UM CRIME QUASE IMPERFEITO

—Pô maluco! Como é que você foi dar essa goela?

—Cê tá ligado que eu não tive culpa!

—Ela viu o dinheiro?

—É claro que viu. Eu tava com a pacoteira toda esparramada aqui em cima da mesa.

Heitor andou de um lado para o outro do corredor, parou diante de um vaso com avencas pendurado na parede, acendeu um cigarro e ficou observando a fumaça que subia em espiral rente ao muro.

—Do jeito que essa velha é futriqueira, há essa hora toda a cidade já deve estar sabendo.

—Eu tenho um plano que talvez de certo.

—Que plano?

—Vem comigo. Eu te conto pelo caminho.

Heitor e Zé Gordo entraram na Pick-up e rumaram até a chácara do seu Venerando que ficava na entrada da cidade. Compraram dez sacos de estrume de vaca e voltaram pra casa. Pelo caminho Zé Gordo foi explicando o seu plano.

Ao voltarem guardaram os sacos de estrume em um pequeno cômodo, que havia nos fundos da casa. Combinaram levantar de madrugada para porem o plano em ação. Ficaram conversando por mais algumas horas até que Zé Gordo resolveu ir dormir. Heitor ficou por ali zanzando mais um pouco enquanto fumava mais um cigarro.

Assim que terminou de fumar atirou a bituca em cima de um gato que vagabundeava pelo muro. O bichano deu um pulo pra traz, caiu sobre umas caixas amontoadas junto à parede e, feito um corisco, desapareceu pelo fundo do quintal.

Ali pelas quatro da matina Zé Gordo levantou-se e acordou o Heitor que roncava feito um porco de mangueirão.

Passaram uma água no rosto para espantar o sono e em seguida deram início ao plano.

Abriram os sacos de estrume e começaram a espalhar pelo telhado e pelo corredor da casa. Depois fizeram o mesmo na casa da velha xaropeta.

Ali pelas sete da manhã, Zé Gordo chamou pela velha através do muro.

—Dona Nésia! Ô Dona Nésia!

Dona Nésia, ao abrir a porta dos fundos para ver o que Zé Gordo queria, quase caiu de costas.

—Deus do céu! O que é isso?

—Nossa, Dona Nésia! A senhora não acordou com o barulhão da chuva que caiu essa noite?

—Chuva?

—Pois é Dona Nésia! Choveu bosta a noite toda. Olha só aqui o nosso quintal! Tem bosta pra todo lado.

Dona Nésia pôs a cabeça sobre o muro e arregalou os olhos.

—Minha Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, eu nunca tinha visto nada igual!

—Pois é Dona Nésia... Nem eu também. Olha só os telhados como estão. Um merdeiro que dá até nojo.

Dona Nésia fez o sinal da cruz e correu pegar a vassoura para limpar toda aquela sujeira.

—Calma Dona Nésia, eu e o Heitor estamos limpando aqui desse lado, e assim que terminarmos limpamos o seu quintal também.

Zé Gordo e Heitor limparam rapidinho os dois quintais, ensacaram toda aquela sujeira e levaram pro lixão que havia do outro lado da cidade.

—Será que vai dar certo Zé?

—Tem que dar, caso contrario a gente tá ferrado!

Voltaram pra casa, esconderam o dinheiro bem escondido e ficaram esperando pra ver no que ia dar.

Depois de alguns dias, como haviam previsto, receberam a visita do Doutor Vitalino, delegado da cidade. O Heitor havia saído. Apenas o Zé Gordo estava em casa.

—Oi Doutor Vitalino! Tudo bem?

—Bom dia Zé! Eu preciso ter um dedinho de prosa com você.

—O senhor não quer entrar? Acabei de coar o café!

O Doutor Vitalino aceitou o convite. Deteve-se por alguns segundos, observando a foto do seu Alfredo pendurada na parede da sala, enquanto tirava o casaco e o chapéu.

—Boa gente o seu pai. Que Deus o tenha em bom lugar.

—Obrigado Doutor Vitalino. Realmente ele nos faz uma falta muito grande.

Permaneceram em silêncio por alguns segundos.

—Sabe o que é Zé... Você logicamente ficou sabendo do roubo à Caixa Econômica, ocorrido na semana passada.

Zé Gordo, tentando demonstrar não ter se preocupado nem um pouco com aquela pergunta, tirou calmamente o maço de cigarros do bolso, acendeu um e ofereceu outro ao Doutor Vitalino, que de imediato fez um sinal negativo com uma das mãos dizendo que não fumava.

—Fiquei sabendo sim. Meio por cima... Porque também não quis me aprofundar muito nos fatos, pois o senhor me conhece muito bem, não sou de ficar bisbilhotando muito as coisas.

—Faz você muito bem Zé. Pois aqui nessa cidade o que o povo mais gosta é de bisbilhotar.

O Doutor Vitalino passou as costas das mãos sobre o chapéu, se ajeitou melhor na cadeira, pigarreou e recomeçou a conversa.

—Os danados fizeram um buraco na parede dos fundos, arrombaram o cofre e sumiram sem deixar nenhuma pista.

Zé Gordo fez cara de espanto, fingindo não saber de nada.

—Caramba! Eu pensei que tivesse sido assalto a mão armada!

—Foi não. Eles fizeram o serviço de madrugada e muito bem feito. Coisa de profissionais.

Zé Gordo procurava a todo custo manter-se calmo e a cada palavra arregalava os olhos como se tudo aquilo fosse novidade para ele.

—Mas que mal lhe pergunte Doutor Vitalino, onde é que eu entro nessa história toda?

Doutor Vitalino em seus muitos anos de janela procurava com toda sutileza que lhe era peculiar captar as reações do Zé Gordo enquanto falava pausadamente. Ajeitou a gravata, passou as mãos pelo cabelo e olhando fixamente para ele continuou a conversa.

—Olha, o negócio é o seguinte... A sua vizinha aqui do lado andou comentando com o pessoal aqui da rua que dias destes viu você contando um monte de dinheiro aqui nos fundos do quintal.

Zé Gordo fez cara de descaso e começou a rir.

—Olha Doutor Vitalino, quem da atenção ao louco é mais louco que o próprio louco.

Doutor Vitalino manteve-se em silêncio, procurando não deixar se envolver pelos argumentos do Zé Gordo.

—Olha Zé Gordo, apesar de nunca ter conversado com essa mulher, eu nunca percebi nenhuma doidura nela não.

—Tai Doutor Vitalino... É porque o senhor nunca conversou com ela. Dois minutinhos de prosa e qualquer um percebe que a mulher é completamente maluca.

Doutor Vitalino levantou-se, circulou um pouco pela sala, como se estivesse pensando em algo, deteve-se por alguns segundos olhando para os fundos da casa. Observou o muro, não muito alto, que dava para a casa da Dona Nésia.

—Gostaria de conversar com ela.

Zé Gordo levou o doutor Vitalino até o corredor fora da casa e chamou Dona Nésia. Não precisou chamar duas vezes. Ela já estava, ali, próxima ao muro tentando ouvir a conversa.

—Oi Zé Gordo! Você me chamou?

—Chamei sim Dona Nésia. O Doutor Vitalino gostaria de ter uma conversa com a senhora.

—Pois não seu Doutor!

—Bom dia minha senhora! Tudo bem?

—Tudo bem!

Doutor Vitalino salpicou um canto de zóio sobre o Zé Gordo só pra ter a certeza de que ele não estaria tentando intimidar Dona Nésia com algum tipo de gesto.

—Bom minha senhora... Eu gostaria de saber se é verdade que dias destes à senhora viu o Zé Gordo contando um monte de dinheiro aqui nos fundos?

Dona Nésia olhou meio sem graça para o Zé Gordo que fez cara de desaprovação, como se fosse ele a pessoa mais inocente do mundo. Doutor Vitalino insistiu.

—E então Dona Nésia! A senhora viu ou não viu?

—Olha seu Doutor eu não queria me meter nessa confusão não, mas mentir também não posso! Então se é pra falar a verdade... eu vi sim!

Zé Gordo balançou a cabeça e deu um sorrisinho cínico, como se quisesse dizer que a mulher era louca.

—Dona Nésia eu acho que a senhora deve estar ficando biruta! Só pode ser!

—Ôooo, Zé Gordo! Você não se lembra não! Eu nunca vi tanto dinheiro na minha vida como vi naquele dia!

—Mas quando foi isso Dona Nésia?

—Caramba Zé Gordo! E depois você diz que eu é que sou doida!

—E é verdade mesmo! A senhora pra sair com uma conversa dessa, só pode ter endoidado de vez!

Doutor Vitalino assistia a tudo aquilo, sem dizer nada. Tentava captar alguma coisa no ar que lhe desse alguma pista.

—Eu com toda minha idade ainda tenho a memória melhor que a sua.

Argumentou Dona Nésia. Doutor Vitalino interveio.

—Que dia foi que isso tudo aconteceu, Dona Nésia?

—Foi naquele dia que choveu bosta a noite toda!

Doutor Vitalino ficou ali parado com cara de quem não tinha entendido nada, enquanto Dona Nésia insistia em sua afirmação.

—O senhor não tá lembrado não Doutor Vitalino? Olha choveu tanta bosta naquele dia que o telhado e o quintal ficaram na pura merda!

—Ah sim! É claro que eu me lembro... Aquela foi uma noite terrível!

—Se foi terrível? O senhor nem imagina! Eu com meus oitenta anos de idade nunca tinha visto nada igual!

Doutor Vitalino olhou meio desolado para a cara do Zé Gordo, que começou a rir com ares de ironia.

—Tá bom Dona Nésia. É só isso. Obrigado pela colaboração.

—De nada Doutor. Precisando é só me chamar.

Os dois entraram e Dona Nésia continuou ali tentando ouvir mais alguma coisa.

—É você tem razão. A mulher é completamente louca. Peço-te desculpas pelo transtorno.

—Foi nada não Doutor Vitalino. O senhor apenas esta cumprindo sua obrigação.

Doutor Vitalino despediu-se e caminhou até a viatura, onde um policial o esperava ao volante. Entrou e acomodou-se no banco do passageiro.

—Você tá lembrado dia destes que choveu bosta a noite toda?

—Bosta?

—É...Bosta. Você não sabe o que é bosta? Aquele negócio mole e fedorento!

O policial ficou olhando pra cara do Doutor Vitalino sem entender merda nenhuma. Doutor Vitalino apontou com o dedo para o fim da rua e ordenou:

—Toca.