Parceiros
 



A delegacia abarrotada fedia naquela noite típica de verão. O odor entranhava na roupa e pele de quem fosse obrigado a chegar próximo à carceragem.       
Lotação mais que esgotada, seminus eles alternavam as posições de pé e sentado.
Magalhães acendeu um cigarro por pura maldade, inalou e soltou devagar a fumaça. Enquanto observava os olhares cobiçosos, percebeu o olhar de reprovação de Barbosa:

- Algum problema?  

- Nenhum .

- Já estão trazendo o preso, daqui a pouco sairemos deste inferno.

- No meio do plantão... Não dá pra acreditar!

- Chegou o boneco. Vamos andando.

O rapaz  chegou algemado, cabeça baixa e bem machucado. Franzino e encolhido como se fosse possível tornar-se ainda menor. Barbosa lançou o famoso olhar de soslaio, mania irritante que apenas ele julgava ameaçadora.
O parceiro ignorou com um sorriso disfarçado e acompanhou o preso até o carro. Naquela noite, não usariam a viatura.

Vinte e dois anos trabalhando juntos,  davam-lhe conhecimento de causa.  Eram mais que amigos, um batizou o filho do outro, passavam as folgas com as famílias reunidas em intermináveis churrascos. Todos admiravam a dupla, eram  dignos de confiança e respeito. Barbosa sempre agitado e Magalhães ponderado e bonachão.

Barbosa estava irritado: Havia brigado com a mulher, o carro enguiçou  e o filho estava para ser reprovado. Na realidade, a mulher informou a separação durante o café da manhã e no instante seguinte, deixou a casa com todos os pertences. Barbosa e o filho nada falaram... Cada qual seguiu sua rotina,  como se nada houvesse acontecido. Não era a primeira vez que ela ia embora e depois retornava arrependida. Infelizmente daquela vez, Barbosa jurou que seria a última.

O amigo sabia que não era hora de perguntar nada, sentou-se no banco do carona e deixou que Barbosa assumisse a direção:- Porra! Na  hora do rush ir pra Caxias  é um inferno.

- Posso dirigir...

- Não! Não confio em ninguém no volante.

- Desculpe, quer conversar? Porque está tão irritado?

- Nada demais. Coisa da vida, desta vida de merda que vivemos. Deste salário de merda, deste carro bichado e deste boneco, filhinho de papai sentado aí atrás rindo de nós. Motoristas de um moleque riquinho e safado. Viciado da porra! Traficante de merda! Quer que eu explique mais alguma coisa?

Magalhães já estava acostumado com as patadas do amigo, acendeu um cigarro e relaxou. O preso sentado no banco de trás, soltava  risadinhas de vez em quando... pela primeira vez, Magalhães olhou com atenção.
 
Apesar  do desconforto, o jovem  exibia uma expressão altiva  e parecia muito à vontade.  Ele sabia que estava sendo transferido para uma delegacia melhor. Naquela hora da noite, Magalhães entendeu que era tudo muito irregular e não devia fazer perguntas. Mais uma risada e Barbosa jogou o carro no acostamento:

- Vou dar um jeito neste palhaço.

- Calma, o moleque  tá  doidão. 

Não adiantou argumentar, Barbosa desferiu uma série de socos na cabeça do preso,  transformando o rosto  em uma massa disforme e sanguinolenta.  À  muito custo, foi contido  e jogado no asfalto. Magalhães tentou socorrer , mas  o rapaz regurgitava sangue por todas as vias.
Em poucos segundos, estremeceu e caiu para o lado.

Barbosa certificou-se que o rapaz estava morto, tirou as algemas e calmamente retomou o volante. O parceiro sabia que ele devia estar pensando, não ousou interromper e acendeu outro cigarro. Finalmente, o detetive deu partida no carro e pegou a rodovia:

- O que vamos fazer?

- Entregar o boneco, não foi para isto que viemos?

- Ele está morto, se não percebeu... Irão ver na hora.

- Eu sei.

- Ei amigo! Está correndo demais, porque esta pressa agora? Barbosa,  estamos a 120, 140... Barbosa! Diminua esta porra! Olha a árvore!

O carro colidiu contra a árvore e como é do conhecimento geral, o instinto sempre obriga o motorista a se proteger. O preso atravessou o vidro e foi arremessado no matagal à margem da rodovia. Toda a lateral ficou completamente destruída, Magalhães preso às ferragens ainda respirava,  mas o estado era crítico. Barbosa soube imediatamente que tinha quebrado as pernas:
 
- Barbosa! Ajude... Estou morrendo...

- Maldição! Era para estar morto!  Pensa que não sei do seu caso com Inês? Pensa que não notei que crio seu filho? Pensa que sou idiota? Todos estes anos... Eu só queria te ver morto, mas você sempre sobreviveu... Nunca levou um tiro! Armei tantas e nunca levou um tiro!

Barbosa testou a porta e conseguiu abrir com dificuldade. Girou o corpo e soltou um grito agudo enquanto jogava as pernas para fora do automóvel.

Magalhães arregalou os olhos de puro horror, enquanto Barbosa tirava o maço de cigarros de seu bolso. O fumo acendeu e Barbosa puxou com força,  até transformar a ponta em uma brasa viva. Lentamente deixou o cigarro cair no fundo do carro. 
 
Giselle Sato
Enviado por Giselle Sato em 10/05/2009
Reeditado em 23/06/2009
Código do texto: T1586871
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