MEU AMIGO KAFKA
MEU AMIGO KAFKA.
Oi, disse por que foi ali que o encontrei, encolhido entre a estante torta e a parede, com os braços enlaçando os joelhos.Tão triste.Parecia mesmo pequenino (como se ao fosse o homem alto que se sabia que era).Deu-me um sorriso de um lado só, os olhos sempre desolados para baixos, os lábios finos tremiam.
Quer ficar ai mesmo? Indaguei mais calmo, querendo não assusta-lo para que ele continuasse ali. Não fosse embora.De súbito, ao vê-lo, mais rápido que o susto já foi o medo que ele, assustado fosse embora.
Meneou a cabeça rapidamente, um meneio positivo.Deu um sorriso assustado, encostou o queixo nos joelhos.Uma aranha desengonçada subia-lhe pela blusa marrom que usava.Pensei em afastar a aranha, mas recuei com medo que ele interpretasse mal o meu gesto, que o interpretasse como uma agressão.
Olhei-o com divina compaixão, e se me revelava ao fixar, por seus olhos sempre baixos num sorriso desolado, uma profunda admiração crescendo por sua presença ali.Uma vontade crescia dentro de mim: de chegar mais perto, mas o meu medo ainda era o meu desesperador: ele parecia bem frágil.
Meus discos velhos estavam emparelhados na prateleira de cima da estante torta; os livros logo abaixo.O aparelho de som estava no chão junto a minha cama sem colchão decente.Meu quarto era modesto e eu tinha a importância daquele hospede, e no entanto ele parecia bem à vontade, porque o fato dele estar encolhido era devido a sua figura reprimida e assustada.
Havia um catre compacto escondido atrás da porta, logo lancei um olhar a este, e o olhei ainda imóvel, na mesma posição, levemente trêmulo.Eu deveria oferecê-lo logo a cama? Não, não precisasse ele ter medo, pois não era eu, sendo eu não havia perigo. Ele, como se estivesse ouvido algo, enterrou ainda mais o queixo entre os joelhos com o seu paralisado sorriso desolador nos lábios. A aranha desengonçada desaparecera por detrás dos seus ombros, e agora reaparecia subindo desajeitadamente a parede verde do meu quarto. Olhar dele parecia agora fixar o chão. Vi então seus sapatos de couro preto embaçados.Sentei-me na cama cruzei as pernas assim de frente para ele e sem dizer nada fiquei a sorrir suspirando discretamente.Encontrava-me feliz com sua presença.Até a solidão me pareceu apenas uma cortina.Eu o tinha ali: Kafka.
Você não quer se deitar, arrisquei a pergunta que poderia valer um arrelio.Ele me ergueu seus olhos tristes e piscado pareceu me dizer que por enquanto preferia assim como estava.
Assustado com a possibilidade daquele afeto comecei a ficar ansioso, nervoso, embora demonstrasse a necessidade no olhar, mas todo instante se me parecia engolindo algo em seco.Ele era tão delicado que qualquer gesto meu temia-me que o agredisse. Assim o admirei calado, num ar já levemente incrédulo.Pensei em sair do quarto, acudir em um copo de café. Quem sabe um pedaço de pão o apetecia? Parecia friorento, ele, mas acho que era tremedeira de certo receio ou da sua debilidade física emocional apenas.Nada mais.
Gostaria de um café quentinho, perguntei com voz velada e quase sussurrante, e ele levantou para mim uns olhos mais alegres, e, mais feliz que ele deixei o quarto um instante e corri até a cozinha de onde trouxe não somente café como também um pote de biscoitos.
Kafka ainda estava do mesmo modo, apenas os braços mudaram a posição, jogando-se um para cada lado, livres do enlace com as pernas, todavia o queixo ainda ficava sobre os joelhos juntos; embora parecesse, ele, olhar o mesmo ponto indevassável no chão, era como se já estivesse visto o pote transparente com os biscoitos na minha mão, e na outra a caneca de café fumegante, e esta foi a que lhe estendi, criando coragem mais que intimidade. Sua mão tremula, débil, emocionou-me e quis ampará-lo com a caneca, mesmo poupando-o deste “vexame”, deixei que ele levasse tremulo e sozinho a caneca até a boca. Parecia mesmo sôfrego ao tomar o café, segurando a caneca com as duas mãos, e o rosto protegido entre os joelhos. Mostrei-lhe mais uma vez, ainda com pouco sucesso, o pote de biscoitos a minha mão, desta vez até me atrevendo a acocorar-me de frente a ele.Fiquei-lhe bem próximo e notei que ele tão absorto e sôfrego a tomar café, talvez, nem ainda percebera a minha aproximação.Olhei-o com ar de doce serenidade.Contemplei-o sem mais nenhuma vergonha.Estava sendo bom.Ele respirou aliviado ao terminar de tomar o café, mesmo lançando um olhar esgazeado para dentro da caneca vazia, achando que fora até longe demais.
Abri a tampa do pote de biscoitos e me aproximei dele silenciosamente, com cautela.Parecia-me sorrir assustado. Demonstrei um mesmo sorriso para que ele se sentisse a vontade.A sua mão vacilante e pusilânime indo para o interior do pote e pescando um punhado de biscoitos de uma só vez escapuliu lépida para fora do pote, levando tremula os biscoitos à boca, deixando farelos escapar pelos lados. Cuidei em dizer com carinho que começasse devagar.Pareceu me atender, confiar sua mão vacilante – de dedos longos ossudos – voltando para dentro do pote, escapando com menos pressa desta vez.
Por que não fica tranqüilo, apenas um pouquinho, pensei enquanto me parecia prudente apenas fechar o pote de biscoitos.Kafka ainda parecia mastigar boa quantidade de biscoitos com aquele seu olhar ainda desolado acompanhado daquele sorriso inadjetivo.
Sentei-me na cama, olhei-o em silencio.Parecia que ele mastigava para se distrair.Relaxando meu corpo, ali sentado na cama, tentei uma maneira de distraí-lo.
Meu quarto é pequeno, mas é bem tranqüilo não acha, fui arriscando dizer e acabei notando que seus olhos assim – pela primeira vez - miravam-me. Seus olhos de um apagado cinza - vivo ardia uma emoção luxurienta de tristeza colocada.
O cheiro do abafado, acudi, posso abrir um pouco as janelas se preferir, fui enveredando, querendo deixá-lo à vontade. Ele pusera a caneca ao seu lado, vazia, porem não parecera fazer movimentos, e lançou um olhar de soslaio para a janela quando mencionei abri-la. Acudi neste intento, quando ouvi sua voz quase sussurrante a pedir que não, se eu pudesse... deixar fechada. Voltei-me por sobre os ombros, a mão hesitando na janela e vi seus olhos espantados, de um sorriso amedrontado assim estampando seu rosto angular de face escanhoada.Fascinava-me o seu menor movimento, e ainda me deslumbrou aquela sua voz de entonação quase fática, por que era de alguém que parecera ser gravemente insultado ainda a pouco. Tudo me doera profundamente.
A decisão. Eu precisava de uma decisão, por que tudo que mais me aprazaria era deitar caricias sobre seus cabelos fartos e negros, sua pele levemente morena e baça aquela palidez parva. Ele era um todo tédio assustado, um desequilíbrio do meu cotidiano na solidão do meu moquifo. Um amigo que assim surgia, sem bater a porta, pedindo socorro tacitamente. Uma criatura fragilizada e de altura e robustez que me enlevava a paixão.
Preparei-lhe a cama de armar ao lado da minha, assim com aquele mesmo pobre colchonete em que eu me deitava. A independência era uma estadia pobre, devassa às vezes. Pouco me importava as horas que se passava um dia inteiro olhado o “lá fora” por uma janela mínima. Quando chovia parecia-se dentro de um aquário.
Desculpe-me te dar isto Kafka, meu amigo, mas a vida que tenho é bem mais estranha do que aquilo que simplesmente achavas pior: a sua vida.
Sei que sofres como eu, estes passos de funâmbulo. Estou deixando-te a vontade. Vejo-o agora de pé a minha frente: um homem alto, de mãos longas, orelhas pontudas, sorriso fraco e tremulo, olhos cinza penetrante. Sou eu o mais frágil, Kafka; sou eu, não fujas de mim, aceite um canto junto a mim.
Ele primeiro se sentou na cama, e assim mesmo vestido deitou sua cabeça sobre o travesseiro. Vi-o no todo assim comprido, deitado sobre aquela cama. Eu, deitado de lado em minha própria cama, não tive coragem de tocá-lo. Não ousei, diga-se de passagem. Apenas o olhei com certa paixão que se desenfreava. Cavalo doido galopando, galopando, meus olhos enchem de água por que noto seu sorriso mais claro, assim olhando para cima, olhando para a lâmpada, é que esse cavalo vai me lavando a galope, longe desta quietude polida, dessa placidez como segundas-feiras. Eu galopo sobre, assim na imaginação para o insólito daqui por diante, mas tudo mais estimo agora, no sempre agora, é poder pegar a sua mão.
Autor: Rodney Aragão.
26 de março de 2008.