Explosões.

A vida corria sem sobressaltos, inteiriçamente. Atividades somente de quando em vez quando era preciso substituir alguém na lida simples do sitio pobre. Ir atrás de uma vaca parido que fazia parada na caatinga porque o bezerrinho não agüentava caminhar até o curral, procurar uma cabra que não retornava ou uma ovelha desgarrada, cortar ração aos porcos e puxar água do poço fundo para saciar aos animais em tempo de seca braba... Encarregavam-me de tarefas tais quando meu irmão mais velho ou meu pai estavam em outra atividade ou se achavam ausentes em outro empenho.

Geralmente eu realizava tais tarefas inflado de ódio. Detestava ocupar-me com afazeres medievais e os animais sofriam as conseqüências da minha má vontade. Jamais saía das minhas mãos pequenas uma vara boa de manusear, boa espessura e tamanho, de mutambeira, marmeleiro ou mesmo catingueira. Além de esgotar todo o meu repertório de palavrões e maldições, eu não tinha dó e impiedosamente surrava aos animais indefesos: era um grito e uma varada. Quando a garganta não podia mais, eu triplicava as varadas nos lombos magros, castigados pela seca, pouca água, pasto minguado e muitas surras iradas. Pobres animais... Surrados por quê? Somente por existirem? Acaso tinham culpa do lunatismo que me contaminava o espírito? Se não existissem animais eu certamente não estaria atado àquele deserto no meio do nada.

Eu queria mesmo era ser como os meninos da cidade... Sempre limpos, vestidos de calça comprida, camisa de gola, cinto na cintura e tênis Montreal no pé; alguns montados em belas monaretas da monark e o mais importante: estudantes! Era isso que eu queria ser, e não viver alí, enfiado naquela bimboca a tanger gado pé-duro, rebanho magro de cabras e ovelhas ruins de leite, ruins de carne, ruins de couro – gado ordinário que não dava futuro a ninguém. A prova viva: meus avós e pais alí perderam a mocidade, a saúde e nunca construíram nada de significativo. Existências inúteis, fiadas em criação magra e ridícula agricultura, plantação de fundo de quintal insuficiente até mesmo para matar a fome das vidas lancinantes. Vidas inteiras desperdiçadas em turbilhão de sonhares... Como que perdidas e abduzidas por errante rodamoinho de vento quente e areia fina...

Era vender tudo aquilo e se mudar à cidade. Aliás, já passava do tempo. Eu tinha quase quinze anos e ainda era analfabeto. Não que eu levasse jeito para os afazeres rústicos da lida no campo... Pegar no lápis me era tão custoso quanto pegar no cabo do machado. Mas devia ser uma questão de prática. Meu avô só podia estar errado quando, nervoso, dizia que eu não ia dar para nada, nada mesmo: nem para a caneta, nem para enxada!

Minha mãe dizia que estudo não dava camisa a ninguém e meu pai achava que o sacrifício de ir e vir diariamente à cidade, somente para aprender ler, não valia a pena. Muito esforço por nada! À assinar o nome e decorar a tabuada, aprendia-se por alí mesmo... Ele mesmo conhecia e sabia fazer dezoito letras e, se eu quisesse, não ligava de me dizer como fazer. O pouco restante de todas as letras que existia no mundo, outra pessoa podia ensinar, se eu levasse jeito para a coisa. Conta de mais e de menos, ele se virava bem e não deixava ser ludibriado por ninguém.

Eu, então, me metia comigo e distribuía coices e féis a gregos e troianos. Idealizava meu matupá e de lá saía somente de quando em vez. Era a felicidade a visita de Dorjão, um senhor da cidade que tinha enteados, filhos e crianças agregadas como se dono de creche fosse. Um caminhão lotado de meninos, na boleia ele, a esposa e um bebê de colo, se achegavam para passar o domingo conosco.

A meninada, então, se juntava e até o cão fugia de nós. (As meninas se pendiam às bonecas, no oitão). A primeira providência – sequer havia necessidade de planejamento - era sair do alcance do olhar dos adultos castradores. Ganhávamos o matagal, dávamos voltas longínquas até atingirmos a liberdade. E ai instaurava-se o salve-se quem puder. Os mais fracos, geralmente, os mais novos, tinham que servirem de ‘mulherzinhas’ aos mais velhos e taludos. Outras vezes comíamos cabras, ovelhas, mulas e jumentinhas novas.

Belo dia extrapolamos. Depois de imensa volta por trás da casa onde ficavam os adultos (meu pai e Dorjão saíam para surubar com a quenga Zuleica), atingimos e invadimos o paiol de dinamites da pedreira que funcionava nas terras do vizinho. Fizemos a maior farra! Instintivamente nos distribuímos em pequenos grupos e passamos a confeccionar bombas de todos os tipos e tamanhos. Artefatos explosivos de toda espécie é o que não faltava: pólvora aos tonéis, estopins, canudos de papelão, uma caixa grande cheia de espoletas... Quem nos visse, diria que planejávamos explodir o mundo!

De repente, não mais que de repente, os berros de meu pai e Dorjão a nos repreender veementemente. Não houve outro jeito a não ser atravessarmos o corredor polonês. Dois empata-fodas a surrar sem piedade uma corriola de aloprado que só entendiam uma linguagem: a bordoada.

Agora compreendo o perigo; um perigo tão perigoso quanto o capital na mão dos estúpidos.