Frente ... e verso

Frente ...

Enroscou um fiapo do cadarço nas frestas do muro tosco, perdendo o fôlego da subida louca. A intenção era fugir da sanha das botinas brutas, que gritavam em seu encalço.

A parada rápida – se livrou do tênis de marca, adquirido sem consentimento de um menino do outro lado, trouxe junto um alerta inútil: Quantos seriam seus algozes, de quê mais estaria fugindo?

Sempre tinha esses pensamentos vãos; seu irmão já avisara que era coisa de demente: – Quem pensa muito não esquenta a vida.

Como se fosse possível dominar o que se vai na cabeça, assim, como um controle remoto de televisão. – Pensar não é querer. A autoflagelação do escárnio próprio não ensina a vontade de agir, o impulso feliz da inconseqüência de quem vive pendurado num fiapo de cadarço.

Saltou no espaço, caiu na linha do trem sem apito, que trafega trágico numa carcaça podre. Era só isso que passava pela sua vida; um vagão que não levava à estação alguma, uma máquina sem motorista na falta de compromisso de chegar.

Sentiu a sola do pé nas pedras soltas, chutou sem jeito um prego enferrujado, vendo escorrer o sangue conhecido. A dor lembrou as tragédias antigas, sem data e sem registro, simples acontecimentos numa vida vadia. Largou a arma no meio dos trilhos, chorou o dedo machucado e buscou o caminho daquelas linhas paralelas.

Sabia que, para o tiro que ouvira, era ele o alvo, e correu aguardando o baque. Que veio surdo, junto com a falta de ar que sentiu no peito. Quis gritar, mas o som ficou na garganta, estático no tempo que parou, enquanto ele sentia esquentar a bala nas costas. Pensou flutuar por um instante, livre do corpo atingido, alma lançada no vazio. Viu a queda acontecer como num filme e não sentiu dor quando encontrou o chão, o rosto de boca aberta.

Com saudades da mãe, foi nela que pensou por último. Só queria dizer ao irmão que não era louco, que pensar não era culpa. Só vontade de não sentir medo, ler um livro, ter um sonho e imaginar que a vida seria longa e feliz.

...e verso

Quão dolorido é esperar a lágrima se formar? O tempo de ouvir bater o coração, descompassado; intensamente sentir a contração da dor se formando. A gota salgada parece brotar no canto dos olhos ardidos, temendo escorrer pelo rosto vincado dos anos bandidos. Um segundo, uma eternidade, a lágrima pronta, esperando vencer a inércia para queimar os sulcos da pele, escorrendo rosto abaixo.

O soluço trai a frieza covarde do tiro no escuro. Apertar o gatilho sem mira, sem raiva, sem destino. Por ofício, rotina repetida dia a dia. Gesto comum, daqueles dos quais se ufana no bar: – bandido é bandido. O remorso era novo, desconhecido, mas parecia uma corrente represada que agora liberava seu núcleo nervoso pondo tudo a perder.

Sabia que chorar seria sua desgraça; entretanto, a fortaleza que segurava a culpa, entupida de tanta violência barata, ameaçava romper, liberando anos e anos de bons serviços.

Ficou olhando o corpo de bruços, no meio dos trilhos, a boca aberta engolindo as pedras da última refeição, com a certeza que, se fosse permitido, o alvo daquela arma largada no chão seria ele. Era uma guerra, com os códigos sujos da sobrevivência necessária.

A lágrima sufocada não era por aquele tiro, não por aquele corpo que espalhava o sangue na camisa barata, inundando as costas de um delinqüente comum. A dor que sentia, que aumentava, era pela vida medonha, escolha nenhuma, destino percorrido lentamente pelos desgraçados que estavam em qualquer lado daquela guerra estúpida.

Levado por um gesto insano, abraçou aquele corpo desconhecido, soltando o choro contido, liberando a batida do coração para soluçar por ele próprio e pelo sangue derramado.

Expiou a culpa do mundo, lembrando do filho que estava em casa, esperando o salário daquela profissão possível, para poder comprar um tênis novo.

Gebe
Enviado por Gebe em 05/11/2008
Reeditado em 30/11/2008
Código do texto: T1268147
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