D E V E R
Ventava, como ventava. As frestas largas das paredes do barraco deixavam entrar luz e frio, a garoa fina enregelava o ínfimo dormitório. João acorda num sobressalto, aos bocejos, espreguiça-se, olha de soslaio, o filhinho que ressona no berço de madeira carcomida, agarrado ao ursinho de pelúcia, presente esquecido de um Papai Noel de outrora.
Veste devagar, peça a peça do fardamento, retira o capote (o cobertor) do filho, passando o guri para junto da mãe. No radinho de pilha, ouve a previsão do tempo. “ __ O dia será ventoso e frio.” Sob a luz bruxeleante da vela lava o rosto na bacia de plástico depositada sobre o caixote de madeira que serve de mesa. Água encanada e luz elétrica, são luxos, para quem vive em condições desumanas, e, sobreviver é dever.
Maria dorme, grávida, oitos meses, pés inchados, companheira de todas as horas, faxineira para ajudar no soldo parco. Beija-os em silêncio, suspira resignado e parte para luta, fechando a porta suavemente, para não acordá-los. No ônibus, os pensamentos fluem:
“ __ Olha companheiro, as coisas vão melhorar, o governo tá atento e o comando preocupado.”
“ __ Essa estória meu pai contava, e na época de meu avó, não foi diferente.
Salta na parada. Entra correndo no Batalhão. No estacionamento elitizado os carros importados e/ou nacionais do ano, pertencentes a seus superiores hierárquicos reluzem na tênue luz do amanhecer. Senhores estes, cujo as principais preocupações são: A marca e a cor do próximo carro, onde passar as próximas férias (Cancun,Bariloche) - Que dúvida cruel-, ou qual a função gratificada de maior valor a ser incorporada nos seus vencimentos, e com a própria saúde que pode ser abalada ao sair do conforto de uma sala com ar condicionado e receber uma lufada de vento no rosto.
O amor pela farda nasceu com João há 34 anos, quando ficava na fila da subsistência, para comprar com “bônus”, azeite e café a mais, para depois vender por menor preço, ( o famoso “touro” no jargão policial), a fim de sustentar o vicio de cigarro e bebida do pai, brigadiano também.
No parque de armas, retira o armamento e o equipamento para controle de tumulto, e embarca junto com seu pelotão no primeiro dos dois caminhões-choque estacionados nos pátio, o outro pelotão executará uma missão de rotina.
Os meios de comunicação noticiam há dias, mais uma invasão de propriedades rurais por colonos sem-terra. E, por decisão judicial foi determinada a reintegração de posse ao proprietário.
A missão de seu pelotão transcorre com êxito, após intensa negociação, os colonos cedem, e deixam a área ocupada sem resistir. João só pensa em retornar para casa, rever sua família e descansar. Na saída do Quartel cumprimenta um colega, e travam breve diálogo sobre as tarefas desenvolvidas:
__ E aí, João! Como foram?
__ Bem. Sem novidades. E vocês, José?
__ Deu um pouco de trabalho, tivemos que usar a força.
__ É a vida, colega. Bom descanso. Tchau.
__ Tchau, cara.
No caminho de volta, para no boteco da esquina, onde o dono lhe vende fiado, compra uma garrafa de cachaça, coca-cola e balas para o piá, mesmo com roupa encharcada, assobia alegremente.
Porém... sempre há um porém, ao dobrar a esquina. Para de chofre, leva as mãos aos olhos e no lusco-fusco da noite que se avizinha não crê no que sua vista enxerga. Onde de manhã era um conglomerado de barracos, não passa de um monturo de escombros, que as máquinas da Prefeitura da Administração Popular botaram abaixo, com o apoio em força de um Pelotão da PM.
Vislumbra a sombra de dois vultos, aproxima-se lentamente: Maria está sentada sobre uma trouxa de pano com as roupas que conseguiu salvar. O menino no colo, olhar perdido no vazio, em choque.
Ele pousa a mão sobre o ombro da companheira, chora copiosamente, o sal de suas lágrimas sulcam o rosto esculpido em granito de ébano, o João que desaloja colono sem-terra, é João da favela, despejado por ser sem-teto.
Um raio risca o horizonte, e no breve clarão, há tempo para ler na placa de prata, com o brasão governamental timbrado, quase submergida, em meio ao lodaçal,
“Honra ao mérito por bravura.”