IRREVERSÍVEL

São Paulo, fevereiro de 1992.

Tinha os olhos arregalados, andava sempre com os ombros contraídos. Os cabelos lisos já não mais levitavam com a suave brisa. Vestia-se de gótico e andava sempre acompanhado de seus sonhos.

Não falava com ninguém. Era o primeiro a chegar à escola. O porteiro já o conhecia desde criança. De tradição evangélica, Daniel andava com uma bíblia metida entre os braços, o que lhe dava um aspecto religioso contrastando com o seu trajar.

Observava os meninos. Tachavam-no de viado. Daniel não se importava. No seu mundo só havia ele. Até que ela chegou.

Sam

- Cara, vamos jogar!

Daniel olhou-o e correu.

Júlia

- Meninas, olha a bicha tá louca.

O grupinho deu um sorrisinho de deboche. Daniel tropeçou em uma delas.

Carlos

- Sam, você é gay?

- Vá se foder.

- Então por que você fica dando bola praquele viado do Daniel?

- Por nada.

- Todo mundo vê ele te observando.

O jogo estava empatado. Habitualmente, ele era o último a ser escolhido. A bola foi em direção a Daniel, ele ficou estático. Ponto da vitória dos adversários.

- Bichona, vê se aprende a jogar. Vai brincar de casinha com o Sam, ele vai adorar.

Daniel saiu cabisbaixo. O que mais irritava nele era a mania de não revidar de nada. Agüentava calado tudo que lhe diziam. Os meninos voltaram a jogar.

Sam e Daniel

- Não liga pra eles não, Dan.

Daniel o olhava por entre as mechas de cabelo. Olhava-o fixamente.

- Por que você não diz nada?

Daniel continuava encarando-o.

- Sam, vamos jogar! Dessa vez sem essa bichona!

Daniel levantou-se. Beijou a bochecha de Sam.

- Você me interpretou errado, cara. – disse Sam afastando-se.

Uma lágrima escorreu do olho ainda fixo em Sam.

- Cara, vamos jogar!

Ela e Daniel

Sam retirou-a detrás do armário. Segurou-a. Olhou-se no espelho. Despiu-se. Exibia-se a ela. Encostou-a na parede e começou a se tocar.

Júlia

- Como o Carlos é bem dotado, meninas.

As meninas da roda excitaram-se com tal revelação de Júlia.

- Meninas, olha a bicha tá louca.

Daniel corria sem rumo aos prantos. Esbarrou em Júlia. Os dois caíram.

- Olhe por onde anda, bicha! Veja o que você fez!

Daniel olhou-a como de costume.

- E tem mais, bichinha, vê se fica longe do Sam. Ele é meu. Não vou dividir ele com mais ninguém, ainda mais com um viadinho qualquer. Sai fora!

As meninas da roda riam solto. Daniel as encarava como se nada tivesse acontecendo.

- Tá chorando, linda? Que foi dessa vez? Deixa eu adivinhar! Levou um fora do seu namoradinho invisível. Não? Ou foi do Sam?

A face de Daniel foi marcada por um cuspe.

Prévia

Dançava para ela. Sorria. Pulava. Nu, descobria com ela as partes do corpo. Parou. Entristeceu. Amarrou uma faixa verde na testa. Colocou-a numa mochila.

Sam

- Cara, desculpa não quis te magoar. Mas é que você confundiu as coisas.

E Daniel encarou-o.

- Me prometa que não vai vir aqui mais hoje.

Sam surpreendeu-se pela primeira resposta em anos, e pelo pedido estranho. Daniel abraçou-o. Sam retribui o abraço.

Daniel saiu em direção à porta. Passou e trancou-a.

Ela

Daniel começou a correr. Tirou-a da mochila. Carregou-a de balas vermelhas.

Júlia e Carlos

- Gostou de ontem?

- Adorei. – respondeu Júlia abaixando os olhos maliciosos.

Carlos puxou-a para um dos banheiros.

Primeiro andar

Daniel atirou em seis pessoas. O sangue jorrava em sua face. Não poupava ninguém.

Segundo andar

- Dan, o que você tá fazendo?

O tiro acertou a cabeça de Amanda em cheio.

Diretoria

- Tiro! Chamem a polícia!

Sam

- Prometa que não vai vir aqui mais hoje.

Sam abraçou-o com força. Como um pedido de desculpas. Daniel estava estranho. Viu-o trancar a porta.

Maria

- Daniel, venha jantar!

Daniel saiu do quarto sorridente, com a faixa presa à testa. Apontou a arma na direção da avó. Um barulho surdo ecoou pela vizinhança.

Carlos e Júlia

Júlia estava agachada. Carlos gemia de prazer. A porta do banheiro abriu-se de repente. Daniel chorava desesperado. Pegou as últimas balas da mala. Recarregou a arma. Os gemidos cessaram com o barulho seco do recarregar.

- Quem está aí? – Carlos perguntou.

Daniel virou-se. Caminhou lentamente até a porta do box.

Sam

Sam rodeou a portaria. Entrou correndo pelos corredores. Os poucos que restavam vivos choravam em busca por uma saída. Ouviu-se sirene de polícia. O corredor que levava à escada estava ensangüentado devido aos quase vinte cadáveres espalhados. O time de futebol, que acaba de sair do banho espalhavam-se pelo chão pintado de vermelho.

Daniel, Carlos e Júlia

- Daniel, o que é isso, cara?

Carlos estava nu. Júlia tinha posto os seios para fora, mas a parte de baixo continuava intacta. Daniel encarou-os. Apontou a arma. Disparou. As duas balas acertaram a cabeça de Júlia e Carlos, nessa respectiva ordem. Júlia até o último momento pedia desculpas a Daniel. Daniel saiu correndo, sorrindo.

Sam

Subia as escadas desesperado. Parou apoiando-se nos joelhos. Ouviu gritos. Logo após, dois tiros. Correu.

Daniel e Sam

Daniel ia correndo em direção às escadas, ia fugir, quando ouviu passos em sua direção. Apontou a arma. Disparou. A pessoa caiu. Daniel continuou a correr. Passou pela pessoa. Parou. Balançou a cabeça. Começou a chorar. Desesperado. Sam. Tinha matado Sam. Beijou a boca do cadáver aos prantos, pedindo desculpas. Gritava. Ouviu passos em sua direção. Colocou-a apontada rumo à sua cabeça. Disparou aos prantos. Caiu ao lado de Sam. A bíblia caiu na poça de sangue que jorrava de Sam.

Texto de Marco Aurélio.

Baseado em fatos reais – Columbine High School.

Interpretado pela primeira leitora deste texto como uma paráfrase ao filme de Gus Van Sant – Elefante.