14 de fevereiro
Ela sempre soube que algo deveria estar errado. Porém nunca
imaginou a forma como iria descobrir tal coisa.
No dia de São Valentim ela decidiu que iria desistir de sua vida.
Essa era sua resolução número um, não importava o que iria acontecer,
ela iria abrir a mão de tudo pela morte. A sua morte.
Tudo em seu redor girava tão ordinário, e ela não conseguia enxergar mais a beleza e o brilho original que vira nisso tudo um dia... Há muito, muito tempo atrás. Porém, ela tinha uma amiga, e pensou no que pensaria Cláudia sobre ela, caso viesse a executar os planos que
há meses rondava sua mente, que a cada mês ficava mais fraca, cansada e sugestivel.. O que pensaria ela?
Os filmes incitavam-na a fazer loucuras, as quais ela pensava ser
capaz de executar com a faca da cozinha, porém, certa vez, tarde
da noite, quando o anti-depressivo havia adentrado seu sistema
vascular e ela sentia-se amortecida ela tentou fazer uma inserção
em seu pulso, levemente, apenas para ter uma noção. Primeiro a lâmina
era demasiada fria, dava medo, intimidava. Mas ela estava um pouco
cansada e achou que talvez estivesse atordoada o suficiente para
não sentir. A ponta da faca penetrou por seu pulso, bem rápido, mais
até do que ela imaginou ser possível. O sangue não tardou a correr,
sabe, ele era menos vermelho e quente do que ela esperava, apenas
um liquido sem sentido para ela. Como o amor.
Rapidamente atirou a faca para longe, não podia continuar com aquilo,
machucava demais!
Ela iria viajar, tinha, impulsivamente, decidido-se sobre isto aquela
madrugada, enquanto olhava o seu álbum de casamento, e tentava
encontrar momentos felizes com seu marido falecido. Ficou muito
triste e desolada quando não conseguiu fazer tal coisa, e chorou
muito quando percebeu já nem mais se lembrar com certeza como era
o rosto de seu marido. Quem era seu marido? Ela não saberia mais
responder. Seu "link" emocional com ele havia-se rompido.
Aquela noite estava cálida, porém ela trajava um jaqueta horrenda
vermelha, pega impensadamente no armário (muitas tragédias da vida são feitas por nós, como a trágica escolha desta jaqueta). Saiu, sem
malas, somente com sua velha carteira marrom, com seus documentos,
e sua identidade que não conseguia fazê-la lembrar-se do que era.
Quem era ela?
Ela não sabia mais.
Sentou-se a uma janela, e inspirou o ar dormente daquela noite
quente de julho, olhos turvos, observando o nada da noite. Só
conseguia pensar em por que? Por que estamos aqui?
Amor? Hum, o amor é uma piada piegas! Era isso que ela pensava
neste exato momento. Teria seu marido algum segundo amado-a?
Aquele bêbado ignorante! Mas, espere, não era assim que ela
se lembrava dele, esta não era a memória que fazia dele. Por que
lembrara-se disso? Porque esta era imagem que a sociedade impunha
sobre ela. "O marido ideal, tenha-o em sua casa!" Grasnavam as donas
de casa, "rico e bonito". Ele era essas coisas, mas era bom? Amava-a?
Ela tinha certeza, agora que sua cabeça estava abrindo-se para
ela, que não! Ele nunca amara-a uma única vez na vida!
Mesmo quando o filho deles nascera, ele não demonstrara carinho
para com ela, somente para aquele bebe, como poderia tê-la ignorado
daquele jeito por causa de uma criatura que sabia tão somente
sujar fraldas?
Ela tinha um ódio guardado, mas de onde havia vindo?
Ela não lembrava-se de onde.
Ela tinha bloqueado essas coisas.
Bloqueios não são bons.
E agora ela seguia num ônibus para cometer suicídio.
Mas por que iria fazer isso? Se seu marido morto é que era um idiota? E por que se preocupar com Cláudia, aquela vadia, que devia ser invejosa e fizera seu filho morrer de câncer. Aquela nojenta!
O mundo nunca fora gentil com ela. Porque ela fora com todo o mundo no fim de contas? Ninguém jamais amou-a e ela estava sacrificando-se por eles, aqueles ingratos!
Ela estava confusa. Por que? Por que fazer?
Por que não fazer?
Ela puxou a corda, um sinal sonoro faz o homem lá na frente no volante, parar rapidamente o grande ônibus azul e branco. Ela desceu muito rápido, saiu correndo pela estrada, literalmente perdida.
Um carro aproximou-se rapidamente, e acertou-a em cheio atirando-a
do outro lado da rua, torta, sua maquilagem borrada, e a jaqueta vermelha deixando-a com aquele olhar que ela odiava,
Ordinário.
Um homem desceu e viu aqueles trapos e apaixonou-se por aquela imagem pálida e maquilagem borrada. Ficou observando-a enquanto a levavam para a UTI.
Ele está observando-a há cinco anos. Há cinco anos ele vem visita-la todos os dias da semana.
É dia de São Valentim hoje.
Talvez ela acorde...