Até Que a Morte os Separe
Alex ainda não estava acreditando que foi escalado pra dirigir naquele dia. Era sua folga e tinha por direito ficar em casa com a esposa. Seu chefe – Nestor – disse que só havia ele, pois Emerson estava doente e Gerson, o novo motorista ainda não estava totalmente treinado. Tinha que ser Alex. Ele ainda ficou um pouco deitado depois do telefonema, mas logo se levantou e se arrumou e foi para a agência funerária pra pegar o carro. A agência funerária Lar Eterno ficava perto da sua casa, e em menos de quinze minutos ele já estava dentro do carro do estilo wagon. Ligou o carro e dirigiu até o hospital para recolher o defunto e leva-lo até o funeral onde seria vestido e maquiado. Em mais quinze minutos Alex chegou ao hospital do centro da cidade. Chegou até ao balcão e pediu pelo corpo de Osvaldo Boamorte. Alex nunca tinha visto aquele sobrenome antes.
_ Ele é de família portuguesa e esse sobrenome é comum lá. O corpo já está vindo. – disse a recepcionista esclarecendo a origem do sobrenome.
_ Mesmo assim é estranho, irônico. Eu que não queria ter um sobrenome desses.
_ Deixa o homem em paz, ele não tem nada a ver com você. – disse a recepcionista que não gostou do comentário dele.
_ Do que ele morreu? – indagou Alex.
_ Isso já não sei.
_ Qualquer coisa eu pergunto pra ele. – brincou Alex.
_ Ele quem?
_ O defunto, oras. Pra quem mais poderia ser? – zombou Alex.
_ Vai começar de novo. Mais respeito hein. – disse ela já ficando irritada.
_ Já chegou o corpo. Eu vou pedir pros enfermeiros te ajudarem. – disse ela.
Ainda eram sete e meia da manhã e o funeral estava marcado para nove e meia. Seu chefe pediu pra que ele fosse cedo, pois o cemitério é em outra cidade. Na primeira meia-hora de viagem Alex ficou apenas assobiando e pra sua sorte o tráfego estava tranqüilo, apesar de ser segunda-feira. Depois de deixar a cidade e estando agora na rodovia, Alex resolveu ligar o radio, mas antes uma pergunta.
_ E ai gosta de ouvir o quê? Rock, MPB, música erudita ou o fado português? – era comum Alex perguntar isso e outras coisas pros defuntos que ele levava. Uma forma de distrair e amenizar o ambiente fúnebre que cercava seu carro.
_ Vamos ouvir Rock! – e lá foi Alex sintonizar na rádio de rock que estranhamente tocava uma música que dizia a palavra morte, em inglês, mas como Alex sabe muito pouco ou quase nada, isso passou batido por ele.
Alex olhava pra frente e via que de fato não havia mais buracos na pista, pelo visto as obras foram bem feitas, até que Alex escuta um barulho vindo de trás. Um buraco! – não foram tão boas assim. Alex não se conformava com isso. Na TV dizem que vão tapar os buracos, até que tapam, mas fazem o serviço mal feito. E novamente outro barulho vindo de trás, o que Alex estranha é o fato dele não sentir o pneu caindo nas crateras, como são chamados os buracos daquela rodovia.
No banco de trás o caixão começa a se mexer e Alex ao ver isso quase perde a direção. Prefere não olhar pra trás, mas ele já viu e pensa no que fazer. Acho que vou deixar esse caixão no mato e vou embora e dou alguma desculpa pro chefe. E também quem vai querer roubar um caixão com defunto dentro?
_ Eu roubaria. Ainda mais quando esse defunto está com sua carteira e relógio suíço no pulso. – disse o homem que acabara de sair do caixão – estranhamente vivo.
_ Quem está falando?
_ Que pergunta! Sou eu oras! Eu não morri! – disse o homem.
_ Morreu sim e agora volta pro caixão. Eu acho que bebi muito ontem à noite, está me dando algum efeito retardado.
_ Retardado é você. Não está vendo que estou vivinho da silva. – disse o homem indo para o banco da frente.
_ O que você está fazendo aqui na frente? Já falei pra voltar, lugar de morto é no caixão. – disse Alex bravo e com medo.
_ Mas não estou morto. Não vê que estou falando com você. E a propósito eu não gosto de rock. – disse o homem mexendo no rádio.
_ Eu mereço mesmo. Trabalhando na minha folga, levando um defunto que diz que está vivo e que ainda mexe no meu rádio.
_ Calma cara, você ta muito nervoso. – acalmou o homem.
_ Calma!? Você quer que eu tenha calma. Um morto-vivo do meu lado dizendo que não gosta de rock e você me pede calma! – disse Alex fora de si.
_ Você só não quer aceitar a situação, mas sabe que estou vivo agora. E vou me apresentar primeiro: me chamo Osvaldo Boamorte e você?
_ Alex Pinheiro, motorista da agência funerária que está preparando o seu funeral. Vou te dar mais uma chance pra você voltar pro caixão e me deixar dirigir em paz. – pediu Alex.
_ Ora pá não estou morto! Depois dizem que os portugueses são burros. – brincou Osvaldo.
Meia hora depois...
_ ... você devia ver, eu fiquei muito bêbado. Não falava coisa com coisa. – disse Alex já acostumado com a situação pra lá de estranha com o suposto morto.
_ Eu já não bebo muito, apenas um uísque de sexta feira e claro um vinho do porto aos domingos e também quando saio e nada mais.
_ Requintado você! Tenho que me contentar com a cerveja e uma pinga de vez em quando.
_ Disso eu não posso reclamar, tive, quer dizer, tenho uma boa vida. Uma casa bonita, belos carros. Mas nunca fui de ostentar, só os meus filhos e minha esposa que gosta do luxo exacerbado.
_ Eu queria um pouco mais de riqueza. Mas nessa profissão que estou é bem difícil. – disse Alex.
_ Por que não muda de vida?
_ Eu até posso. Vou te contar: meu pai era coveiro do cemitério da cidade e nos últimos anos de vida conseguiu montar uma pequena agência funerária em sociedade com o meu atual chefe. Meu pai morreu cinco anos depois que foi aberta a agência , e o atual chefe não me deixou ser sócio com ele, em troca disso ele me dá um salário superior aos demais motoristas. Mas mesmo assim eu queria mais. – contou Alex.
_ Ah. Eu acho que você devia falar com seu chefe. Porque depois pode ser tarde. – advertiu Osvaldo.
_ Estou criando coragem. Não quero arriscar a perder meu emprego.
_ Como dizem os vivos: quem não arrisca não petisca.
_ Como assim vivos? Você ta vivo ou morto?
_ Deduza você sozinho. – desafiou Osvaldo.
_ Pode voltar pro caixão. Acho que devo ter batido, e agora estou inconsciente e por isso estou falando com um morto. – disse Alex eufórico.
_ Calma cara é brincadeira. Mas se você não olhar pra frente ai sim você pode bater, e serei quem terá que te levar pro cemitério. – disse Osvaldo.
_Tudo bem, me desculpe. Do que você “supostamente” morreu? – perguntou Alex mudando de assunto.
_ Não sei ao certo. Acho que envenenado. – sugeriu Osvaldo.
_ Envenenado? Por quem?
_ Pela minha família.
_ Não pode ser. Será que seus filhos, esposa, fariam isso?
_ Já te disse, eles são obcecados pelo dinheiro e como meu seguro de vida é milionário tentaram me envenenar.
_ Que coisa hein! Imaginava que fosse colesterol, enfarte, essas coisas!
_ Eu tenho uma saúde de ouro, apesar dos meus cinqüenta e cinco anos, eu me sinto com trinta e cinco. Já você parece meio acabado, essa vida de motorista não deve ser fácil. O que você faz quando não carrega mortos pra lá e pra cá?
_ Não faço muita coisa. Vou ao cinema, de vez em quando um restaurante, alugo um filme. Nada demais.
_ Precisa fazer mais coisas como eu. Vou a boates, jogo pólo, críquete e boliche também, faço até campeonatos com amigos. Vou te ensinar essas coisas.
_ Não precisa, e boliche já joguei quando era mais jovem. Você vai a boates?
_ Vou sim. Tem cada garota, ótimas bebidas. Você nunca foi?
_ Não. Ainda mais agora que estou casado.
_ Ta casado, mas não ta morto. Quer saber vou te levar numa agora mesmo.
_ Espera ai, temos que ir ao cemitério.
_ Pra quê? Tem algum morto aqui, ou melhor, no cemitério tem garotas e bebidas?
_ Mas espera ai, que boate está aberta a essa hora da manhã?
_ Meu amigo tem uma que fica aberta o dia inteiro. Certos homens têm a necessidade de ir numa boate e de manhã nenhuma mulher irá desconfiar. Agora vire a direita. – disse Osvaldo mostrando o caminho dentro da cidade.
Alex e Osvaldo chegaram na boate e foram recebidos por uma mocinha que cumprimentou Osvaldo – pelo visto ele deve vir sempre aqui, pensou Alex. Os dois foram conduzidos por um funcionário da boate. Os dois sentaram e veio um garçom para anotar os pedidos.
_ Eu vou querer um uísque vinte e cinco anos e você? – pediu Osvaldo.
_ Um refrigerante.
_ Negativo. Eu não te trouxe numa boate pra você pedir um refrigerante. Você vai beber conhaque e não se fala mais nisso. Pode anotar ai, um conhaque pra ele. E pra comer eu vou querer uma porção de cobra frita com cebolas e bastante pimenta.
_ Cobra frita com cebola e pimenta. Que diabos é isso? – perguntou Alex.
_ Uma iguaria oriental.Comi pela primeira vez em Macau.
_ Onde fica isso?
_ Na China. Nesse lugar se fala português, exótico, não é?
_ Ah claro, não mais exótico do que eu estar numa boate às 9 da manhã com um morto-vivo que vai tomar uísque com cobra frita. Isso sim é exótico.
_ Seu senso de humor é fascinante. – comentou Osvaldo.
Enquanto os dois conversavam um grupo musical tocava. Faziam cover de Frank Sinatra e agora estava cantando “As time goes by”. Osvaldo levantou-se e foi até o outro lado do salão e chamou uma mulher para dançar. Ela devia ter uns trinta anos, a idade que Osvaldo mais gostava para sair e conversar quando ia nesses lugares. Somente os dois dançavam no enorme salão e quando os dois chegaram próximos de Alex, Osvaldo começou a dizer:
_ Aproveite a vida meu amigo. Nunca se sabe quando irá morrer. Hoje eu tive a minha segunda chance, não sei se terei outra e por isso estou aqui aproveitando. Você ainda é jovem, então aproveite cada instante e faça dele um motivo para ser lembrado quando estiver mais velho, mas não pare de aproveitar, ainda velho continue gozando da vida. – filosofou Osvaldo que agora acompanha a letra da música tocada pela banda, enquanto Alex aprecia do conhaque, uma bebida que ele nunca bebeu antes.
Osvaldo voltou pra mesa no mesmo instante em que chegou sua porção de cobra frita. Ofereceu à Alex.
_ Não, não. Obrigado, sou mais batata frita.
_ Então ta. Não sabe o que está perdendo. Se eu fosse você experimentaria, afinal nunca se sabe se terá a oportunidade novamente. – disse Osvaldo pondo o primeiro pedaço de cobra frita na boca. Ele mastigou e depois de alguns segundos perdeu o controle e jogou o prato no chão do salão gritando:
_ Quem disse que aqui tem pimenta? Aqui não tem nem catchup apimentado. – Osvaldo se levantou e foi ter com o garçom que não tem culpa disso, antes de Osvaldo ir até a cozinha foi barrado pelo dono da boate.
_ É você quem ta fazendo bagunça na minha boate?
_ Onde está o Artur?
_ Aquele velho já está debaixo da terra e se você não ficar quietinho, você será o próximo. – disse o dono peitando Osvaldo.
_ Isso não será preciso. Logo, logo ele já vai estar lá. – disse Alex intervindo tirando Osvaldo da linha de frente com o dono.
_ Vão embora seus bêbados. – disse o dono.
_ Mas antes eu quero... – disse Osvaldo voltando de frente pro dono e lhe acertando um soco na cara. – Eu sempre quis fazer isso, agora vamos.
Alex e Osvaldo entraram no carro indo na direção do cemitério. Osvaldo relutou, mas logo desistiu, pois teve uma idéia brilhante para se vingar da sua família interesseira. Alex chegou um pouco atrasado para deixar o suposto defunto para ser vestido e maquiado. Minutos depois lá estava o corpo de Osvaldo no caixão aberto e seus familiares ao redor chorando – lágrimas falsas para se dizer a verdade. Logo depois o caixão foi levado para a tumba, onde o padre estava esperando.
O caixão ainda estava aberto, só faltava fechar e depois descer a sete palmos. O padre começou a falar sobre Osvaldo, sobre o homem de família que foi. E no fim começou o Pai Nosso.
_ Oremos a oração que Jesus ensinou a nós: Pai Nosso que estais no céu...
Osvaldo começou a fazer a contagem regressiva para seu plano.
_ ... e não nos deixeis cair em tentação, mas nos livrais...
_ das famílias interesseiras. – disse Osvaldo levantando-se e cortando a oração do padre que saiu correndo quando viu o corpo se levantando. Ficaram apenas a família de Osvaldo que olhavam abismados.
_ Mas... mas... você não morreu? – perguntou a esposa soluçando.
_ Morri e agora ressuscitei. – e pra terminar o que o padre começou ele disse: Amém. – disse Osvaldo indo embora do cemitério.
Quando saiu do cemitério viu o carro da funerária lá na frente. Alex ainda o esperava para terminarem o plano. Osvaldo entrou e Alex já perguntou:
_ E ai como foi?
_ Foi perfeito. Saiu tudo certo. O padre nem terminou a oração e eu levantei, assustando a todo mundo e ainda disse que ressuscitei. Minha esposa ficou sem palavras. – disse Osvaldo.
_ E ai vamos pra onde?
_ Cemetery Club! Enquanto o funeral acontecia me lembrei de um lugar super exótico a beira da estrada que serve bebidas, comidas num lugar que parece um cemitério, as mesas são tumbas e as bebidas e comidas tem nome de gente famosa que já morreu, é claro. – descreveu Osvaldo.
_ Esse sim é exótico.
_ Fui lá uma vez e vou pedir um Winston Churchill para beber e uma porção de Marylin Monroe para comer. – disse Osvaldo.
_ Que combinação hein.
O Cemetery Club os esperava ansiosamente, mas não foi possível a chegada deles até lá. Eles se distraíram conversando sobre pratos e bebidas que iriam comer e o carro bateu bem de frente com um caminhão. Depois que a polícia chegou constatou que nenhum dos dois sobreviveram. Segundos antes de eles baterem, Osvaldo jura ter visto seu amigo Artur com um frasco de pimenta na mão e Alex jura ter visto seu pai carregando um caixão nos ombros, quem sabe era do próprio filho.
Sexta feira, 13/01/06