que só viam a ela e mais ninguém. Sentia-se tão segura, aconchegada nos braços de Edmonton, olhando a lua, e as luzes da ponte refletindo-se no mar de ondas que quebravam-se num ritmo calmo e acolhedor, como só a música feita pela natureza. Ed perguntou-lhe, parecendo encabulado:
“Evangelina, você gostaria de conhecer minha família?” Ele lhe falara que sua família tinha uma casa de veraneio, em Jurerê, no norte da ilha. Evangelina fitou Edmonton nos olhos, o frio na espinha da manhã passou rapidamente outra vez, mas ela procurou não demonstrá-lo. “Que foi?” perguntou ele, com um olhar límpido e transparente.
“Você tá falando sério? Quer que eu conheça tua família?” ela perguntou de volta. Ed balançou a cabeça, confirmando.
“Sim... quero apresentar minha namorada para meu pai e meus irmãos... a não ser que você ache cedo demais!”
Evangelina gaguejou, apressando-se em não desapontá-lo. “Nã... não... eu não sei... você disse... tua namorada?”
Edmonton riu divertido: “Sim! Por que, não sou seu namorado?”
“É sim!” apressou-se novamente ela em confirmar. “É que... eu tenho um pouco de receio... talvez seu pai ache cedo demais... eu sei o que pensam das brasileiras também... ai, tô falando um monte de bobagens!” concluiu, com um riso nervoso. Ed sorriu-lhe, com um olhar carinhosamente desaprovador.
“Minha família não é desse jeito... então, se você achar que é cedo demais, que devemos esperar um pouco mais...”
“Não... tudo bem! Eu... gostaria muito de conhecer tua família! Aceito sim...” disse ela, rindo como uma menina, e desaprovando-se por isso, baixando os olhos. Edmonton segurou seu rosto e fitou-a nos olhos, fazendo seu coração disparar ainda mais descompassadamente.
“Não se preocupe”, tratou de tranqüiliza-la, “minha família vai gostar de você... vão amá-la.” Isso já pareceu a Evangelina um certo exagero, mas não discutiu mais. Abraçou-o e deixou-se abraçar, sentindo o seu coração bater, como se lhe desse imensa segurança. Não percebeu o estranho brilho malicioso no olhar de Edmonton, enquanto este lhe afagava os cabelos. “Meus irmãos vão gostar de você mais do que imagina, criança”, pensou ele com um sorriso zombeteiro.