A VOZ DO SILÊNCIO

O pai que de madrugada deixava a casa, com a bolsa presa pela correia ao ombro esquerdo, conduzindo a marmita do almoço:

- Até mais tarde, Juliana.

- Vai com Deus, Ismael.

A figura magra, alta, apressada deixava a salinha e descia a escadaria defronte a casa, ainda deserta de outros passos dos moradores vizinhos. Cães latiam em coro nos quintais. Galos cantavam e ele, menino, desperto, seguindo a cena.

- Vai dormir Antônio. Ainda é muito cedo. Esse menino deu pra se levantar a essa horas... Vai, vai pra cama!

Reclamava-lhe a mãe. Atendia-a. Na cama, punha a vista no teto de telhas inglesas, acompanhando as trevas que, aos poucos, iam sendo substituidas por a luminosidade do novo dia. E ouvia o caminhar da mãe na sala vizinha, em direção ao quarto à esquerda do corredor que se ligava com a outra sala e a cozinha. Por que o pai não dava um jeito de não ter de ir trabalhar na cidade de Igarassu, longe? Por que o pai não fazia como o do seu amigo de brincadeiras, o Valdir, que tinha o trabalho aqui mesmo no bairro? Por que... Fechava os olhos e logo adormecia.

Despertava com os passos novamente da mãe pela casa. Os cães ainda latindo. Já então ouvia o som dos motores dos carros e motos na rua transversal, lá embaixo, após a descida da escadaria. A manhã se adiantava.

- Antônio escove os dentes e venha tomar o café.

- Sim, mamãe.

A refeição: café, pão, margarina, o ovo frito.

De costas, a mãe cuidava do almoço.

- A essa hora o seu pai já deve ter chegado... Ah, se ele conseguisse um trabalho aqui mais perto!

Alimentava-se, refletindo. A mãe continuava falando:

- O seu pai é um sacrificado, cumpridor de suas obrigações. Um homem!

De repente, então se voltava:

- Terminou? Agora vista a roupa da escola e saia! Quero que você estude, seja gente. Tenha, no futuro, uma vida deferente, não seja assalariado, igual ao seu pai.

Logo, sobraçando a sacola com livros e cadernos, também se despedia:

- Até mais tarde, mamãe.

- Vai filho, vai com Deus.

À porta ela ficava vendo-o descer a escadaria. O sol mal nascido; os moradores também vencendo os degraus; cruzando-se no morro; subindo e descendo outras escadarias às laterias. Sim, em tudo despontava a vida. Descia.

- Pensando em quê, meu velho?

Volta-se à mulher magra, de fisionomia ainda mantendo os traços bem detalhados de outrora, a cabeça grisalha e, sorri:

- Lembrando-me de quando era menino. Do meu pai saindo de madrugada para trabalhar. De mamãe acordada, à beira do fogão, cuidando do almoço; eu descendo os degruas da escadaria, indo para a escola...

- Lá vem você de novo com essas histórias!

- Pois é, pois é, Fátima.

Silenciam. Ele dirige. A mulher tem a atenção à frente, seguindo os veículos no trânsito agitado da manhã. O sol brilhando no céu, banha tudo com sua luz forte de verão. Adiante, o sinal. O carro estaciona. Então acontece: a pancadinha no vidro fumê e o martido desce-o, para saber o motivo do toc-toc-toc e... Depara-se com a arma apontando-lhe o rosto:

- Vai "coroa", a carteira e o celular!

- Mas...

- Atende Antônio!

- Bora "coroa"!

Ele se enverga de lado buscando a carteira e o aparelho no cofre junto à direção e quem está fora julgando-o buscar a arma, então dispara... E foge, com a volta e a cumplicidade do sinal se abrindo.

- Antônio... Meu Deus!

A moto distancia-se entre os demais veículos, e a mulher perplexa tem os olhos fixos na cabeça ensanguentada sobre a direção, enquanto o corpo do companheiro se contorce, parando...

- Ajudem-me, por favor!

Abre a porta e sai gritando por socorro. Os carros fream ante a cena inesperada e deixando-os, os motoristas se chegam na solidariedade à dor alheia.

- Quanta violência!

- Que barbaridade!

- Será que ele ainta tá vivo?

- Chamem uma ambulãncia!

- Seu guarda ajude aqui!

Vozes. O rosto conhecido. A luz do sol, morninha. A figura do pai com a bolsa ao ombro. A mãe mandando-o retornar ao leito. O menino descendo a escadaria, contando os degraus. Essa sonolência. Os olhos pesando, pesando... Fecha-os. Sente-se então leve, como se flutuasse, flutuasse.

Então, em volta paira o silêncio dos curiosos-solidários que entendem.

Sim, entendem.

***

Paulo Carneiro
Enviado por Paulo Carneiro em 21/04/2009
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