FARRAPOS DA VIDA - ROMANCE - CAP.III
Capítulo terceiro
Aquele fim de tarde estava magnífico. O sol atingira o ponto equinocial de Março há perto de dois meses. O ar que se respirava estava inundado de fragrâncias suaves, determinando aos olfactos mais desatentos estar-se em plena Primavera. As andorinhas chocavam há muito os seus ovos nos ninhos que tinham ficado dos anos anteriores e as frias geadas de Inverno não faziam mais parte do quotidiano da cidade.
No acolhedor salão de música da majestosa residência dos Quintela, em Labrões, a uns cinco quilómetros de Nogueira, Bernardete, a neta mais nova do desembargador, proprietário assumido do rico palacete, outrora adquirido pelo seu único irmão, o falecido Eugénio, a um barão que fugira para o Brasil com a implantação da República, preparava-se para sintonizar na telefonia mais um capítulo da peça radiofónica “As Pupilas do Senhor Reitor”.
- Outra vez ouvindo rádio, minha querida...- admoestou o avô com brandura, que dela se aproximara sorrateiramente, ajudado pela sua bengala de pau preto com cabo de prata lavrada. - Vai até ao jardim aproveitar esta linda tarde primaveril e esperar a tua irmã, que não tardará por aí a chegar. Goza a tua juventude, pois não te faltará tempo para ficares em casa, e nessa altura, verás, muito contrafeita. Mais uns anos (e olha que voam!) e aí estarás uma senhora casada, a quem a mocidade passou, sem de tal te aperceberes... - Não me faça rir avozinho. Cada ano parece demorar um século e quanto a casamento não será aqui que encontrarei noivo. Sou muito exigente! - discordou a neta, soltando uma sonora gargalhada.
- Vai, vai passear um pouco - insistiu o avô.
- Não me apetece. Vou ouvir a novela. Estou a acompanhá-la desde o início e a Mónica ainda deve demorar. Hoje o Toni tem aulas até mais tarde e ela deve esperá-lo para vir consigo.
"Bom rapaz esse António", disse mentalmente o desembargador. "Aliás há ali na cidade um pequeno grupo de bons rapazes. Brincalhões de primeira linha, é certo, mas ponderados e muito respeitadores. Que estará destinado a esta juventude com esses desejos de independências que proliferam por toda a África...A Argélia está a ferro e fogo, o Senegal já conseguiu a autonomia. A França acabará mesmo, tenho a certeza, por dar a independência a todo o seu ultramar. O pior será a gente que vai morrer. O que acontecerá connosco? Enfim...".
Era este o devaneio do desembargador, que entretanto se sentara na sua poltrona preferida de rica tapeçaria oriental, trazida da Índia pelo seu primo Crisóstomo quando por lá esteve como médico militar. Ia continuar nas suas fantasias no momento em que, através da varanda situada mesmo à sua frente, vislumbrou um "Chevrolet" de aluguer. Aproximou-se dela e assentando a luneta, com os cotovelos apoiados na sacada, procurou certificar-se de quem seria o inesperado visitante.
A alameda de acesso ao jardim, entrada principal do palacete, encontrava-se com o aspecto próprio da Primavera. Um mar de rosas, crisântemos e alvas açucenas deleitava o sentido apurado do olfacto dos venturosos labrosenses. Com as suas inconfundíveis camélias, duas alas de japoneiras formavam guarda de honra à ruela artisticamente empedrada que antecedia o chafariz, cuja água cristalina e pura, jorrando de três ornamentais bicas, transbordava para um largo e profundo tanque densamente povoado de pequenos peixes multicores.
"É impossível saber de quem trata", disse para consigo o desembargador."Vou pôr-me em condições de receber este amigo, que o é, de certeza, para vir a estas horas e de táxi". E lá foi no seu passo miudinho desembaraçar-se das pantufas e do roupão, peças sempre utilizadas quando não havia estranhos em casa.
- Então como vai o melhor avozinho do mundo? - cumprimentou a Mónica, acabada de chegar com o Toni.
- Ah! Foram vocês que vieram naquele táxi - sussurrou o desembargador, em resposta ao galanteio da neta.
- Efectivamente – aquiesceu o António – fomos convidados pelo sr. Dr. Azureira, que se encontra no “hall” e pretende falar com V.Exª.
Entretanto a filha do desembargador e mãe das duas raparigas, de seu nome Beatriz, apareceu nesse mesmo instante no limiar da porta a anunciar o velho amigo da família, com quem teve até um pequeno “flirt” nos seus tempos de menina.
- O meu amigo Teófilo cá em casa! Pois é muitíssimo grata a sua visita – exclamou o desembargador com inefável alegria.
Não era um cumprimento protocolar de circunstância. Na verdade o Teófilo Azureira trazia-lhe sempre à memória a figura ímpar do seu pai, insubstituível amigo e dedicado correligionário, o colega Maximino falecido prematuramente, segundo a concepção do desembargador, embora já passasse dos oitenta. E dirigindo-se especialmente à filha, orientadora exclusiva da imponente residência desde a morte, há uns anos atrás, da sua mulher, continuou:
- Vamos recebê-lo com a dignidade a que faz jus. Telefona à Mariazinha e convida-a para um serão, precedido de jantar. Assim ele não terá desculpas.
- Mas não é muito correcto, paizinho – objectou a Beatriz –, fazer um convite mesmo em cima da hora. Ademais existe também o Ismael.
- Então vou ligar eu – disse peremptório o desembargador. - Como velho pertinaz ser-me-ão permitidos alguns caprichos. - E em tom de galhofa: - Ela virá com certeza sabendo o Teófilo aqui...
Este diálogo decorria com natural boa disposição e fora arquitectado para brincar com a filha pelo fugaz namorico que tivera com o Azureira, inofensiva sentença que ela sempre reprimia, mas sempre a obrigava a corar.
Após a irrefragável convocação, imediatamente aceite pela Mariazinha, duas badaladas se fizeram ouvir da sineta que o próprio Quintela accionou, qual toque de clarim a convocar os soldados aos seus postos, e eis que perfila perante a pequena assembleia o circunspecto mordomo, uniformizado a preceito.
- Faz o favor de me acompanhar – ordenou o desembargador – e depois manda preparar uns aperitivos para serem servidos no “Retiro”. Nos últimos anos o velho Quintela poucas vezes se encontrou com o Azureira. Sabia da sua contínua ascensão profissional através do marido da Beatriz, porque o genro, a ocupar o cargo de director-geral num Ministério em Lisboa, todas as semanas vinha a Labrões e sempre se encontrava com o Teófilo em Nogueira, normalmente aos domingos, no café. Quando acontecia uma visita como esta havia sempre inúmeros assuntos a relembrar e outras novidades a conhecer, porque, apesar da grande diferença de idades, possuíam características muito semelhantes: bons cavaqueadores, democratas confessos e eruditos causídicos.
- Pergunto a mim próprio – interpelou o desembargador ao chegar junto do Azureira – que bons ventos teriam feito deslocar o nobre colega a esta sua humilde casa.
- É um assunto, ilustre desembargador – retorquiu o Azureira, ao mesmo tempo que se cumprimentavam – mais embaraçoso que a mais difícil querela forense, mas acima de tudo saber da sua inestimável saúde.
- O colega é muito fidalgo – rematou o interlocutor. - A saúde, salvo este maldito lumbago que de quando em vez me atormenta, vai bem. Esse é o troféu das boas décadas que transporto. Vamos até lá abaixo tomar um aperitivo. Quero que prove o esplêndido branco da última colheita, enquanto conversamos. Para uma frutuosa conversa, um bom estimulante... – e continuou: Quando soube da sua presença, tomei a liberdade de telefonar à Mariazinha, convidando-a, acompanhada do vosso rebento, evidentemente, a dar-nos o prazer de vir jantar connosco hoje. Fi-lo porque há muito tempo que andámos arredios e também por saber que não discordará desta minha falta de etiqueta quanto à formalidade de prazos, mas já assim procedia com o meu querido Maximino e assim continuarei a agir com o filho. Uma amizade sólida, fraterna e desinteressada tudo isso admite. Concorda o meu ilustre amigo com este velho rabugento?
- Por quem é, senhor desembargador! As suas vontades são ordens para nós. Compete-nos, isso sim, agradecer tamanha honra e tudo fazermos para manter e consolidar este longínquo afecto que creio remontar aos nossos dignos ancestrais de há três ou quatro gerações.
- Vamos então descendo – atalhou o desembargador – até ao “Retiro dos Amigos”.