CONTO POLICIAL 1

Abri a porta num supetão enraivecido, ainda que não possa definir aquela sensação que me dominava como simplesmente raiva. Rangeu estridente, rasgando o atroz silêncio da madrugada como quem anuncia o desfalecimento de uma alma que se esvai de um corpo deteriorado. Olhei para a patética sala de estar. Os móveis que a guarneciam se distribuíam toscamente: o sofá torto, a mesa com cadeiras desfalcadas e os quadros empoeirados. Pratos, talheres, vasilhas e panelas se juntavam num motim em cima da mesa, refletindo não só uma ausência de limpeza, mas a exteriorização dos meus próprios anseios. Arremessei a arma no sofá, cuspi a mucosa úmida no estofado e me dirigi à cozinha.

Uma geladeira em cor pálida de musgo, um fogão pequeno e uma pia carcomida pelo tempo. Rachaduras desenhavam mapas nas paredes e no teto, onde plantas de pequeno porte criavam relevo com suas raízes tímidas. Agindo sem o controle de minha mente, liguei a torneira e me coloquei a observar o fluxo de água, trêmulo. Alternava a vazão da corrente, dos pingos de chuva às torrentes mais fortes. O titilar das gotas regiam a única sinfonia daquela noite.

Um sentimento de compressão no peito me retirou o ar, como se pedras de gelo inundassem o meu interior. Meus olhos giravam na órbita e eu tateava o azulejo enlameado da pia em busca de nada. O gotejar sereno se modificou num zumbido intenso, paralisando meus membros junto aos ouvidos e eriçando os pelos do meu corpo. Girei em torno de meu eixo em busca de alguma explicação visual, e me abstive em frente à torneira. A água estava rubra como sangue talhado, com a viscosidade de uma ferida gangrenada. Nada continha o jato escarlate.

Duvidando da minha própria sanidade irrompi pela casa e adentrei em meu quarto. Estava tudo vazio, apenas as camas e as paredes que tinham rombos circulares de tamanhos variados. Alguns pareciam feitos à mão; outros, esculpidos por balas de escopeta. Eu não tinha matado ninguém. Apenas a mim mesmo.

Há cinco dias atrás um revólver que parecia de brinquedo surgiu embaixo da minha cama e estranhamente cada dia ele se posicionava em um lugar – Na mesa do escritório, na janela, dentro do vaso de plantas sem vida... Outrora o carteiro o trouxe. Tentei levá-lo para outros lugares fora da casa e ele sempre reaparecia. Minha irmã conheceu-o naquele dia.

Sentei na cama e, debruçado sobre o joelho, retomei o controle da respiração e procurei me acalmar. Foi quando, na inércia da tranquilidade, senti a sola do pé umedecida pelo líquido agora violáceo que se esgueirava pelo meu aposento. Em frenesi, corri até o sofá cambaleando e empunhei minha defesa - a única coisa que me traria paz para me retirar daquele pesadelo descomunal. Necessitava de emitir o som, observar o dilacerar da carne.

O disparo se efetuou, rasgando o atroz silêncio da madrugada.

Olgui
Enviado por Olgui em 30/09/2009
Reeditado em 11/10/2009
Código do texto: T1840345
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