COMANDO DOS AUSENTES
1
Jurandir cabisbaixo, mais calado aligeirando-se em fazer os mandados de Seu Paulo barraqueiro e Antônio, o proprietario do mercado vizinho, à esquina da barraca.
- Que é que tu tens Jurandir?
Ele sem responder.
- Pega a bicicleta e vai buscar uma grade de cerveja. Toma, segura o dinheiro.
A figura magra, alta sai apressada, com a caixa de bebida no bagageiro da condução.
Seu Paulo fica acompanhando-a com a vista. Que danado tem o Jurandir? O homem está esquisito. Alguma coisa está acontecendo. Será que ainda sentindo a morte de Fábia? Ele sempre próximo à banca de jogos:
- Quer comprar lanche, Fábia?
Então ela sorrindo, as covinhas graciosas no rosto bem definido, bonito, respondia:
- Quero não, obrigada.
- Se precisar...
Sim, provavelmente, Jurandir sente a falta da moça. Mas cada um com seus problemas. O mundo é assim mesmo. Será que o assassino dela ficará impune? Se fosse uma jovem rica, logo se descobria o criminoso...
- Pensando na vida, Seu Paulo?
É Antônio que sai do mercado, dando uns "giros", disparecendo, enquanto aguarda o próximo freguês.
- Estava me lembrando do que sucedeu com a Fábia.
O comerciante aí com a atenção à rua de resumidos pedestres e automóveis:
- Mas quem sabe? Quem a matou pode ser preso de uma hora para outra.
- Espero, Antônio. Uma menina tão bonita e ser encontrada estuprada e estrangulada...
Um casal entra no mercado. Antônio afastando-se:
- Vou lá saber o que querem.
Seu Paulo também adentra na barraca, tentando se ocupar e, lento, esfrega o pano no balcão, limpando-o.
2
Como foi capaz de fazer aquilo? A cena mais uma vez (quantas desde tudo concluído?) se lhe desenha na mente.
Fábia de short, as pernas morenas, longas, bem-feitas, a blusa decotada, o sorriso alegre, o caminhar gingado, ele seguindo-a, de repente sozinhos, no campo de jogos de futebol, a mata em volta, ocultando-os de olhares indiscretos... A aproximação. A perplexidade dela. A voz medrosa:
- Não, Jurandir, deixa disso. Você tá bêbedo. Me larga!
A luta para dominá-la, enquanto sua mão lhe fechava os lábios e... os gestos nervosos, a satisfação do prazer sonhado e enfim realizado. Mas Fábia não mais se movia. Fechou as calças e, como um louco correu refugiando-se na mata, testemunha silenciosa do que acabara de acontecer. Depois, no dia seguinte, ouviu, como se ainda estivesse vivendo um pesadelo:
- A Fábia que passava "bicho" na barraca de Seu Paulo, foi encontrada no campo da fábrica, morta.
- Mas, como foi isso, ô "meu?".
- Tou "vendendo o peixe como comprei:" Acharam ela ontem, de madrugada, estendida, com o short rasgado e estrangulada!
- Puta merda!
Sem se fazer notar, como uma sombra se afastou. Então a realidade impiedosa agrediu-o: matara a morena, após satisfazer-se no desejo sexual! A que ponto chegara sua paixão reprimida. Mas encontrava-se bêbedo, fora do juízo normal...
- Não, isso não justifica.
Censura-se, em sua dor, no remorso que já o torturava que, impiedoso, acompanharia-o nas próximas horas. Assim, há quantos dias?
- Tira essa bicicleta da frente, "Munheca de pau".
Afasta-se, o veículo passa em velocidade. Reinicia a descida da avenida. O sol esquenta. A camisa cola-se às costas ossudas. A cabeça roda. Até quando se manterá na tortura que lhe reclama a própria justiça? Por que teve de fazer aquilo? Por quê?
A bicicleta dobra a esquina e segue com o homem curvado ao esforço de conduzir a bebida e o peso do próprio remorso.
3
Novamente Antônio aproxima-se de Seu Paulo:
- Mas amigo, o nosso bairro está uma "coisa" séria: A morte de Fábia que, até o presente, ninguém descobriu quem seja o assassino e agora, essa do coitado do Jurandir em se matar, com veneno pra ratos!
O baraqueiro aquiesce:
- É isso mesmo. Mas Antônio fico pensando...
Volta-se fitando o rosto magro, envelhecido e prossegue falando:
- Será que esse suicídio do Jurandir tem relação com a morte da morena? Terá sido ele quem a matou e com remorso, procurou se castigar, matando-se? Sim, porque ultimamente, ele andava muito calado, esquisitão...
O comerciante também o encarando, responde:
- Pode ser. Mas, um dia - como tudo neste mundo se descobre - a gente saberá a verdade.
- Saberá ou não, Antônio.
"Saberá ou não".
Repete este e afasta-se, retrocedendo ao estabelecimento, à vida prática que lhe chama.
Sozinho, Seu Paulo analisa a rua de pouco movimento, na rotina costumeira.
Logo, devagarzinho outra vez o barraqueiro esfrega a flanela sobre o balcão encardido dos anos, enquanto à esquina, a luz do poste acende-se, ante a chegada da noite. Nova noite.