13, o número da morte. – Primeira parte.

Um conto policial.

Os esclarecimentos a seguir não fazem parte das anotações particulares do detetive Peter Burnes.

01-

Sonia caminhou em direção a porta, enorme e lisa, madeira pesada, sólida como as portas dos castelos dos filmes ruins, que passavam à tarde no canal 13, ela ouviu a música, lenta, ouviu as vozes, todos estavam provavelmente bêbados, a noite ia alta, as estrelas estavam embaçadas, nuvens começavam querer escondê-las, Sonia subiu lentamente as escadas, não gostava de festas, estava com sono, e já começava a sentir frio, iria entrar e pedir que Ricardo a levasse para casa.

Tudo aconteceu muito rápido, rápido demais para que ela tivesse consciência da própria morte, tudo o que sentiu foi uma vertigem, uma dor profunda, e depois o silêncio eterno enquanto seu crânio era completamente esfacelado pela violência da pancada, um zumbido e depois paz. Enquanto o corpo tombava contra o mármore das escadas a música continuava lá dentro, ritmada e alegre.

Os trechos a seguir fazem parte das anotações pessoais do detetive Peter Burnes.

02-

Quando cheguei os idiotas da perícia estavam mexendo no corpo com suas luvas brancas de borracha. “Cuidado para não contaminar a cena!” Gritou um deles antes que eu lhe mostrasse o dedo anular e meu distintivo. O perímetro estava isolado, poucos curiosos, algo incomum, mas perfeitamente compreensível dado ao local do crime, uma localidade rural, afastada alguns quilômetros de qualquer lugar civilizado.

O homem de bigode branco, cabelos brancos e luvas brancas de látex se afastou um pouco, acendeu um cigarro e tragou como quem morre asfixiado, soltou a fumaça lentamente e então respirou fundo, tragou novamente e se pôs a fumar de forma menos desesperada enquanto caminhava em minha direção.

- Sou David...

- Sim doutor, sei quem é o senhor. – Eu o interrompi. – O que houve aqui?

- Fácil explicar. A pancada a pegou provavelmente distraída, veio do alto, provavelmente daquela janela aberta. – Apontou com o cigarro acesso. – Pela temperatura do corpo, apesar do frio que fez essa madrugada é possível estabelecer aproximadamente a hora da morte como entre 1 e 3 dessa madrugada. – Ele tragou de novo e me ofereceu.

- Não obrigado eu trouxe os meus.

O homem se afastou, deu ordens a sua equipe e o corpo foi carregado, a cabeça da mulher lembrava uma daquelas pizzas moles e fumegantes ao saírem dos fornos de uma legitima pizzaria da mama.

Ramirez estacionou o carro sob uma fileira de árvores enormes nos fundos da propriedade, desceu, a porta estava emperrada, não queria fechar, ele deu dois chutes, a lataria ficou amassada, mas a porta se fechou. Ele caminhou em minha direção passando as mãos nos cabelos para penteá-los.

- Tudo bem Burnes?

- Bem um cacete, precisa ver o que fizeram com a mulher.

- Foi feio?

- Bastante. – Eu disse. – E olha que estou acostumado a ver muita coisa feia nesses meus 18 anos de polícia.

Ramirez fez um gesto com o dedo indicador para que o policial fardado se aproximasse. Ele veio, também fumando, com cabelos desgrenhados, sem quepe, jogou o cigarro ao se aproximar.

- E então? – inquiriu Ramirez.

- Fui o primeiro a chegar. Descobriram o corpo ao amanhecer, parece que durante a festa não se deram conta da ausência dela, nem mesmo o noivo Ricardo Tilmos, que estava bastante bêbado.

- Tilmos? Da Rede Tilmos?

- Sim, a moça se chama Sonia, era caixa de um dos supermercados antes de se tornar noiva do chefe. – O homem pigarreou, cuspiu longe. – Só dá nisso mexer com essa gente. – Disse mais com um pensamento em voz alta.

- Quantas pessoas havia casa nessa madrugada? – Eu perguntei.

O policial tirou um bloco do bolso, enumerou as pessoas.

- A vitima, seu noivo Ricardo Tilmos, a irmã do noivo, Estela Tilmos, as gêmeas Larissa e Paula, Vitor Pazzolli, Vanda Rios, Rômulo Archives, o mordomo, a copeira, duas cozinheiras e Edgar D’ela Rullas. Total de 13 pessoas.

Ramirez e eu subimos a escada, mas de quinze degraus com o piso revestido de mármore, manchas de sangue, vestígios da violência, meu estômago já está embrulhado, cuspo uma pasta amarela e viscosa, paramos de frente para a porta, enorme, lisa, madeira de lei, sólida como uma muralha, pesada. Olho para cima. Segundo o legista o objeto arremessado contra o crânio da mulher havia sido uma escultura de bronze que se achava caída logo ao lado da porta, a alguns metros do corpo, e não podia ser diferente, constatei, pela quantidade de sangue que cobria o objeto.

A porta dava para uma sala vasta, pintada toda em cores claras que iam do bege ao pastel, fazendo um degrade nostálgico aos meus olhos, olhei ao redor, vestígios da festa, garrafas, copos, pratos vazios, restos de comida, garrafas pela metade. Ramirez pegou uma das garrafas de uísque, cheirou seu conteúdo. Falsificado! Esses milionários são os piores! Deixou a garrafa onde estava. Os móveis pareciam estar fora de seus lugares, havia uma desordem explicita e até mesmo eu que nunca havia estado ali fui capaz de notar.

O policial fardado nos seguia calado, apenas observava, não havia o que falar, não havia muita coisa a fazer naquela casa, seria muito difícil achar qualquer vestígio ou evidência, fosse qual fosse, em meio a tamanha desordem. O policial nos apontou a direção a seguir para chegar até a janela de onde parecia que havia sido arremessada a arma do crime, mais escadas, mais uma vez de mármore branco, dessa vez poucos degraus, no entanto largos e límpidos, um corrimão de madeira, aparentemente da mesma espécie da porta.

A escultura de mármore fora arremessada da janela de um dos quartos. Quarto enorme, com as paredes pintadas da mesma maneira da sala, havia uma outra escultura igual, gêmea da que fora usada para dar cabo à vida de Sonia. Olhei-a tentando decifrar o seu significado, tentando entender o que passava pela cabeça do artista na hora que lhe deu formas, mas não consegui chegar a lugar algum. A arte moderna tem esse efeito sobre as pessoas antigas, não é capaz de causar efeito algum. Da janela se via a rodovia interestadual, quase no horizonte, os carros passando, pequenos e lentos, o sol querendo escapar por detrás do cinza, senti vontade de acender um cigarro, mas desisti, o estômago ainda estava embrulhado.

Sobre a penteadeira havia uma garrafa de uísque ainda pela metade, três copos com vestígios de bebida, além de um pequeno prato com restos de frios e azeitonas, restos de cigarro, frutas mordidas e deixadas pela metade, um maço de cigarros, uma pinça, um isqueiro zippo, um par de alianças de ouro.

O policial me entrega a lista com os nomes das pessoas que estavam na casa na hora em que aconteceu o crime. Leio cada um dos nomes e realmente são 13 pessoas. Finalmente acendo meu primeiro cigarro.

03-

- Eu dancei a noite inteira, confesso que bebi um pouco, minto, bebi horrores, menino, nunca tinha bebido tanto na vida, também, que champanhe delicioso, tinha muito uísque, mas de uísque não gosto muito não, muito forte, um gosto terrível. – disse a gêmea que pinta o cabelo para perecer diferente da irmã, que os mantém loiros e naturais.

As duas estão sentadas no sofá a minha frente, pernas cruzadas para lados diferentes, os olhos de ambas são iguais, estão exaustos de ficarem abertos, imagino, chocados com a luz que entra pela janela aberta.

- Do que se lembra? – Pergunto a Larissa, a gêmea do cabelo pintado.

- Lembro que a orquestra tocava You don’t know me.

- Não tinha orquestra nenhuma sua retardada. – Interrompe Paula, a gêmea loira. – Era um CD do B. B. King.

Por um momento tenho a impressão de que elas se odeiam, a gêmea do cabelo pintado parece ainda estar bêbada. Ela parece tentar se lembrar, cantarola a música, sorri, descruza as pernas.

- Quero que se lembre de alguma coisa fora do normal, não qual canção estava tocando. – Eu digo.

- Mas isso é importante, Ricardo não gosta de B. B. King.

- Cala boca sua idiota. Essa menina ainda está bêbada, detetive, não dê importância para o que ela diz. É uma cabeça de vento, já não sabemos mais o que fazer com ela.

- Vocês presenciaram alguma discussão, algum desentendimento entre os presentes? Alguma coisa que parecesse fora do normal?

- Não! – Se apressa em dizer a gêmea do cabelo pintado.

- Também não vi nada. – Diz a outra.

Ramirez está parado junto ao carro, fuma um mentolado falsificado. A porta do carro está amassada dos chutes que ele deu. O sol está forte, olho no relógio, falta um quarto para as duas da tarde.

- E então, alguma coisa? – Ramirez me interroga.

- Parece que elas ainda estão bêbadas.

- Duas vadias. – Ele cospe na guia de sarjeta.

Há oito anos Ramirez é meu parceiro, aprendi a conviver com essa sua mania de cuspir com o canto da boca quando está irritado. É um bom sujeito, embora pareça estar sempre alcoolizado. Ele entrou para polícia por que acreditava na instituição, seduzido pela propaganda do governo, os sorrisos dos soldados enquanto as letras surgiam na tela da TV em cores, a vida real fez com que ele perdesse um pouco da fé. Tem fumado cada fez mais, cada fez que se depara com um corpo acende um cigarro, toda fez que tem que interrogar um suspeito acende um de seus mentolados made in China. A carreira policial cedo ou tarde lhe presenteará com uma úlcera ou com um câncer de pulmão.

- Eram 13 pessoas na casa, alguém tem que ter visto algo, pelo menos sentido o cheiro, ouvido alguma coisa, não é possível que não saibam de alguma coisa.

04-

O texto a seguir não faz parte do relato pessoal do detetive Peter Burnes. Foram retiradas de uma matéria do Jornal a A notícia Exata.

CRIME SEM CASTIGO.

Continua sem resposta o crime da Mansão Tilmos. Como é fato já sabido por toda a cidade, conformes sucessivas missivas já postadas nesse periódico, a senhorita Sonia D’ Brael foi brutalmente assassinada na madrugada do último dia 13, em uma festa que estava sendo realizada na mansão de seu noivo, o empresário Ricardo Tilmos, a vítima teve o crânio totalmente esfacelado por uma escultura de bronze que fora arremessada em sua direção por uma das janelas do andar superior...

...A polícia, dotada de sua inércia, que todos nós estamos cansados de presenciar, nada resolve, fica andando em círculos, como que bêbada em sua própria incompetência. Por esses e outros motivos a sociedade civil deve se unir em uma marcha contra essa criminalidade desgovernada que pouco a pouco vai contaminado nosso país, invadindo nossas casas, esfacelando nossos sonhos, destruindo o futuro de nossos filhos, como fez com essa moça chamada Sonia. É hora de um basta, um ultimato, é preciso que todos nós, unidos, de braços dados, mangas arregaçadas caminhemos em direção a um novo porvir, sem opressão, sem violência e sem medo...

A matéria era assinada por Nicole Dianes.

Os trechos a seguir são partes do diário mantido por Sonia D’brael desde seus doze anos de idade. Os trechos aqui exposto não fazem parte do processo de investigação da morte da mesma.

23 de março de 1998,

...Hoje discuti com um idiota no Supermercado Tilmos, o idiota é o dono, eu o achei um grosso, estúpido, me tratou muito mal, nunca mais comprarei nada lá...

...semana que vem completo vinte e dois anos, queria que papai estivesse por aqui, mês que vem fará dois anos que ele se foi naquela acidente estúpido...

...parece que vai chover, já consigo ouvir os trovões lá longe...

27 de março de 1998,

...aquele idiota do Supermercado Tilmos me mandou flores hoje, um bilhete pedindo desculpas pela o ocorrido no outro dia, não quero nem saber, joguei as flores no lixo, queria bater com o buquê na cabeça dele....

...hoje li no horóscopo que estou prestes a conhecer alguém muito especial, não acredito nessas coisas, mas nunca se sabe, não é mesmo?

28 de março de 1998,

...meu Deus, quanta chuva, o homem do Supermercado veio aqui hoje, se chama Ricardo Tilmos, trouxe mais flores, dessa fez não joguei no lixo, estou mais calma, aquela primeira vez ainda estava brava com a discussão, ando meio estressada, acho que é por causa da TPM...

...ele é até simpático, o Ricardo, ficou aqui, tomou um café comigo, conversamos um pouco, acho que aquela primeira impressão foi desfeita...

05-

A casa de Estela era toda rosa, podia ser vista a um quarteirão de distância, o portão era também rosa, barras grossas de ferro, feito espadas apontadas para o céu, o portão elétrico estava pintado em um tom de rosa mais escuro que o resto do muro, o interfone era um corpo estranho me meio a todo o rosa daquela muralha.

- Quem é? – A voz era carregada de sono.

- Detetive Burnes, gostaria de falar com Estela Tilmos.

Ouvi o estalido metálico do portão sendo destravado. Ramirez estava fumando mais um de seus mentolados, cuspiu no chão.

- Esses burgueses me dão nojo!- Cuspiu mais uma vez.

Fomos, Ramirez e eu, recebidos em uma sala toda rosa, carpete rosa, moveis rosas, rosa em vários vasos pelos cantos da sala, o vestido da empregada que abriu a porta era rosa também e se u avental rosa em um toma mais escuro. Meus olhos estavam bêbados por tanto rosa. Ramires fazia caras e bocas de nojo.

- Dona Estela já está descendo, está muito consternada com o acontecido, tem dormido pouco, tomado remédios de todos os tamanhos, uma pena de se ver.

Eu não disse nada.

Ramirez não disse nada.

A empregada continuou a matraquear.

- Ela ficou andando pela casa a noite toda, da cozinha pra sala, pra copa, indo aos cômodos, andando pelos quartos, só conseguiu dormir agora de manhã.

Ela respirou fundo e nos deu as costas. Estela desceu a escada lentamente, se apoiando no corrimão rosa.

- Bom dia detetive, já descobriu quem fez aquela barbaridade?

- Bom dia dona Estela, estamos investigando, por isso estamos aqui.

- Em que posso ser útil? Estou à disposição para o que for preciso. Sentem-se, por favor. Eunice não trouxe um cafezinho para os senhores, vou providenciar.

- Não é necessário dona Estela.

Ela se senta no sofá abarrotado de almofadas todas rosas, a cachorra poodle corre em sua direção lhe salta sobre as pernas, ela acaricia a cabeça da poodle, que faz festa alheia a tudo. Estela Tilmos faz gestos para que nos sentemos em todo aquele rosa esdrúxulo de seus estofados. Ramirez se nega, balança a cabeça em um sinal acintoso de nojo de tudo aquilo.

Eu me sento, estico as pernas. Tenho SPI, e quando fico muito tempo em pé ou dirigindo ou numa fila qualquer, a sensação é insuportável. Síndrome das Pernas Inquietas, é um distúrbio de ordem vascular, problema com a circulação do sangue, as crises são insuportáveis. Minhas pernas já estão começando a coçar. Os detetives dos romances que li na adolescência não tinha esses problemas, Poirot por exemplo, sempre fazia as perguntas certas, sempre conseguia elucidar os mistérios, achar os culpados, mas na vida real não é assim que acontece, na vida real os detetives são como eu, são como Ramirez, na vida real os detetives tem SPI e fumam mentolados falsificados.

De repente Estela rompe-se em lágrimas, desmancha-se em uma cascata convulsiva de choro e lamentação, a dor parece lhe implodir os sentidos. Eu fico sem saber o que fazer, Poirot saberia o que fazer, mas que droga, eu não sou Hércule Poirot. Não consigo entender o que ela balbucia por entre os dentes cerrados. A empregada vem em socorro da patroa, lhe trás um copo de água, eu peço licença e vou até a varanda, acendo um cigarro, Ramirez me segue.

- Ela me parece completamente chocada. – Eu digo.

- Aprendi a duvidar de todos os meus sentidos, já não acho mais nada, já não tenho certezas de nada, minha vida é duvidar até de que estou realmente vivo.- Ele acende um mentolado.

Minhas pernas começam a coçar, mas não é na pele, a coceira é no interior da carne, dentro dos músculos. Descobri que tinha a Síndrome das Pernas Inquietas meio que por acaso quando investigava um homicídio da sobrinha de um cirurgião vascular, ele me via esfregando as pernas inquietamente, desesperado, quase que sufocado, o diagnostico foi imediato, nem mesmo titubeou.

- Vou dizer tudo o que sei. – Diz Estela imergindo de dentro de tanto rosa.

CONTINUA...

Odair J Alves
Enviado por Odair J Alves em 31/05/2009
Código do texto: T1624128
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