Lex Talionis

Àquela hora da noite não se fazia questão de notar quem ou o que se movimentava entre as sombras difusas da rua: apenas se pensava que não havia de ser uma pessoa inteligente, ou sensata, quiçá sã. Era tarde, e os únicos seres que ainda perambulavam por lá eram as moscas sobre o entulho e uns restos de vira-lata no beco abandonado. Ratos fuçavam em um saco de lixo jogado por perto, e foram espantados ante o avanço silencioso daquele homem.

O ar se fazia tão frio que o ar que saía de suas narinas e boca se condensava, formando pequenas nuvens de vapor que rapidamente se dissipavam. Vestia uma japona resistente, abotoada até o pescoço, e tinha as mãos em seus bolsos laterais. O eco de seus passos era um som moribundo, fraco, que às vezes se animava quando o peso de seus pés desfazia alguma poça d’água. A rua era um típico reduto de periferia: sentia-se em um gueto. Casebres sem estrutura, sem nem mesmo o luxo de argamassa em suas paredes ou de cor em suas grades e portões enferrujados, enfileiravam-se como dormitórios da massa que nutria o estômago da capital. Mas não era aquilo que mais incomodava Átila. Não naquele momento.

A rua, sem saída, alargava-se no seu final, formando uma espécie de praça de asfalto entre as casas que ali tinham lugar. Viu um carro, viu a casa, e aproximou-se. Dois homens estavam parados, encostados no capô do carro, conversando despreocupadamente. A casa na frente da qual estavam era a melhor da rua, com grade pintada de vinho e paredes caiadas. Havia cerâmica na calçada e na garagem, onde, através do portão vazado, podia-se ver que descansava um carro do ano.

Subiu na calçada duas casas antes, aproximando-se dos homens. Sobressaltaram-se com aquela figura corpulenta que havia surgido do nada, como um gato. Um deles olhou Átila com desconfiança.

- Vim falar com o Mário.

- Ele tá ocupado agora.

- Fala pra ele que o Átila tá aqui.

O de aparência mais velha puxou um celular do bolso traseiro esquerdo da calça, e o fez funcionar como se fosse um walkie-talkie.

- Gonçalves.

- Que é?

- Tem um cara querendo falar com o patrão.

- Quem é?

- Átila. Ele se chama Átila.

- Tá... Espera.

Silêncio. Átila foi alvo dos olhares cabreiros dos homens que lhe faziam companhia do lado de fora da casa. Instantes depois, a mesma voz metálica de antes soou no aparelho após um chiado:

- Pode deixar entrar.

Tão logo ouviu a permissão o homem entrou na casa. Já havia ido lá antes, sabia exatamente aonde ir. Atravessou a garagem, passando por uma porta que dava acesso aos fundos do lote. Lá, separada da casa maior, havia uma pequena casinha com estrutura igualmente superior aos padrões locais. O local era bem iluminado. As duas janelas que davam para o pequeno pátio interno do lote estavam abertas, e de dentro da esquerda saía uma fumaça branca a intervalos quase regulares. Entre as janelas havia a porta de entrada e, ladeando-a, dois rapazes de ar petulante e submetralhadoras em punho. Átila passou por eles sem dizer palavra, entrando no recinto.

Ao redor de uma mesa baixa, rente ao chão, diversas pessoas enrolavam papelotes de maconha e cocaína. À esquerda, uma porta estava fechada. Passou pelas pessoas que trabalhavam na separação da droga, e abriu a porta. Lá, em meio a grandes almofadas recheadas de penas de ganso repousava quem procurava. O local cheirava a menta. Havia um arguile aceso, e por ele um homem jovem fumava. Sorriu de forma irônica ao ver Átila ali, e falou-lhe:

- Essa não é a melhor hora de se fazer visitas, meu caro. Perdeu seu relógio?

- Estava passando por aqui, e resolvi dizer oi.

Ambos esboçaram sorrisos. Átila desabotoou a japona que vestia, revelando uma camisa social preta sob um pulôver cinza, e agachou-se de frente a Mário, que puxou uma boa tragada do narguilé.

- Você está dois dias atrasado.

- Eu sei, eu sei. – disse, após uma longa baforada. – Os negócios não andam bem. Sabe como é, não se faz mais gente de confiança como antigamente. Uns merdas, a maioria. Mas não me esqueci de você, meu caro, não me esqueci.

Ouvia-se, longe, o som do motor de um helicóptero. Mário bateu palmas duas vezes. Um homem, que deveria estar na outra sala contígua ao local onde separavam a droga, apareceu com uma ornamentada caixa de madeira. Entregou-a a Mário, que a abriu. Separou parte de seu conteúdo com cuidado. Manteve o pequeno bolo de dinheiro nas mãos enquanto fechava a caixa e a passava novamente para o empregado. Este saiu, e Mário estendeu o dinheiro a Átila. O homem corpulento pegou o dinheiro, e contava nota por nota quando Mário falou-lhe:

- Quantos anos mesmo você tem?

- Quarenta e dois. Por quê?

- Curiosidade. Meu pai morreu quando tinha sua idade.

- E você?

- Vinte e oito.

- Tá novo pr’um traficante de renome.

- Em negócio de família sempre há mais facilidade.

- Sei... E a mercadoria tem sido útil?

- Sim, sim. Providencial, eu diria. Ao menos ninguém mais pensa que pode travar meus negócios.

Terminou de contar o dinheiro. Dez mil em notas de cem. Guardou o dinheiro no bolso da camisa, olhando para Mário. Ajeitou o último botão da camisa, e falou:

- Bom... Pagamento feito, vou embora.

Mário levantou-se, deixando o narguilé de lado e, pouco atrás de Átila, acompanhou-o até o lado de fora do lote. Átila, ainda de costas para Mário, disse:

- Precisando de mais algum brinquedinho, você...

Calou-se quando ouviu o que pareceu o correr do ferrolho de uma pistola. Sentiu o cano frio de uma arma em sua nuca sem cabelo, e a voz de Mário num grunhido. Átila olhou para os dois que não haviam entrado, e eles tinham suas armas em mãos: o mais velho, uma pistola fosca; o outro, um revólver de grosso calibre.

- Então, é isso?

- Sabe como é. Nada pessoal, caro Átila, mas dez mil me fazem muita falta.

- Hmm... Entendo.

Num movimento brusco, girou o corpo para a esquerda, afastando a arma de sua nuca. Com o susto do movimento, Mário disparou a arma, acertando o vigia mais velho sob o nariz, que perdeu os sentidos de imediato. O outro, assustado com a ação brusca, ficou estático, movendo-se somente quando teve Mário jogado violentamente contra si, caindo.

O som do helicóptero fez-se cada vez mais próximo, e carros sem placa cruzaram a rua em alta velocidade. Pararam de frente a casa, e deles saíram homens diversos com armas na mão e coletes da Polícia Federal. Havia uma movimentação confusa e frenética na casa enquanto os policiais entravam. Um vigia estava morto, o outro, desmaiado, e Mário estava zonzo, com a arma solta na mão frouxa. Dois policiais aproximaram-se de Átila, que havia fechado a japona. Aproximou-se de Mário.

- Pensei que não ia avisar, cara. O pessoal estava tenso, esperando pelo sinal.

- Desculpa a demora, mas a donzela aí foi malandrinha demais.

Pegou Mário pelo colarinho com a mão esquerda, tomando a arma de sua mão com a direita. Arrastou-o para um canto escuro da rua, tendo em sua companhia os dois policiais que haviam se aproximado.

Mário olhava para ele com um misto de raiva e medo.

- É, meu caro Mário, você se fodeu. Se fodeu uma vez, porque eu sou policial. E se fodeu em dobro por tentar me matar.

- Porra cara, a gente pode conversar, encontrar um jeito de...

- Nem termina isso. Você já tem acusação de homicídio, tráfico e formação de quadrilha. Se juntar a de tentativa de suborno, a coisa fede mais.

- Fica com a grana, pode ficar. Mas me tira dessa, cara. – suplicou Mário. Átila sorriu de lado, cínico, e murmurou:

- Que grana?

Mário arregalou os olhos, sentindo alguma coisa o impedindo de falar. Átila retirou o carregador da arma do traficante, entregando-o para um dos policiais perto, deixando na pistola somente o cartucho que estava na câmara. Em seguida, pegou a mão direita de Mário pelos dedos e, abrindo-a, encostou o cano da arma na palma da mão de Mário. O traficante olhou para Átila, lívido.

- Porra, Átila, não faz...

- Você tentou me matar, moleque. Ninguém faz isso comigo.

Escutou-se o ruído seco e metálico de gatilho sendo apertado, um tiro, e um berro desesperado de dor. Mário perdeu os sentidos. Átila entregou a arma para o policial com o qual não havia falado ainda, e falou:

- Agora é com vocês.

Tirou um maço de cigarros do bolso, pegou um e acendeu. Puxou um bom trago e soltou a fumaça pelo nariz enquanto se afastava do local.