Dossiê do caso Maria de Lourdes

DOSSIÊ DO CASO MARIA DE LOURDES

Hoje, 01 de setembro de 2008, às 22hs e 45 min, inicio o relato dos principais acontecimentos relacionados ao assassinato da universitária Maria de Lourdes, que ocorreu no dia 28 de agosto deste corrente ano. Todos os acontecimentos relatados foram testemunhados por mim, Saulo Palemor, e serão descritos conforme as lembranças que tenho de tudo que vi e ouvi a respeito deste assassinato, até o momento, insolúvel. Das reflexões sobre o crime cheguei à conclusão que o assassino tentou me incriminar e tendo falhado, agora busca tirar minha vida. Uma vez que amanhã a turma de formandos em biologia, da qual eu faço parte, estará fazendo uma pesquisa na estação de tratamento de água construída pela Companhia Vale do Rio Doce aqui na cidade de Dom Eliseu, penso que corro grande risco de ser assassinado, já que a estação fica em uma área isolada, afastada 5 km do centro urbano e constitui um ótimo local para uma queima de arquivo. Por este motivo deixo os relatos que agora seguem para que o criminoso, ainda desconhecido, não escape da justiça se eu vier a morrer na tentativa de descobri-lo e desmascará-lo.

PARTE 1- O CONVITE

No dia 28 de agosto, às 9hs e 30 min, eu retornava do intervalo de uma aula sobre as formas microscópicas de vida aquática, no campus da Universidade da Amazônia, em nossa cidade quando, ao abrir meu caderno, caiu em meu colo um convite com os seguintes dizeres: FESTA SURPRESA - Você esta convidado para uma festa surpresa que acontecerá na quadra de esportes Engenheiro Eduardo Lins, às 19hs do dia 28 de agosto. - Não perca. Olhei em volta para ver se descobria quem me tinha convidado, mas todos estavam organizando seus materiais para reiniciar a aula e apenas Wesley olhou diretamente para mim com um leve sorriso no canto da boca.

As 11hs a aula terminou e, na saída, não consegui conversar com o Wesley para perguntar sobre o convite. Remy, outro colega de sala, me viu com o convite na mão e perguntou.

- E ai garoto, você vai à festa na quadra hoje?

- Não sei. Tenho que preparar um relatório para entregar amanhã ao professor.

- Se for o relatório de estágio eu fiz dois e posso te passar um deles se você quiser.

- Eu quero sim, mas não sei se vou a esta festa, nem sei quem me convidou.

- Deixa de cisma, estas festas universitárias são assim mesmo, cheias de segredos. Vai lá e divirta-se um pouco.

- Pensando bem, acho que vou mesmo. Estou precisando me distrair um pouco.

Ao sair fiquei pensando sobre o Remy, ele já tinha dificuldades para pagar o aluguel, a mensalidade da faculdade e sustentar a família e, ainda por cima, agora tinha de bancar o tratamento médico de seu pai que era muito caro, mas mesmo assim se dispunha a ajudar e incentivar seus colegas de sala, inclusive eu que fiquei um ponto à frente dele no processo seletivo e ganhei a bolsa de estudos ofertada pela faculdade para o candidato de maior nota. Esta bolsa diminuiria bastante seus problemas financeiros e ele não estaria correndo o risco de parar seus estudos.. Um cara legal daquele merecia uma sorte melhor.

PARTE 2- O ASSASSINATO

Na hora marcada no convite eu estava em frente à quadra, mas estranhei que não houvesse movimentação alguma por perto nem barulho algum. A rua estava vazia com exceção apenas de uma caminhonete estacionada com o motor ligado a uns trinta metros. Entrei e vi apenas Maria de Lourdes enfeitando a quadra para uma festa.

- Saulo, você veio na hora certa, eu acho que não vou dar conta de terminar a decoração para a festa de amanhã sozinha. Vem dar uma mão aqui. Eu acenei positivo. Estava com vergonha de dizer que havia confundido a data da festa.

- Por que não pediu ajuda Lourdes?

- Porque queria fazer uma surpresa para meu marido e quando muita gente fica sabendo o aniversariante sempre descobre, por isso só vou convidar os alunos da universidade amanhã.

- É mesmo, respondi, mas devia ao menos ter convidado um ou dois talvez pra ajudar.

- Eu chamei um, mas ele não veio. Vamos deixar de conversa e trabalhar. Traga o TNT que está no vestiário pra cá.

Eu entrei no vestiário pensando se ela não desconfiou pela minha roupa que eu vinha para a festa. Tirei o convite do bolso e verifiquei a data, a festa estava marcada para aquele dia mesmo. Achei que, talvez, Lourdes houvesse se confundido, mas não entendia como o convite veio parar em meu caderno. Estando refletindo sobre o assunto, ouvi um tiro e corri para onde Lourdes estava, quando me deparei com uma terrível cena: Lourdes no chão, estática com a mão sobre o peito, provavelmente já morta, e o seu marido abraçado ao corpo chorando e olhando para mim com os olhos em brasa. Tendo lançado mão de um revólver que trazia a cintura, percebi logo que ele me tinha como o assassino de sua esposa e corri. Sai por uma janela ao fundo da quadra que dava para um terreno baldio. Enquanto corria ouvi mais um disparo e aquilo acelerou ainda mais minha carreira.

PARTE 3- O ÁLIBI

Quando sai à rua por trás da quadra, outro susto, a polícia já rumava a toda para o local do crime apenas um minuto após o assassinato. Minha cabeça estava a mil, não conseguia pensar direito. Entrei no quintal de um amigo que estudava comigo e morava ali próximo. Eu sentei à sombra de um cajueiro que lá havia, onde pude me acalmar um pouco. Pensei por uns 20 minutos que quando a polícia chegasse à quadra eu seria acusado pelo esposo da Lourdes de assassiná-la e logo eles viriam a minha procura, então, decidi conseguir um bom álibi urgentemente. Caminhei para frente da casa e bati na porta deste meu amigo.

Ao atender a porta, Denis espantou-se com minha presença, eu logo imaginei que ele já soubesse do ocorrido, morando tão próximo à quadra, e fiquei olhando-o por uns dois minutos, até que ele disse.

- Entra homem, demora um século para me visitar e ainda fica parado à porta com cara de jumento sem mãe. Não imaginam o alívio que senti com aquela ofensa. Entrei e me pus logo a arquitetar um meio de fazer do Denis minha testemunha de defesa. Fingi que estava atrás de um modelo de relatório para o trabalho de biologia e enquanto ele estava no quarto a procurá-lo, eu atrasei meia hora o relógio na parede da sala. Quando Denis retornou, eu lhe perguntei a hora para que ele gravasse na mente o falso horário em que estivemos juntos. Conversamos quase por três horas sobre diversos assuntos até que o telefone tocou. Novamente meu coração acelerou quando Denis largou o aparelho ao chão no meio da ligação, olhou para mim como um condenado olha para o pelotão de seu fuzilamento e disse:

- Uma desgraça! Nada respondi pensando que eu havia sido descoberto e tentando legitimar meu álibi me esforcei para manter a calma e perguntar.

- O que aconteceu?

- O esposo da Lourdes, depois de tê-la matado, suicidou-se na quadra de esportes. Minha cara de espanto foi muito boa para o meu disfarce, mas eu estava sinceramente surpreso com a conclusão da polícia sobre o esposo da Lourdes. A situação apesar de trágica tirava minha culpa e eu deixei-me cair sobre o sofá sentido uma mistura de alívio e nojo de mim mesmo por estar feliz com a morte daquele coitado. Já era tarde e decidi ir para casa.

PARTE 4- O BILHETE

Não tivemos aula no dia 29 e eu fui até a quadra antes do funeral para tentar descobrir o que havia realmente acontecido. Somente eu sabia que aquele homem não matara sua esposa e que provavelmente não havia se matado. O problema é que o assassino de ambos também sabia disso e provavelmente eu representava uma ameaça para ele apesar de não saber quem era. Quando cheguei ao local, vi Denis entrando na quadra e fiquei observando sem que ele me visse. Ele procurava algo entre os enfeites da festa e, tendo achado um papel, o pôs no bolso e saiu apressadamente. Segui-o até que, em uma rua deserta, ele rasgou o papel em pequenos pedaços e atirou-os ao lixo. Peguei-os, era um bilhete que levei para casa e juntando os pedaços reconstruí o seguinte texto: Lurdinha - eu não sei como pode desprezar meus sentimentos e voltar para este canalha que chamas de marido. Estou certo que sua união a ele não terminará bem para ambos. Escute o meu conselho e não reate o que ele mesmo partiu por ignorância. Espero de ti uma resposta positiva. – Daquele que sempre irá te amar. Naquele momento tive certeza de que Denis era o assassino, mas ele não assinou o bilhete que foi digitado e poderia ter sido feito por qualquer pessoa. Seria minha palavra contra a dele e a culpa poderia voltar-se para mim já que eu havia omitido até aquele momento que estive na quadra no momento do assassinato.

PARTE 5- A RECONSTITUIÇÃO

Voltei à quadra depressa para descobrir como Denis matou o casal. Próximo ao local onde Lurdes caiu morta havia um pequeno deposito de material de limpeza medindo cerca de 2 metros ² de onde o tiro poderia ser disparado, deste cômodo é possível visualizar a entrada da quadra de maneira que o assassino atirasse momentos antes da chegada de alguém sem ser visto. Provavelmente o marido de Lourdes ao ouvir o disparo correu ao encontro do corpo de sua esposa e automaticamente procurou pelo assassino. Neste momento, eu apareci à porta do vestiário e fiquei como culpado. Após minha fuga o assassino matou o esposo da Lourdes e trocou a sua arma pela do defunto para deixar parecer que fora um suicídio. Com certeza Denis havia voltado para sua casa enquanto eu me recuperava do susto na parte de trás do quintal.

Apesar de ter os motivos e meios para matar o casal eu não entendia porque me envolver nisto tudo, Denis era um dos amigos mais próximos que eu tinha e nunca chegamos a ter sequer um bate-boca.

PARTE 6- O FUNERAL

Fui ao funeral do casal, a turma toda estava presente e eu olhava Denis atentamente, seus olhos fixos em Lourdes apresentavam uma angustiante tristeza que me fazia duvidar de sua culpa no assassinato, mas de quem mais poderia suspeitar? A resposta veio rapidamente. Quando Pedro entrou no recinto todos começaram a murmurar e Wesley aproximou-se de mim e comentou:

- É muita coragem do Pedro vir ao funeral.

- Por quê? Indaguei.

- Tu não sabes que ele teve uma briga com Lourdes na escola por causa de uma interrupção que ela fez durante o trabalho que ele estava apresentando. Ele acabou reprovando na disciplina e agora será obrigado a passar 06 meses em Belém pagando a matéria se quiser graduar-se. Foi briga feia. Depois o marido de Lourdes foi a casa dele tirar satisfação e os dois se juraram de morte.

Esta informação desviou minha atenção de Denis. Pedro sempre fora destemperado no trato. Por várias vezes foi barrado na portaria da universidade por carregar uma pistola. Quando mais jovem participou de uma turma barra pesada da escola de ensino médio chamada oposição. Nosso contato era pouco, mas eu não entendo porque ele quereria me usar para uma vingança assim. O certo é que o assassino tem certeza de que eu sei que não foi suicídio e eu tenho que descobri-lo antes que ele decida fazer comigo uma queima de arquivo.

PARTE 7- A CONVERSA

O funeral acontecia na sala principal da casa e eu resolvi afastar-me um pouco dos suspeitos para ver se algum me seguia. Sentei-me próximo a uma sacada de onde ouvia sem ser visto duas empregadas do casal assassinado que conversavam:

- A fofoca só acaba com a vida das pessoas. Se aquele infeliz não tivesse vindo encher a cabeça do patrão de besteira ele não tinha ido àquela quadra e feito aquela besteira. Só mesmo uma carniça daquela para desconfiar que Dona Lourdes tivesse um namorado na faculdade e ia fazer uma festa para o amante. Com certeza, quando o patrão descobriu que a festa era para comemorar o próprio aniversário dele matou-se de arrependido. Aquele gago infeliz ainda teve coragem de vir ao funeral, que cretino.

Sinceramente eu ainda não tinha pensado até aquele momento como o esposo de Lourdes descobriu que a festa seria na quadra se era uma surpresa. Alguém planejou tudo para que ele a encontrasse comigo na quadra e nos matasse, pôs o convite com outra data em meu caderno e deu um jeito para que o marido de Lourdes ficasse sabendo e fosse à quadra. Naquele instante, lembrei-me bem da caminhonete estacionada do outro lado da rua. Eu pensava que estivesse com a Lourdes, mas era seu marido esperando para ver quem supostamente estava “namorando” com sua esposa. Como o único gago presente no funeral era Linsueiro, um playboy da nossa turma, a minha lista de suspeitos havia subido para três e sobre ele era a suspeita mais forte.

PARTE 8- O TRABALHO

Após o enterro á tarde, fui à casa de Remy pegar o relatório que me prometera. Ele disse que não o encontrara, mas ofereceu-se para me ajudar a elabora um e ficamos até às 9hs neste trabalho. Durante o tempo em que estive lá, ele puxou assunto sobre a morte da colega e perguntou se eu não fui à quadra naquela noite para a festa. Acho que eu já estava me acostumando a situações difíceis, pois consegui disfarçar meu nervosismo e disse que ficara na casa do Denis até bem tarde da noite. Minha vontade era esquecer aquela história e assim faria se não houvesse um assassino estudando na mesma sala em que eu estudava. Eu quis pagar a ajuda, mas Remy não aceitou. Agradeci, então, e fui para casa tentar dormir um pouco para estudar no dia seguinte.

PARTE 9- A AULA

No dia 30, às 7hs estávamos todos em sala. O clima estava pesado e o silêncio predominou até o intervalo. Eu fui o primeiro a retornar e quando abri minha mochila havia outro bilhete escrito assim: A festa ainda não acabou. Acreditem que eu senti uma alegria naquele momento, pois já desconfiava que o assassino tentaria me intimidar e passei tinta no zíper da minha mochila. Agora bastava descobrir quem estava com o dedo manchado da tinta. Olhei todos os dedos na sala e nada de tinta quando percebi que apenas Jessé não havia voltado do intervalo.

Sai em busca dele e encontrei-o na sala dos professores com um vidro de álcool na mão. Disfarcei que procurava um livro para o professor e depois que ele saiu perguntei a secretária o que ele queria. Ela disse que Jessé pediu o álcool para cheirar, pois estava com dor de cabeça.

Fiquei pensando se Jessé teria algum motivo para cometer aquela barbaridade e lembrei que ele fora muito prejudicado pela Lourdes quando ela assumiu a Secretaria de Educação. Ela demitiu-o e contratou o marido em seu lugar e por essa razão Jessé estava quase desistindo da graduação por não poder pagar a mensalidade. A Lourdes na verdade não era benquista na sala já que se comentava que a cota de bolsas ofertadas pela universidade era para contemplar os cinco primeiros colocados no processo seletivo e a ela usou sua influência política junto a UNAMA, que lhe concedeu as quatro bolsas para que distribuísse entre seus amigos mais próximos. Somente eu fiquei com a bolsa e os outros quatro candidatos mais bem colocados; Remy, Wesley, Jessé e Linsueiro tiveram que financiar seus estudos pelo Banco do Brasil para pagar as mensalidades do curso.

PARTE 10- A DESCOBERTA

O fato é que tenho vários suspeitos, todos com motivos e meios para cometerem o crime, mas nada que comprove sem dúvida quem seja o assassino; estou às vésperas de ir para um local em que é muito fácil se eliminar alguém sem deixar pistas e não posso dizer a ninguém o que está acontecendo.

Termino aqui meu Dossiê temendo que algo me aconteça e esperando que as mortes daquelas pessoas e possivelmente a minha não venham a ficar impunes.

Saulo deixa o gravador na escrivaninha e deita no sofá com o braço sobre o rosto. Sua mente gira indo e vindo do dia do assassinato até aquele momento tentando lembrar qualquer detalhe que lhe esclareça o caso.

Perto da meia-noite ele desperta agitado.

- É isso, como não desconfiei logo! Minutos depois ele sai em uma moto rumo à estação de tratamento de água que os alunos da turma de graduação visitarão no dia seguinte e por conseqüência também o assassino.

Duas horas depois ele volta e passa o resto da noite sentado no sofá pensando se não haveria alguma falha no plano que arquitetara para pegar o assassino, até que o ônibus da escola buzina em sua porta às 7hs e ele embarca silencioso como quem não tem muitas esperanças de retorno.

PARTE 11 - O DESFECHO

Assim que desceram do ônibus, o professor dividiu os grupos para percorrerem a grande extensão da estação de tratamento. Saulo logo notou que o assassino o seguia a distância, esperando uma oportunidade de agir. Afastaram-se ambos dos demais alunos e Saulo rumava para uma área que estava fora do roteiro descrito pelo professor. Entre o gigantesco maquinário da estação seguiam Saulo e o Assassino a poucos metros de distância um do outro até que o primeiro sumiu de vista próximo a um container que estava momentaneamente vazio. O assassino compreendera, então, que Saulo já descobrira quem ele era e acelerou o passo já com um revólver em punho, descendo por uma escada até o fundo do container onde ele imaginava que Saulo descera. Ao afastar-se da escada ouviu barulho, virando-se a tempo de vê-la acabar de ser retirada por Saulo e percebeu que caira em uma armadilha.

- Idiota! O que pretende fazer? Vai me matar?

- Não sou assassino como você. Quero que pague por seus crimes.

- Você não tem as provas que eu matei o casal. A polícia já encerrou o caso e eu não vou pagar pelo destino que dei àqueles infelizes. Mas eu vou ter mais prazer em te matar do que tive quando livrei o mundo daqueles dois estúpidos.

- Correção, eu não tinha provas. Está vendo aquela câmera ali? Está gravando tudo na sala de comando e eu vou já retirar uma cópia para a polícia. Assim que o assassino começou a atirar em direção a Saulo que se jogara ao chão para escapar da sua mira, houve um grande ruído. As comportas foram abertas e milhares de metros cúbicos de água jogaram o assassino contra a parede do container e esmagaram seu corpo com a pancada.

Saulo correu até a sala de comando para saber quem havia aberto as comportas duas horas antes do previsto, mas chegou e viu apenas uma sala vazia e escrito a lápis no painel de controle: A festa agora acabou e o lixo já foi recolhido.