FARRAPOS DA VIDA - ROMANCE - CAP.II
O Dr. Azureira tivera uma manhã de muito trabalho. Estivera até às 14 horas no tribunal, defendendo dois indivíduos de contrabandear gado bovino de Espanha. Fora a quarta audiência e todas elas de acalorados debates. O caso tinha-se tornado famoso na zona fronteiriça pelos milhares de contos envolvidos e a posição social das pessoas implicadas. O julgamento arrastava-se há mais de quinze dias e obrigara-o a pedir vários adiamentos para proceder a diversas investigações, com vista a desmontar o esquema que, a ser provado, levaria os seus constituintes ao cumprimento de penas de prisão consideráveis, além das fabulosas agravantes pecuniárias. Felizmente e graças ao seu esforço tudo decorrera como previra. Estava, por isso, muito satisfeito, contudo, o trabalho do advogado não termina com os louros duma vitória. Havia sempre mais a fazer.
Comera uma refeição frugal no restaurante ao lado e logo subira para o seu escritório, a fim de se debruçar sobre outros processos. Esta era a vida do eminente causídico numa pequena cidade transmontana: trabalho, sempre trabalho! Às vezes arrependia-se de não ter seguido a carreira de notário ou de conservador. Mas não! Isso não seria para ele! Sempre fora demasiado activo para deixar-se seduzir pela fastidiosa rotina dum gabinete, a cumprir horários e a assinar papéis. Dos três funcionários que tinha ao seu serviço, além de mais dois colegas e que estavam ausentes numa outra comarca, um encontrava-se doente e outro saíra para reconhecer umas assinaturas. A secretária era a única que nunca saía do seu posto. Estava neste preciso momento a prestar esclarecimentos à Mariazinha, que tinha chegado havia uns minutos. Esta, após breve troca de palavras com a empregada, aproximou-se da
porta, bateu três vezes para se fazer anunciar, e entrou no gabinete do marido. Com uma eloquência de causar inveja ao advogado, apelou para os seus dotes filosóficos e explanou, com a maestria da docente experiente, a objecção do filho para o cumprimento do serviço militar.
- Muito boas tardes - saudou o Azureira à guisa de resposta ao beijo da mulher.- Toda essa retórica leva-me a crer existir uma necessidade premente de descarregares o fardo que trazias como te estivesse a queimar. Dissertas como só tu sabes, não me deste, contudo, a tua opinião, mas penso que vens como defensora dele e não apenas como expositora do ideal.
- Basta olharmos para a lógica do raciocínio. Uma vez que não pretende seguir a carreira das armas, como nós dizemos na disciplina de História, o exército em nada lhe será benéfico. Que pensa sobre isto o ilustre homem da Justiça? - rematou sorridente.
- Não vou dizer-te que seja um perfeito desconchavo o que o nosso efebo pretende. Usando da sinceridade que sempre nos orientou e de que muito nos orgulhamos, mentiria se te dissesse que não desconfiasse, cá no íntimo, que um dia teria de enfrentar esta situação. A questão consiste em nunca nos termos disposto a analisar a relutância do Ismael sobre o serviço militar e não serei eu quem irá transformar os seus desejos, e pelos vistos também os teus, numa tragédia.
De seguida sentou-se à secretária e pôs-se a meditar: "Gostava, é certo, que o meu filho fosse tropa, até pela razão de ser alistado como cadete, mas ponderando bem serão dois anos de atraso no curso de Direito. Se ele gostasse da carreira das armas..., como diz a mãe. Assim...".
- Então, querido! - exclamou a esposa.- Estás tão calado...
- Estava a pensar.
E num repente, com o semblante determinado, demonstrando já ter passado uma esponja no seu imaginário, afirmou resoluto:
- Vou imediatamente falar com o desembargador Quintela. Penso ser parente próximo dum coronel médico, no Porto, pessoa,eventualmente a mais indicada, para resolver o problema. Ademais há uns tempos que não o vejo e deve estar ávido por uma cavaqueira. - Eu sabia que o bom senso acabaria por vencer, apesar de nesta guerra não haver derrotados. Feita a felicidade do Ismael, diz-me agora como decorreu esse julgamento que tanto te preocupava.
- Ganhámos! - respondeu eufórico o marido - ou pensas que estaria tão receptivo às vossas ideiazinhas extravagantes se ainda continuasse absorvido pelo
O Dr. Azureira tivera uma manhã de muito trabalho. Estivera até às 14 horas no tribunal, defendendo dois indivíduos de contrabandear gado bovino de Espanha. Fora a quarta audiência e todas elas de acalorados debates. O caso tinha-se tornado famoso na zona fronteiriça pelos milhares de contos envolvidos e a posição social das pessoas implicadas. O julgamento arrastava-se há mais de quinze dias e obrigara-o a pedir vários adiamentos para proceder a diversas investigações, com vista a desmontar o esquema que, a ser provado, levaria os seus constituintes ao cumprimento de penas de prisão consideráveis, além das fabulosas agravantes pecuniárias. Felizmente e graças ao seu esforço tudo decorrera como previra. Estava, por isso, muito satisfeito, contudo, o trabalho do advogado não termina com os louros duma vitória. Havia sempre mais a fazer.
Comera uma refeição frugal no restaurante ao lado e logo subira para o seu escritório, a fim de se debruçar sobre outros processos. Esta era a vida do eminente causídico numa pequena cidade transmontana: trabalho, sempre trabalho! Às vezes arrependia-se de não ter seguido a carreira de notário ou de conservador. Mas não! Isso não seria para ele! Sempre fora demasiado activo para deixar-se seduzir pela fastidiosa rotina dum gabinete, a cumprir horários e a assinar papéis. Dos três funcionários que tinha ao seu serviço, além de mais dois colegas e que estavam ausentes numa outra comarca, um encontrava-se doente e outro saíra para reconhecer umas assinaturas. A secretária era a única que nunca saía do seu posto. Estava neste preciso momento a prestar esclarecimentos à Mariazinha, que tinha chegado havia uns minutos. Esta, após breve troca de palavras com a empregada, aproximou-se da
porta, bateu três vezes para se fazer anunciar, e entrou no gabinete do marido. Com uma eloquência de causar inveja ao advogado, apelou para os seus dotes filosóficos e explanou, com a maestria da docente experiente, a objecção do filho para o cumprimento do serviço militar.
- Muito boas tardes - saudou o Azureira à guisa de resposta ao beijo da mulher.- Toda essa retórica leva-me a crer existir uma necessidade premente de descarregares o fardo que trazias como te estivesse a queimar. Dissertas como só tu sabes, não me deste, contudo, a tua opinião, mas penso que vens como defensora dele e não apenas como expositora do ideal.
- Basta olharmos para a lógica do raciocínio. Uma vez que não pretende seguir a carreira das armas, como nós dizemos na disciplina de História, o exército em nada lhe será benéfico. Que pensa sobre isto o ilustre homem da Justiça? - rematou sorridente.
- Não vou dizer-te que seja um perfeito desconchavo o que o nosso efebo pretende. Usando da sinceridade que sempre nos orientou e de que muito nos orgulhamos, mentiria se te dissesse que não desconfiasse, cá no íntimo, que um dia teria de enfrentar esta situação. A questão consiste em nunca nos termos disposto a analisar a relutância do Ismael sobre o serviço militar e não serei eu quem irá transformar os seus desejos, e pelos vistos também os teus, numa tragédia.
De seguida sentou-se à secretária e pôs-se a meditar: "Gostava, é certo, que o meu filho fosse tropa, até pela razão de ser alistado como cadete, mas ponderando bem serão dois anos de atraso no curso de Direito. Se ele gostasse da carreira das armas..., como diz a mãe. Assim...".
- Então, querido! - exclamou a esposa.- Estás tão calado...
- Estava a pensar.
E num repente, com o semblante determinado, demonstrando já ter passado uma esponja no seu imaginário, afirmou resoluto:
- Vou imediatamente falar com o desembargador Quintela. Penso ser parente próximo dum coronel médico, no Porto, pessoa,eventualmente a mais indicada, para resolver o problema. Ademais há uns tempos que não o vejo e deve estar ávido por uma cavaqueira. - Eu sabia que o bom senso acabaria por vencer, apesar de nesta guerra não haver derrotados. Feita a felicidade do Ismael, diz-me agora como decorreu esse julgamento que tanto te preocupava.
- Ganhámos! - respondeu eufórico o marido - ou pensas que estaria tão receptivo às vossas ideiazinhas extravagantes se ainda continuasse absorvido pelo processo?
O Dr. Azureira tivera uma manhã de muito trabalho. Estivera até às 14 horas no tribunal, defendendo dois indivíduos de contrabandear gado bovino de Espanha. Fora a quarta audiência e todas elas de acalorados debates. O caso tinha-se tornado famoso na zona fronteiriça pelos milhares de contos envolvidos e a posição social das pessoas implicadas. O julgamento arrastava-se há mais de quinze dias e obrigara-o a pedir vários adiamentos para proceder a diversas investigações, com vista a desmontar o esquema que, a ser provado, levaria os seus constituintes ao cumprimento de penas de prisão consideráveis, além das fabulosas agravantes pecuniárias. Felizmente e graças ao seu esforço tudo decorrera como previra. Estava, por isso, muito satisfeito, contudo, o trabalho do advogado não termina com os louros duma vitória. Havia sempre mais a fazer.
Comera uma refeição frugal no restaurante ao lado e logo subira para o seu escritório, a fim de se debruçar sobre outros processos. Esta era a vida do eminente causídico numa pequena cidade transmontana: trabalho, sempre trabalho! Às vezes arrependia-se de não ter seguido a carreira de notário ou de conservador. Mas não! Isso não seria para ele! Sempre fora demasiado activo para deixar-se seduzir pela fastidiosa rotina dum gabinete, a cumprir horários e a assinar papéis. Dos três funcionários que tinha ao seu serviço, além de mais dois colegas e que estavam ausentes numa outra comarca, um encontrava-se doente e outro saíra para reconhecer umas assinaturas. A secretária era a única que nunca saía do seu posto. Estava neste preciso momento a prestar esclarecimentos à Mariazinha, que tinha chegado havia uns minutos. Esta, após breve troca de palavras com a empregada, aproximou-se da porta, bateu três vezes para se fazer anunciar, e entrou no gabinete do marido. Com uma eloquência de causar inveja ao advogado, apelou para os seus dotes filosóficos e explanou, com a maestria da docente experiente, a objecção do filho para o cumprimento do serviço militar.
- Muito boas tardes - saudou o Azureira à guisa de resposta ao beijo da mulher.- Toda essa retórica leva-me a crer existir uma necessidade premente de descarregares o fardo que trazias como te estivesse a queimar. Dissertas como só tu sabes, não me deste, contudo, a tua opinião, mas penso que vens como defensora dele e não apenas como expositora do ideal.
- Basta olharmos para a lógica do raciocínio. Uma vez que não pretende seguir a carreira das armas, como nós dizemos na disciplina de História, o exército em nada lhe será benéfico. Que pensa sobre isto o ilustre homem da Justiça? - rematou sorridente.
- Não vou dizer-te que seja um perfeito desconchavo o que o nosso efebo pretende. Usando da sinceridade que sempre nos orientou e de que muito nos orgulhamos, mentiria se te dissesse que não desconfiasse, cá no íntimo, que um dia teria de enfrentar esta situação. A questão consiste em nunca nos termos disposto a analisar a relutância do Ismael sobre o serviço militar e não serei eu quem irá transformar os seus desejos, e pelos vistos também os teus, numa tragédia.
De seguida sentou-se à secretária e pôs-se a meditar: "Gostava, é certo, que o meu filho fosse tropa, até pela razão de ser alistado como cadete, mas ponderando bem serão dois anos de atraso no curso de Direito. Se ele gostasse da carreira das armas..., como diz a mãe. Assim...".
- Então, querido! - exclamou a esposa.- Estás tão calado...
- Estava a pensar.
E num repente, com o semblante determinado, demonstrando já ter passado uma esponja no seu imaginário, afirmou resoluto:
- Vou imediatamente falar com o desembargador Quintela. Penso ser parente próximo dum coronel médico, no Porto, pessoa,eventualmente a mais indicada, para resolver o problema. Ademais há uns tempos que não o vejo e deve estar ávido por uma cavaqueira. - Eu sabia que o bom senso acabaria por vencer, apesar de nesta guerra não haver derrotados. Feita a felicidade do Ismael, diz-me agora como decorreu esse julgamento que tanto te preocupava.
- Ganhámos! - respondeu eufórico o marido - ou pensas que estaria tão receptivo às vossas ideiazinhas extravagantes se ainda continuasse absorvido pelo processo? - Ainda bem. Eu deixei de propósito esta pergunta para o fim, para que não fosse interpretada como oportunista ou chantagista.
Saíram do escritório. O Azureira foi buscar o seu carro, estacionado em frente ao campo da feira e a sua mulher voltou ao "Dauphine", seguindo imediatamente para casa na esperança de ainda ali encontrar o filho e dar-lhe a apetecida notícia da boa receptividade por parte do pai. Estava arrependida de não lhe ter dito para esperar, mas nunca supusera que tudo fosse afinal tão fácil.
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O Ismael que, como vimos, ficara em casa, dirigiu-se para a biblioteca. Uma aparatosa sala rectangular decorada com cortinados de veludo avermelhado, pendentes de sanefas de cetim cor de céu, mobilada com três encorpadas mesas de nogueira trabalhadas no estilo "D.João V" e uma boa dezena de estantes condizentes, abarrotadas de livros, mas classificados a preceito. Foi até à mesa que lhe estava destinada para estudo e ali arrumou cuidadosamente os livros que utilizara naquele dia, retirando "in continenti" os do dia seguinte, guardando-os na respectiva pasta. Deixou de lado um manual de latim, que iria levar consigo para dar uma vista de olhos no café, cadeira de que aliás pouco gostava, mas da qual teria ponto a seguir, precisando de melhorar a nota. Embora se sentisse mais aliviado por ter tido a oportunidade de conversar com a mãe, não deixava de continuar apreensivo. Receava não ser pacífico o acolhimento do pai à sua proposta. Olhou para o relógio, um "Longines" de bolso, verdadeira relíquia oferecida pelo avô materno pouco antes de expirar, era ele ainda uma criança. "São apenas quatro horas", murmurou. "A malta só costuma aparecer no café lá pelas cinco... e se eu esperasse o regresso da mãe?..."
Estava inquieto, sem poder de decisão. Resolveu que o melhor seria ficar mais um bocado. Quanto mais cedo ficasse liberto deste pesadelo, mais cedo também voltaria a tranquilidade. A incerteza é inimiga do raciocínio. Voltou à biblioteca e abriu ao acaso o calhamaço de latim. Olhou... as letras saltitavam aos seus olhos. Vagueou pela página aberta e lá no fundo, em itálico, muito a despropósito para o momento, leu: "cogito, ergo sum" (penso, logo existo). Reflectiu sobre este princípio filosófico de Descartes e repetiu a frase em voz alta; fechou o livro. Foi tomar um duche.
Mais refrescado fisicamente, foi sentar-se junto ao caramanchão no pátio da cozinha. A criada andava num vaivem constante, dum lado para o outro, e isso irritava-o. Queria que o tempo passasse depressa, mas os ponteiros do relógio não se mexiam. De novo se levantou para ir ligar a telefonia, mas eis que nesse instante ouve o ruído dum automóvel a aproximar-se. "Só pode ser a mãe", pensou. Alargou o passo e foi à varanda. Lá estava ela a estacionar o carro em frente ao portão. Num ápice pegou no livro e desceu, veloz, os mesmos 22 degraus que o separavam agora da porta da entrada. Atirou-se aos braços da mãe. O semblante dela já deixara transparecer que a missão tinha sido levada a cabo com êxito.
- Aquiesceu quase sem relutância - confidenciou-lhe a mãe.- O teu anjo-da-guarda tem trabalhado hoje muito para ti. Coincidentemente o pai está muito bem humorado devido a um grande sucesso alcançado no tribunal. Vai neste momento a caminho da casa do desembargador Quintela, por ser a pessoa certa para a resolução do problema.
- Obrigado, minha rica mãe. Passei um mau bocado. Agora, mais tranquilo, vou até ao café estudar um pouco de latim.
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Voltemos ao Dr. Azureira, junto do seu "Dodge" preto, de seis cilindros, a contemplá-lo furioso, olhando perplexo para um dos pneus esvaziado.
- Esta agora! - exclamou em voz alta.
E olhando para o largo em frente, ao seu engraxador com veemência:
- Oh Macias! Chega aqui. Faz-me o favor de ires à garagem do Milton e pede-lhe que mande consertar este pneu e depois que deixem o carro na minha casa. Traz-me também um táxi para me levar a Labrões.
Ao mesmo tempo pegou na carteira e deu-lhe uma moeda de cinco escudos como gorjeta.