o Homem sem rosto - parte 01 de 2
O HOMEM SEM ROSTO
--- O que você pensa sobre esse caso do corpo encontrado na ribanceira da Armação da Piedade? - perguntou o homem gordo e baixo.
A fila do banco estava enorme e já havia uma multidão ali. Um homem gordo e baixo se esforçava para não reclamar pela demora no atendimento.
O rapaz a quem dirigira a pergunta estava um pouco mais a frente, na mesma fila no ponto em que havia uma curva seguindo a linha desenhada no piso do banco, usava um terno marrom.
---- Apenas ouvi falar. Foi um assassinato, não foi?
--- Isso mesmo. Trata-se de um assassinato, - disse o outro - foi retalhado em todos os sentidos - dizem ... que foi um horror.
--- Muitos dizem que foi obra de animais ferozes! - falou um velho mais à frente, voltando a cabeça- Os jornais dizem que o homem não tinha rosto... Eu não me admiro. Com essa onda de violência atual. E esses políticos de araque dizem que está tudo sob controle... pois sim... controle
--- Não me fales dessas coisas, pelo amor de Deus! - disse uma mulher trêmula. - cheguei a Ter febre esta noite só de imaginar que isso pode acontecer a qualquer um de nós. Passei tão mal, tanta dor de cabeça e estômago que fui obrigada a comer de madrugada. A tevê e os jornais não deviam dar tanto destaque a esses crimes nojentos.
--- É melhor que eles contem tudo, minha senhora! - respondeu o homem gordo. - Só assim a gente se previne e sabe o perigo real que corre. Segundo o que li, o pobre homem foi tomar banho num local deserto o que não é aconselhável, principalmente por causa das cãibras que podemos ter repentinamente, e também é perigoso tomar banho sozinho nesses lugares ermos.
--- Isso digo sempre aos meus filhos! - disse uma senhora gorda de vestido florido no corredor ao lado. - Não acho que eles devam ir para o mar sem se importarem com o tempo! Mas.. Surfistas bah...
---- Minha opinião - continuou o homem gordo - é que a situação econômica atual deixou milhares de homens em tal condição de miséria e desequilibro que os frutos só podem ser esses. Eles viram monstros por um pedaço de pão. Irritam-se muito facilmente e seus espíritos são fracos para resistirem a tentação de um roubo e daí resulta as mortes nesses assaltos. Compreende? E nos dias de calor como o de hoje, estão perdidos. Tornam-se loucos ou monstros. Lí isso em vários livros e depoimentos. Gosto muito de ler a noite, ao invés de ficar assistindo televisão.
--- Muito certo, - disse um homem franzino, magro, levantando os olhos de uma revista que parecia ler. Certo... tudo certo... mas que tem que ver sua preleção com o presente crime? Leio muita literatura policial - posso mesmo afirmar que é o que mais leio - e minha opinião é que esse caso é muito mais grave e complicado do que se pensa. Se o senhor comparar essa morte com qualquer um desses crimes misteriosos dos últimos anos - crimes em que os culpados não foram descobertos e que julgo são impossíveis de serem elucidados - que achará de tudo isso?
Calou-se e olhou para os que estavam mais próximos dentro do banco, vendo suas reações.
--- Achará indícios semelhantes, principalmente este; o rosto!! O rosto, presta atenção! Só o rosto está destruído para evitar a identificação. Como para desfazer inteiramente a personalidade da vitima. E lembre-se também que apesar das pesquisas minuciosas, um criminosos dessa espécie nunca é encontrado. O que isso indica? Que há uma organização poderosa, influente, trabalhando na sombra. Coisa dos traficantes. Eis a revista que estou lendo - e ele bateu com a palma da mão sobre a revista para impressionar quem estava prestando atenção. - Esta revista tem um relatório que de romance não tem nada . É um relatório verdadeiro dos anais policiais sobre como agem esses traficantes quando em guerra de gangues por territórios. Matam transfiguram, marcam como um selo de sua facção e dissimulam tão perfeitamente - graças ao seu poderio econômico e influencia social - os traços do assassino que apesar de todas as buscas nunca o crime é descoberto.
--- Li histórias como essa, mas se passaram na Idade Média- confessou o homem gordo - Hoje em dia os marginais matam e não estão nem aí. Havia uma organização na Itália, como se chamava mesmo... Gomona... isso, acho que é isso, creio eu. Será que há uma facção assim nos dias atuais?
---- Falou uma coisa verdadeira; Itália - respondeu o leitor com a revista - A mentalidade Italiana é feita para a intriga. Veja por exemplo os fascistas. Eram no início apenas uma sociedade secreta que cresceu até tomar o poder. E aqui mesmo, no Brasil, temos muitas dessas criminosas sociedades secretas, P.C.C., C.V, e muitas outras que não tomamos conhecimento ainda. O senhor Não pensa assim? - perguntou dirigindo-se ao rapaz que estava mais a frente, próximo do homem gordo.
--- Ah! - exclamou o homem gordo. - Naturalmente o senhor tem visto como andam as coisas de segurança em nosso país. O que pensa desse crime? Será obra de alguma gangue ou mesmo traficantes?
---- Espero que não, - respondeu o rapaz de terno marrom - Isso tiraria todo o interesse do caso. Eu prefiro os crimes banais, domésticos, como o de um milionário encontrado morto em sua biblioteca. Quando pego um romance para ler e se trata de organização, máfia, gangue, essas coisas, daí perco o interesse logo de saída e abandono o livro em um canto.
--- Sou da mesma opinião! - disse um rapaz com um brinco na orelha, próximo a senhora gorda de vestido florido que tinha lamentado o caso. - Se analisarmos o caso do ponto de vista artístico. Entretanto as conclusões desse homem - apontou o homem gordo - merecem ser apreciadas.
--- Oh! Certo, - admitiu o rapaz de terno perto do homem gordo- mas não li os detalhes do crime.
--- Os detalhes são bem claros, - recomeçou o homem da revista - o corpo foi encontrado na praia da Armação da Piedade, ontem pela manhã, muito cedo, com o rosto inteiramente desfeito e irreconhecível. O corpo estava apenas com uma sunga.
--- Quem era ele?
--- Ainda não o identificaram. Suas roupas desapareceram.
--- Parece que foi um assalto. - disse uma moça de cabelos pretos compridos que tinha um monte de faturas na mão.
--- Mas se fosse um assassinato para roubar porque desfigurariam o cadáver?-- Respondeu o homem gordo - Não, as roupas devem ter desaparecido para impedir que o cadáver fosse identificado. Isso não é coisa de traficantes. É o que eu afirmava há pouco, foi obra das sociedades secretas, essas facções criminosas.
--- O homem foi apunhalado? - perguntou o rapaz de terno marrom ao lado do gordo, olhando para este.
--- Não, - respondeu o homem gordo- foi estrangulado.
--- Não é um método característico dos ladrões ou mesmo criminosos envolvidos com facções! - observou o rapaz. - resolvem tudo com arma de fogo.
--- Realmente! - disse o homem da revista.
--- Se ele foi tomar banho, - comentou um velhote atrás do rapaz - porque dirigiu-se aquela praia? Alguém notaria sua ausência, se ele morava ali perto. No entanto muitos turistas vão a Armação nessa época do ano.
--- Não!! - disse o homem gordo voltando-se para o velhote - O senhor está enganado. Ninguém vai aquela parte da praia da Armação da piedade. O senhor está confundindo essa praia com a de Armação de Pântano do Sul.. Armação da Piedade vive às moscas. Apenas um miserável boteco no fim da estrada e depois disso é necessário atravessar tres enormes morros para chegar ao mar. Não há uma estrada mas um caminho para carroças por onde um carro só anda aos solavancos.
--- Naturalmente o homem foi até lá de automóvel. Foram encontrados marcas dos pneus de carro, mas não encontraram o automóvel. - disse o que tinha a revista nas mãos.
---- Talvez o homem e seus assassinos tenham ido juntos até a praia. - disse novamente a morena de cabelos compridos.
--- Isso! - disse o homem da revista - também creio nisso. A vitima foi provavelmente amarrada e levada de carro para a praia. Tiraram ele do carro, estrangularam-no e ...
--- Ora e porque lhe vestiriam a roupa de banho? E se o tivessem amarrado porque não o liquidaram logo com uma arma? Seria mais rápido?- inquiriu o rapaz de terno próximo ao homem gordo.
Neste instante olharam irados para um caixa que saiu do seu posto e ia conversar com uma linda loira deixando somente dois caixas no banco para atenderem aos clientes. Havia mais de cinquenta pessoas na fila.
---- Vejam só que bonito! Nós aqui pagando imposto e temos que ficar de pé, cansados, assistindo a namoricos. Ralhou o homem gordo . O caixa o olhou e não deu importância, continuando a conversa.
--- Lhe deixaram com a roupa de banho por que não quiseram deixar-lhe a roupa que o identificaria rapidamente. Talvez não tenha atirado por não terem uma arma de fogo ou mesmo para não fazerem barulho que atrairia curiosos. - voltou ao assunto o velhote.
--- Certo! Mas porque não o deixaram nú? Vesti-lo somente para não deixar suas partes intimas a mostra me parece estranho demais, ainda mais se pensarmos em assassinos frios e cruéis.
--- Mas... mas... disse o homem gordo - o senhor não lê jornais e nem vê a televisão? Eram dois homens e não poderiam ter ido juntos até a praia porque foram encontradas marcas de pés, mas somente as pegadas pertencentes a um só homem ... justamente as do assassinado.
Disse isso e lançou um olhar triunfante a todos que estavam a sua volta.
--- Marcas de pés? - isso pareceu despertar ainda mais o interesse do rapaz de terno marrom à frente do velhote.- isso é interessante. O senhor tem certeza disso?
--- Está no jornal e também deu na tevê. Uma série de pegadas feitas por pés descalços, justamente os pés da vitima, vão do ponto em que o carro deve Ter parado até o lugar em que o corpo foi encontrado. Imagine só!
---- Isso é muito significativo, - disse o rapaz. - Isso nos dá uma ligeira idéia da hora do crime e esclarece de algum modo o caracter do assassino e das circunstancias que envolveram o crime.
---- Por que pensa isso? - perguntou o velhote atrás do rapaz que falara.
--- Para começar, se bem que não conheça essa praia, creio que ela é de areia.
Todos riram. O rapaz permaneceu sério.
--- Claro! De que mais poderia ser? - disse o homem gordo.
--- hummm... perto deve haver um rochedo que avança para o mar e domina provavelmente um circulo, formando uma espécie de piscina natural. Este rochedo avança, para dentro do mar de maneira que qualquer pessoa pode ficar estendido nele antes que a maré encha.
---- Como sabe disso tudo? - disse o homem da revista - há realmente rochedos ali, justamente como acaba de descrever, a uns cem , cento e cinquenta metros. Eu já tomei banho lá.
--- E os rochedos começam antes da praia e são de pedra pura?
---- É isso mesmo.
--- O crime deve Ter sido cometido antes da maré encher e o corpo estava estendido onde pára a maré vazante.
---- Porque pensa isso? - perguntou a mulher gorda do outro lado da fila.
---- Disseram que há pegados do carro até o cadáver. Isso prova que a água não ultrapassou o local em que se encontrava o corpo. Ora, não há outras pegadas porque as do assassino foram apagadas pela maré. Só há uma explicação; os dois homens encontravam-se justamente no local onde pára a maré. O assassino veio pelo mar. Atacou o outro homem. Fez a vítima recuar provavelmente uns passos e o matou. Depois a água que subia apagou as pegadas que o assassino possa Ter deixado. Pode-se até pensar que ele chegou a verificar onde a água daria para que suas marcas não ficassem na areia.
--- Rapaz! Oh oh - disse a morena de cabelos compridos - Você me assusta rapaz!
---- Vamos mais adiante! Passemos ao caso do rosto - continuou o rapaz alegre com o comentário da moça. - O assassino já estava no mar a espera de sua vitima. O senhor está entendendo? - e olhou para o rosto do homem gordo que estava junto ao rapaz.
--- Perfeitamente!- respondeu o homem gordo - O senhor acha que o assassino veio pelo rochedo, que chegou ao mar, desceu pela parte mais baixa da praia e por isso não deixou vestígios na areia.
--- Exatamente! E como a água bate forte em torno desse rochedo, imagino que o assassino também devia estar de roupa de banho.
---- É! Talvez tenha razão. - disse o homem com a revista.
---- Evidentemente. Mas com que instrumento ele desfigurou a vitima? Ninguém leva uma faca quando vai tomar banho de mar.- intrometeu-se o velhote atrás do rapaz.
--- Eis o enigma, - disse o homem gordo.
---- Não é um enigma. O assassino ou tinha, ou não tinha uma faca. Se ele a tinha... - continuou o rapaz de terno quando foi interrompido pelo homem que tinha a revista no colo.
---- Era porque esperava a vitima - disse esse - conforme a hipótese que apresentei de um hábil complô, profundamente pensado, idealizado, realizado com frieza.
--- Sim. Mas se trazia uma faca porque não apunhalou a vitima? Porque a estrangulou se estava armado? Não... creio que ele estava sem nenhuma arma e quando viu seu inimigo serviu-se de suas mãos e que é caracteristicamente coisa impensada, de momento.
---- E com que desfigurou a vitima? - perguntou a morena.
--- Creio que quando ele viu o inimigo morto a seus pés, teve um tal acesso de raiva que quis vingar-se completamente. Pegou um objeto qualquer, algum pedaço de um ferro ou de vidro, talvez mesmo uma concha dessas que sempre existem nas praias. Jogou-se sobre o cadáver e num acesso de raiva selvagem ou de ciúme, desfigurou o rosto do homem.
--- Que horror! É uma besta fera! - disse assustada a gorda do outro lado do corredor que a fila formava.
--- Claro que não podemos prever melhor as coisas porque não vimos os ferimentos. É possível também que o assassino tenha deixado cair sua faca, que tenha tido luta, que tenha sido forçado de servir-se das mãos e que só depois retomou a faca. Se os ferimentos são claros, a solução é exata e nesse caso, houve premeditação. Mas se o rosto está desfeito por ferimentos irregulares, feitos com instrumento fortuito então devemos admitir que o encontro foi ocasional e que o assassino é um louco ou...