FARRAPOS DA VIDA -ROMANCE - CAP. I
Capítulo primeiro
Um nervoso miudinho abatera-se sobre o Ismael Azureira quando constatou a realidade do edital afixado na sede da Junta da Freguesia, que o compelia a apresentar-se, daí a uns meses, às inspecções militares. Ocorreriam em Outubro. Ele tinha a consciência plena de que tal evento teria de acontecer infalivelmente ao atingir os dezoito anos de idade, mas fazia sempre por esquecê-lo, deixá-lo adormecido, como que a hibernar no seu cérebro, não querendo pensar ou talvez mesmo admitir que um dia poderia ter de envergar aquela farda cinzenta de cotim, desprovida de calor humano, e aturar uma disciplina inflexível, insensível até, pelo que lhe diziam, imposta por regras implacáveis. Pelo contrário, seu pai argumentava com certa frequência ser seu maior desgosto o facto de não ter cumprido o serviço militar, afirmando com convicção, com uma crença doentia até, que, qualquer que fosse a cultura ou aptidões académicas de cada um, a tropa era a melhor escola que o homem poderia usufruir na vida. Quando pensava neste desencontro de ideais, o Ismael sentia um certo entorpecimento por vislumbrar uma acérrima controvérsia tão logo expusesse ao pai as suas intenções, mas teria de pedir-lhe que utilizasse as suas influências para o desobrigar desse cívico dever."Falarei com a minha mãe", disse para consigo. "Hoje far-lhe-ei um pouco de companhia ao serão e tudo ficará resolvido. Estou certo da sua compreensão e implícita consecução para ilustrar argumentos que sensibilizarão o meu pai. Nada melhor do que ir tomar um café para desanuviar o espírito". Pouco passava das três da tarde e havia acabado de chegar das aulas. Esse ano, por ser o último, estava a ser muito trabalhoso, com a agravante das explicações extras para o exame de admissão à faculdade. Iria seguir a carreira da advocacia, a exemplo do pai. Tão absorto ia em seus pensamentos que nem reparou ter-se afastado do itinerário habitual para o café e quando deu por si estava a subir a íngreme ladeira dos "Remédios", acesso exclusivo a um campo agrícola situado nas traseiras da residência. "Como pode ter isto acontecido?", interrogou-se. "Eu que nunca utilizei este caminho...Já que aqui estou vou deixar a pasta em casa".
A residência do Ismael, um velho casarão de aspecto solarengo, erigia-se num dos pontos mais altos da cidade. Erguia-se imponente sobre uma vertente e daí se avistavam a vetusta Sé, mesmo no centro, e as pequenas moradias dos caseiros da quinta de Avelãs, que, defronte, encosta acima no monte de S. Silvestre, formavam com a nascente da cristalina água que, descendo em cascatas, ia desaguar ao riacho, um quadro de rara beleza, tema de indeléveis composições de consagrados pintores e poetas. As suas chaminés fumegantes, equilibrados complementos das acolhedoras lareiras, deixavam-nos sentir, em toda a essência, os toros dos carcomidos negrilhos sempre em brasa, única fonte de aquecimento daquelas almas e dos seu fiéis cães de guarda, inseparáveis companheiros na labuta diária do pastoreio e, também, para tornar mais apetecíveis umas assaduras de vitela mamona, que por aquelas bandas têm outro sabor. O Ismael, não obstante sempre ali ter morado, não se cansava de admirar quão generosa fora a Natureza e já sentia saudades por saber que não tardaria a deixá-la, quer fosse prestar o serviço militar quer fosse frequentar a universidade."É certo que virei passar os fins-de-semana", cogitava, "mas nunca será igual...". E lá continuou a subir a ladeira até que, ao contornar um barranco junto ao muro gradeado, avistou a mãe, vinda em sentido contrário, e se dirigia para o portão dos ciprestes, único acesso à porta principal da casa e assim chamado por ser precedido duma boa dezena dessas crupessáceas, ornamento principal da ruela de entrada. "Estou em maré de sorte", pensou ele. "Afinal o acaso trouxe-me na hora apropriada e à minha mãe também, porque neste momento ela devia estar no colégio. Não vou deixar fugir a oportunidade...". E sem mais delongas alargou o passo e dirigiu-se para a entrada da casa, onde a sua mãe o aguardava e a quem cumprimentou, osculando-lhe as costas da mão.
— Tão cedo, mãezinha!
— Sim, filho - retorquiu a mãe. Hoje tivemos reunião de Conselho e não dei as duas últimas aulas. Refira-se que a mãe, Eugénia Maria, mas conhecida pelos mais íntimos por Mariazinha, era licenciada em Histórico-Filosóficas e dava aulas no Colégio "S.Francisco de Assis".
— Tu também vieste cedo - continuou.
O Ismael, que se sentia muito mais à vontade conversando com ela do que com o pai, gracejou e contou-lhe a peripécia do seu engano no itinerário:
— Isto só pode ter sido obra do meu anjo-da-guarda para que pudesse dialogar com a mãe com mais tranquilidade.
Conhecia bem os seus sentimentos religiosos e sabia que falando-lhe em termos sublimados deixá-la-ia mais acessível à compreensão dos seus propósitos.
— Pois é, mãezinha! Tenho um assunto muito importante a revelar-lhe. Passei pela Câmara e no gabinete da Junta está afixado o edital dos MANCEBOS (já começo a ser tratado assim...)que vão ser inspeccionados em Outubro. Como sabe eu nunca tive vontade de seguir a vida militar e ao cumprir o serviço obrigatório lá irão dois anos de estudos, se não for o curso completo.
— Na verdade é uma situação delicada - adiantou a mãe -, pois sabes quanto o teu pai gostaria de ver-te com o uniforme do exército. Até me tinha falado que talvez conseguisse um pedido para o cumprires em Infantaria (parece-me que é isso) no quartel daqui, contudo, ponderando mais racionalmente, a razão está do teu lado. Vou passar pelo escritório e tentar convencê-lo. Não sei se será a melhor altura. Ele tem andado bastante atarefado lá pelo tribunal com um julgamento que vai longo. Logo se verá. Deves também abordá-lo, mas depois previno-te se será oportuno à hora do jantar.
Deixaram o "hall" e ambos subiram os 22 degraus que os separava do patamar e seguiram por um comprido corredor, de cujas paredes pendiam magníficos quadros pictóricos de artistas anónimos, mas que para um leigo na matéria poderiam passar por autênticos "Renoir", tanta similitude parecia existir com o célebre "Caminho no Bosque" e outras paisagens do famoso pintor francês. Uma fidelíssima cópia do "Retrato de Madame Claude Monet" sobressaía, no seu azul celeste, de entre os demais. Entraram fugazmente nos respectivos quartos, saindo primeiro a mãe, que foi à garagem buscar o "Dauphine" para ir encontrar-se com o marido.