A Máfia do Divã
Estava tudo como deveria ser. Cassandra entraria no supermercado da rua do forte às oito da noite. Sairia de lá por volta das nove, acompanhada de dois filhos: Ângelo, de cinco anos; e Patrícia, de sete. O seqüestro de Cassandra fora programado desde janeiro, quando a Máfia do Divã entrou em contato comigo para facilitar o encontro do criminoso com a vítima. Para aqueles que não conhecem a Máfia do Divã, saibam que é uma das facções mais violentas de Florianópolis. Com 15 anos de existência, a máfia do Divã já seqüestrou 56 jornalistas, 19 políticos e 27 artistas, entre cantores, atores e escritores. Entrei nesse ramo há 13 anos, desde que perdi minha filha Carla de quatro anos de idade e minha esposa Jussara, de 26, em um fogo cruzado da polícia local com alguns pivetes, ladrões de galinhas. A lembrança de Carla e Jussara, minha família, martela dia e noite em minha cabeça. Vivo a base de remédios, posso dizer que vivo com a morte.
Em 23 de Dezembro de 1994, Elias Garotinho, na época um traficante de respeito, ameaçou-me ao exigir que eu o ajudasse. Elias queria sair do país, fugia há meses do Polícia Federal. Era um dos traficantes mais procurados da América Latina. Elias batia o recorde da Colômbia, tranquilamente. As favelas do Rio de Janeiro e os bairros oriundos de Salvador não chegavam nem perto do litoral catarinense. Consta, em uma pesquisa, que Florianópolis é a principal capital brasileira fumante de maconha. No entanto, o governo local abafa o caso, prefere divulgar as belezas naturais. O governo omite, por exemplo, a corrupção da Polícia Militar, os desvios de milhões dos cofres públicos que foram parar na conta do Secretário de Meio Ambiente do estado, Airton Gonçalves de Mello. Airton é pai de Marcos Loreira de Mello, um dos lideres da Máfia do Divã. Tanto o pai, quanto o filho, foram os responsáveis pelo seqüestro e homicídio do jornalista Fernando Carneiro da Silva. Este jornalista era nada menos que o diretor de redação da Folha Catarinense. Foi executado com sete tiros na cabeça por designar sua equipe a investigar a fundo a procedência do tráfico de drogas em Florianópolis. Durante uma semana, Fernando Carneiro recebeu ameaças por telefone, por e-mail e por cartas. Publicou as ameaças em manchete no jornal, exigia a atuação mais ostensiva da polícia, só que os agentes da lei, como eu disse, eram corruptos. Fernando Carneiro não foi assassinado somente pela investigação às drogas, mas por denunciar o secretário Airton Gonçalves ao Ministério Público, devido aos desvios que a Folha Catarinense divulgou com exclusividade. Fernando Carneiro assinou duas vezes sua sentença de morte. Seu assassinato foi repercutido no mundo inteiro, a CNN deu espaço ao caso em todos seus noticiários.
Mas aí você deve estar pensando, onde eu entro nisso? Eu menti ao dizer que minha função na Máfia do Divã é ser o intermediador. Na verdade, sou um dos assassinos. Você não imagina o que passa na cabeça de um franco-atirador. Nós (homicidas) não refletimos, apenas executamos, no teor da palavra. Não entrei nessa vida para me vingar do filho-da-puta que matou minha família, é claro que este fato me motivou, mas para achar o assassino eu teria que eliminar a Polícia Militar inteira. Como sabia que isso era inviável, optei em viver de forma mais lucrativa. Minha vida deixou de ter sentindo quando fui demitido da Folha, no mesmo período em que ocorreu a morte de Carla e Jussara. Juntei o útil ao agradável. Joguei fora toda minha ideologia de jornalista que aprendi nas burocráticas aulas da faculdade e me dediquei ao crime. Sem falsa modéstia, sou um pistoleiro como ninguém. Senti um gosto enorme ao matar Fernando Carneiro, um prazer que só quem é matador sente. Minha entrada para o crime surgiu quando eu ainda era jornalista, e até foi por causa deste caminho que me demitiram. Quando Elias ameaçou-me pedindo ajuda para fugir do país eu colaborei. Dei a passagem aérea anual que todos os jornalistas da Folha Catarinense tinham direito. Assim me veria livre de Elias, que chegou até mim por me conhecer de vista, eu era repórter policial. A fuga de Elias vazou, meu nome foi exposto, demitira-me e as conseqüências você já conhece...
Mas voltemos a Cassandra. Ela será seqüestrada por apoiar a campanha contra as drogas, de cunho moralista. Cassandra é uma escritora influente da região sul, também colabora com a Folha Catarinense e com o jornal Zero Hora, do Rio Grande do Sul. A intenção da Máfia do Divã não é matá-la, apenas seqüestra-la para provar quem é que manda: o crime organizado ou as campanhas moralistas? Para mim era serviço fácil. Estacionei meu carro atrás do automóvel dela. Era oito e quarenta da noite quando Cassandra saiu do supermercado, os filhos vinham atrás, carregando as compras. Momento perfeito para atacar. Preferi segui-la até a porta de casa, sem dar pistas, ela estava distraída com as crianças no carro, o que facilitou minha ousadia. A fechei com um cavalo de pau e apontei a arma para sua cabeça: “sai do carro, sua vadia! Sai do carro ou eu mato tuas crias!” A cadela implorou pela vida das crianças, deixei que os filhos entrassem para dentro de casa e coloquei Cassandra no porta-malas de meu carro. Desloquei-me até o lago oeste, lá havia uma cabana de madeira escondida sob um areal. A partir dali, passaria a conviver com Cassandra de Almeida. Tudo que ela exigia era folha e lápis, queria escrever o que sentia para publicar em livro. Ela falava e perguntava coisas sobre o existencialismo, tudo que estudei na faculdade, e eu respondia. Contei tudo a ela, sobre minha vida, minha trajetória e até sob a Máfia do Divã. Contei porque já havia passado uma semana, e de acordo com o regulamento da Máfia, sempre que se passam sete dias com o seqüestrado sem ordem para libertá-lo, é sinal de que a vítima será assassinada. Quis contribuir com ela por saber que eram suas últimas escritas, quis dar margem a sua imaginação. Dei a falsa esperança de que ela sairia viva dali.
Até que no dia 7 de março desse ano, o surpreendido fui eu. A polícia, (a que não era corrupta) descobriu o cativeiro do lago oeste, eu reagi tentando evitar que levassem Cassandra e fui morto com um tiro no peito e outro no crânio. Cassandra foi libertada com todas as informações sobre a Máfia do Divã, que, por sua vez, foi exterminada em parceria com a Polícia Federal semanas mais tarde. Cassandra de Almeida decidiu não falar sobre seus sentimentos no cativeiro, e sim publicar esta história na primeira pessoa, na voz ativa daquele que a seqüestrou e a vigiou durante nove dias, oito horas e trinta e quatro minutos