A DESFORRA *

Ágeis como feras, produto da necessidade a astúcia. O velho tomba ao chão, cabeça temerosa deitada na calçada, medo de reagir. 72 anos, calvície acentuada, a lente esquerda dos óculos, partida. Chapéu de feltro, à distância.

Um monte impotente, inferior a uma criança, porque cônscio da fragilidade e do perigo, da impossibilidade de defesa. O corpo desajeitado não obedeceria uma reação repentina, com o coração sujeito a uma síncope abrupta.

Não bastasse a posição deprimente, em decúbito ventral, feito um bêbedo qualquer, o incômodo de um filete rubro a escorrer pelas narinas, espalhando-se pela face toda, manchando a camisa azul-clara, impecavelmente limpa.

Aguardava em suspense o saque. Deveria ter umas poucas notas na carteira, uma foto da neta, o velho relógio de corrente. Nada restava a fazer além de quedar-se, feito fantoche, à vontade dos marginais, aguardando a decisão de seus algozes.

Discutiam. Jovens, no máximo três, falando rápido, linguagem cifrada de gírias, não conseguia concatenar os fatos, a audição falhava. Ficou em crise, mergulhado num julgamento tolo de sua inutilidade, aspirando as imundícies da via pública.

As imagens se sucediam em sua mente, dando conta da situação. Dispensara o chofer e resolvera fazer um passeio sozinho, há tempos não se dava ao luxo de ficar consigo mesmo. Viera desprevenido de qualquer salvaguarda, afinal o parque sempre foi bem iluminado, não oferecia perigos. Mas, pensava agora, nenhum lugar, exceto nas muralhas da sua nobre residência, ou no carro blindado com motorista, era seguro. Era o tal submundo, aquele que sorvia entretido nos noticiários, pelas manhãs, no saboroso café, seja lendo as histórias policiais mais bizarras ou mesmo mudando o controle remoto em busca de novos espetáculos nas estações de tv...aquela escória oferecia sempre escândalos permanentes ! Estranho como se divertia com os escabrosos relatos daquelas vidas tão distantes de seu mundo privado e acolhedor.

Mas agora ali estava, deitado na via pública e cercado pelos marginais. Não era um relato acontecido com estranhos, ele estava no centro dos fatos... Arrepiou-se. Pensou rezar em pensamento e viu que não sabia uma oração em seu sentido total, sempre as repetira, enfadado, nas raras cerimônias religiosas. Antipatizava-se com o pároco, sempre recheando os sermões das questões sociais, da distribuição de renda e da fraternidade...coisas de comuna disfarçado de padre ! Parecia a encarregada do setor de ferramentaria da Fábrica, reivindicando pelo emprego dos 90 operários a serem dispensados pelo desmonte do setor. A insistência foi tanta, alegações de que seriam famílias vitimadas pelo flagelo do desemprego, e da insistência de remanejamento para outras secções, tal a argumentação petulante, sendo a própria, por exigência pessoal dele, também inserida no rol dos demitidos. Era o que faltava, aquela "zinha" tentando ensinar administração de custos na sua empresa! Questão social, sempre ela ! Pois que dela cuide o governo, eleito pelos miseráveis, ao empresário bastava garantir os empregos e os impostos, que não eram poucos...

Quis morrer, simplesmente. Pensou seriamente em uma atitude defensiva, e se reteve, assustado, procurando alternativas para manter-se vivo. Tentando valorizar a própria existência, carcomida e insignificante.

Inerte, infeliz como um animal acuado, sentiu as mãos lhe apalpando o corpo, arregaçando os bolsos, invadindo intimidades. Não reteve as lágrimas, mescladas à poeira e ao suor do rosto. A garganta ressequida, engolindo saliva grossa e vermelha, retendo, a custo, um pigarrear. Permanecia impassível, paralisado pelo terror e pelo prudente instinto de sobrevivência.

Num ato conjunto o viraram de frente. Maior então a vergonha, fitando-os, cara-a-cara, uns meninos ainda, donos de sua vida, responsáveis por sua sorte.

Toda a existência fragmentada em minutos, a reflexão lúcida, o orgulho ferido. Um final só imaginado para os deserdados de qualquer chance, como aqueles garotos, personagens párias da sociedade, vivos protagonistas dos hediondos dramas lidos nas manchetes do jornal matutino, leitura saboreada com o café da manhã, no aconchego do lar, imune às ameaças do submundo, universo alheio e distante. Mundo proscrito de meliantes, prostitutas, em todos os níveis da escória social.

Repentinamente, invadido pelo pavor da morte, em tudo semelhante a de um suíno, ao pressentir a lâmina do canivete de um deles, teve um grito seco, suplicante, de piedade.

A sua desventura agigantou-se, sentiu-se pequeno, implorou perdão, como se responsável por tudo aquilo. As faces mutiladas, medonhas, infâncias abortadas, sonhos miseravelmente desfeitos. O opróbrio a envenenar-lhe a alma, a omissão a corroer-lhe as entranhas da consciência. A casta que em pensamento quis renegar, a vida fausta e cega...

Os rapazes riram do desgraçado, encolhido, aturdido e envergonhado.

O líquido acre e fétido escorrendo pela face, ardendo nas escoriações: a urina das personagens das páginas policiais, pelo pagamento dos espetáculos saboreados nos cafés matinais.

* Originalmente publicado no jornal literário, O MOSAICO, 1985, PUC-SP, com o título: A Vingança das Personagens das Crônicas Políciais.

*TEXTO SELECIONADO E PUBLICADO EM LIVRO NA ANTOLOGIA: O MELHOR DO CONTO BRASILEIRO, EDITORA CBJE - CÂMARA BRASILEIRA DE JOVENS ESCRITORES, EDIÇÃO MARÇO/2010