OS COMPARSAS DAS TREVAS
1
Chegou em casa com o rosto vermelho, tristonho, sem palavras. A mulher entendeu-o: novamente nada conseguira. Contendo-se para não chorar, esquentou a pouca comida.
Após o banho, descamisado, mantendo o mutismo, ele sentou-se à mesa.
O menino também calado sentou-se.
Depois, pondo a sopa e a garrafa com o café, ela ocupou a cadeira defronte do marido.
Através da porta aberta, da sala, via o morro com as escadarias e as casas construídas sem planejamento e que, com as luzes acesas de seus mil olhinhos emprestavam uma visão bonita à noite.
Devagar, alimentavam-se.
Meu Deus, até quando o Carlinhos continuará desempregado? Se não fosse a ajuda do pai dele, Seu Antônio... Contudo, enquanto vivos, temos de acreditar no amanhã, na esperança.
Como se ao fitá-lo, temesse ofendê-lo, disfarçando seguia-lhe os gestos lentos. Via a cabeleira alourada, cheia, a testa larga, vincada do que sentia, a boca sem ânimo, mastigando devagar a comida... Os braços fortes, de pulseira negra envolta pelos cabelos e, de repente, sentiu o desejo... Como se o evitando, levantou-se nervosa.
Então, ele falou:
- Me encontrei hoje, com o Romeu.
Interessada, virando-se, ela indagou:
- Romeu?
Sorrindo, o companheiro detalhou-se:
- Romeu, um baixinho, morenão, gordo, que trabalhou comigo na fábrica, e que, uma vez, almoçou aqui.
Aí ela se lembrou:
- Ah, sim.
- Pois é.
- E?
- Bom... Me prometeu uma vaga na companhia em que está trabalhando.
- Deus queira!
Erguendo-se, ele concluiu:
- É, vamos esperar.
Cruzou então a salinha, a outra, o terraço e, logo batendo o portãozinho, ganhou a rua.
O filho manteve-se à mesa, pensando.
Ah, como seria bom se o pai se empregasse! Trabalhando, deixaria de vê-lo pelas barracas, fazendo-se de amigo, humilhando-se, para beber de graça.
- Carlinhos, ainda estás "parado?".
Alguém indagava, numa censura.
O pai então com o rosto avermelhando-se, e o sorriso sem jeito:
- Ainda, cara. O problema é a idade: estou com 41.
O indiscreto, sorrindo, aquiescia:
- É, depois dos quarenta, o trabalhador fica "escanteado", fora do mercado. Mas, vai querer "outra?".
Aceitando, o pai tomava-a de um gole rápido.
Gargalhadas. Os amigos gracejavam:
- O bicho é bom de copo!
- Também, meu, com esse corpão...
- Pra trabalhar não, mas, pra beber...
Falou por último aquele indiscreto malicioso. O pai não retrucava e calado, tristonho, esperava a nova dose.
Tudo assim testemunhando, o menino devagar se afastava, evitando a próxima cena, que diminuiria a imagem do pai.
- Acabou, Edinho?
Com a indagação, sua mãe reentrega-o ao presente:
- Sim mãe, acabei.
Ela então retirando os pratos, retrocedeu à cozinha, enquanto o filho também abandonava a salinha.
Novamente o portão bateu. Sozinha, se entregou às reflexões, enquando a água descendo da torneira, banhava os pratos, talheres e suas mãos brancas, magras.
Desocupado, Carlinhos - segundo lhe contaram - ultimamente, anda em companhia de uns tipos suspeitos, bebendo em barracas... Teme que de repente, possa suceder algo ruim ao marido, porque nos últimos dias, o bairro encontra-se muito violento: raro é o dia no qual não ocorre uma "batida policial" ou mesmo, assassinato.
- Que Deus o proteja!
Concluída a obrigação, sentando-se à frente da televisão, acompanhava a novela e, com um peso no coração, esperava o regresso do companheiro e do filho. Assim, até quando?
2
Os motoqueiros estacionam na esquina.
Então, o negro e forte:
- O "encomendado" é aquele ali, que bebe com o alourado.
Aí, o outro, um sarará magro:
- Ô moreno, o galego entra também no "queima?".
O negro sorrindo:
- Que jeito? Entra também.
Ligam os motores e velozes, aproximam-se.
A zoada dos escapes. A perplexidade. As detonações. A pancada violenta na testa, no peito... Tombando para trás, Carlinhos arquejando, aos poucos se imobiliza, ao lado do amigo, que também se aquieta... para sempre.
Logo, surgem os curiosos que, em silêncio, fazem o círculo em volta dos corpos, enquanto distantes as motos se diluem na madrugada cúmplice.
* * *