+++ O MORRO DOS INGLESES +++
De SMELLO
Não era um morro comum, sua conformação geológica o distinguia dos demais, embora tendo densa vegetação, as rochas que existiam eram brilhantes, mais se refletiam quando o sol nelas transparecia.
A grande maioria de seus moradores se constituía da classe mais desfavorecida, vivia em humildes casebres, sem que desfrutassem do conforto da planície. Todavia, três habitantes se individualizavam pelas origens inglesas. Esses moradores pouca convivência mantinham com os demais e guardavam certa opulência, talvez imprópria ao local.
A aragem ali era constante, dando ao morro aprazível prazer em lá viver. Aquela teria sido a principal razão dos estrangeiros escolherem o lugar para fixarem suas residências. Conseguiram dar às suas moradas excepcionais condições de habitação, com água encanada, esgoto, luz e telefone. À frente das casas eram ornadas de canteiros com lindas flores, plantadas com terras adubadas, que subiram o morro em lombos de burros.
Os três trabalhavam na companhia concessionária de gás da cidade.
A comunidade mais pobre tinha dificuldade em dispor daqueles confortos, em especial um sistema de comunicação que pudesse ser utilizado no atendimento urgente de enfermos. Pretendeu que fosse instalada uma linha pública de telefone,sem êxito para a reivindicação. E, os ingleses não permitiam que qualquer vizinho usasse seus telefones, mesmo em momentos de urgência. Tais discrepâncias levaram a escolha de um líder que pudesse postular os benefícios,que proporcionariam significativas melhoras à coletividade.
Os ingleses, como eram chamados e conhecidos, dispunham cada um de dois cães ferozes, que impediam a aproximação de qualquer pessoa às suas casas, que dispunham de altas grades e portões, viviam dessa forma protegidos e isolados.
Certa noite a zéfiro agradável e amena transformou-se num vendaval de 100 quilômetros por hora, impossibilitando os moradores terem acesso ao morro, bem como os ingleses, que tiveram suas casas destelhadas; evidentemente, os casebres dos humildes sofreram maiores danos.
O pensamento geral se expressava na expectativa de nova ventania, causadora de tanto terror. Até porque as recuperações seriam lentas, embora os alienígenas dispusessem de recursos, a mão-de-obra se tornara mais difícil, pois pedreiros, encanadores, eletricistas teriam de ser recrutados entre os visinhos e esses não estavam dispostos a trabalharem para os inamistosos estrangeiros. Outra circunstância justificava a repulsa, um dos dobermanns atacou um menino de 13 anos, que pulara o gradil da casa de um inglês, com vistas a apanhar uma “pipa”, causando-o graves ferimentos, deixando marcas horríveis no corpo da criança, sem que o imigrante assumisse a responsabilidade do tratamento.
O adventício era diretor em seu lugar de trabalho e sistematicamente tratava os operários brasileiros de forma rude. Vezes houvera que quase chegara às raias da agressão. Um dos compatriotas, mais cordato e solícito interveio em favor da vítima e seus pais, sendo, severamente, admoestado pelo Mister Willian perante os demais moradores. Daquela censura pública nasceu uma inimizade que se estendeu até o local de serviço de ambos. As atitudes violentas do referido diretor foram aumentando progressivamente, culminando na solicitação de dispensa de Peter e pedido de regresso à Inglaterra.
O líder do morro, João de Deus, procurou uma aproximação com Mister Willian na companhia em que ele trabalhava, porém, esse não recebeu o representante do morro.
Como Peter gozava de muita estima, os operários fizeram uma manifestação em favor de sua permanência e proclamaram uma greve geral, em face das agressões causadas a diferentes operários, da qual resultou implantação de dissídio no Tribunal do Trabalho.
Instalado o dissídio, Mister Willian foi intimado a comparecer, recusando-se de plano. Após nova notificação apresentou-se no julgamento, criando um clima revoltante porque se negara sentar à mesa em que se encontrava um subordinado de cor preta.
Ao Julgador não restou alternativa, senão obrigá-lo a permanecer no lugar a ele destinado, bradando: “senta inglês idiota você está no Brasil, aqui não há descriminação de cor, mando lhe prender por desacato a este Juízo”.
A atitude do Juiz fez com que o inglês se aquietasse.
Os ânimos ficaram mais acirrados face ao insolente comportamento do diretor da companhia, que, abertamente,
prenunciava as dispensas de Peter e vários operários. Por outro lado, jactava as qualidades caninas dos dobermanns que morderam a criança.
Após a audiência, começaram a surgir ameaças físicas a Mister Willian, que se abrigara nas dependências da companhia, reforçando sua segurança e não retornara à sua casa no morro.
Paralelamente, Peter recebia um comunicado em que era dispensado das funções técnicas na fábrica de gás, e passagens para ele e a família de regresso a Inglaterra.
No morro a intranqüilidade perdurava com o agravamento da saúde de Marquinhos, que fora mordido pelos cães de Mr. Willian.
Quase todos os casebres tinham sido recuperados dos estragos ocasionados com o vendaval, que ameaçava voltar. Os ventos reiniciaram e os moradores adotavam providencias, visando resguardar suas moradias.
Houve em dado momento uma escaramuça de um grupo à casa de Mr. Willian, fazendo ameaças, bem como membros da família de Peter entram em discussão com os filhos e mulher daquele maioral. A polícia foi acionada para controlar excessos.
À noite o vento voltava a aparecer; alguns moradores assustados desceram o morro e se abrigaram nas marquises dos prédios comerciais próximos ao “MORRO DOS INGLESES”, avistaram Peter que chegava esboçando vontade de subir pelos degraus da ladeira de cimento, que ia até sua casa. Demonstrava estar nervoso, acenando aos visinhos recolhidos naquele local. Não se amedrontou com o vento, precisava chegar à sua residência devido ao entrevero de membros da família com a de Mr. Willian, ademais dar conhecimento de sua dispensa da companhia e a forçada volta a Londres. Pouco permaneceu no lar.
As notícias deixaram traumatizado o inglês cordato. Retornou à fábrica de gás, encontrando na descida com pai de Marquinhos, que ia a busca de socorro para o filho, com febre alta e convulsões, decorrentes dos ferimentos provocados pelos cães de Willian.
Peter acalmou Sebastião, dizendo que lhe ajudaria
procurar o auxílio médico. Ambos se dirigiram primeiro à companhia e tentaram falar com Mr. Willian, sendo impedidos pelos seguranças, a serviço de proteção ao diretor.
Naquele momento os dois tiveram pequena altercação com os seguranças, logo após chegara João de Deus, movido com o propósito de também avistar o dirigente máximo da empresa.
Os seguranças entraram no gabinete para informar a Mr. Willian as pessoas que estiveram tentando falar com ele. O inglês, além de receber mal os seguranças, os expulsou violentamente, usando palavras insultuosas, causando-lhes humilhação.
Amanhecera e Mr. Willian não regressara à sua casa, determinando aos membros da família ir à Companhia, lá
encontraram seu corpo estendido no chão da sala em que trabalhava com ferimento de três balas de revolver. O sangue, ainda sem coagular escorria pelo piso.
Acionada a polícia, que iniciou diligências e perícias para desvendar o autor dos disparos. Foram tomados os depoimentos dos três seguranças, de Peter, seus visinhos do morro, João de Deus e Sebastião, todos tidos como suspeitos.
Passados seis dias, a polícia com a colaboração da Embaixada Inglesa, desvendou o mistério, acusando um dos seguranças como o autor do delito. Ambrósio veio a confessar o crime que praticara naquela madrugada, alegando em sua defesa ter sido ofendido por Willian com uma bofetada no rosto e palavras de baixo calão. Afastara-se dos outros colegas e retornara mais tarde ao gabinete do Diretor da Companhia de Gás, a fim tomar satisfações. Como ele ameaçou abrir a gaveta da mesa que trabalhava, puxou do revolver que portava dando-lhe três tiros.
O morro voltou à normalidade, a Embaixada Britânica prestou assistência médica a Marquinho e os remanescentes ingleses continuaram ali residindo, sem importarem com os impertinentes ventos que, vez por outra, devastavam aquela localidade.