Eles fumam Sam Marinho
Dicebant mihi sodales, si sepulchrum amicae
visitarem, curas meas aliquantulum fore
levatas. *
Ebn Zaiat
Évora, Portugal, 1754
Os cristãos estão imersos em tamanha loucura, que seus olhos brilham de jubilo ao ver a fogueira crepitando. Vibram ao sentir o cheiro da carne humana tostada pelas chamas. Fecham os ouvidos para os gritos, as súplicas e para o desespero. Estão ensandecidos. Um fanatismo cruel. Riem, gritam palavras de ordem.
- Queimem os hereges. Ao inferno com eles.
A anos os padres da Inquisição estão em nossos calcanhares feito perdigueiros. Nosso povo achou que isso havia acabado, estávamos cansados da perseguição, desde os escuros séculos da Idade Média nos escondemos desses fanáticos. Mas eles estão de volta. O fanatismo está crescendo novamente, atingindo proporções desmedidas. O pânico está se instalando nos clãs.
Paro enfrente a esse espetáculo cruel. Carnificina. A mulher já está sem forças, morta, esquecida para sempre. E o que havia feito? Ninguém aqui sabe. Somente o que os padres dizem em seus malditos Autos de Fé. E eles são insanos. Gregório IX era um doente mental, não há outra explicação. Se há não consigo enxergar. A fumaça se espalha. As chamas estalam. A assistência sorri, um sorriso sem sentido. Onde está o espetáculo em tudo isso? Os padres sorriem. Onde estão a lições de Cristo em tudo isso?
Grande parte da Europa está mergulhada nesse terror, vários membros dos mais diversos clãs já foram capturados, torturados e mortos. Muitos fugiram para outros paises. Mas muitos ainda estão aqui. Ainda lutam. Ainda correm os riscos. Somos tratados como monstros. Os que se revelaram foram mortos. Todos. Acusados de paganismo e bruxaria.
A fumaça sobe aos céus, deixa o ar mais denso, eu caminho para longe de tudo isso. Confesso que sinto medo. Medo de que sejamos os próximos a perecerem. Essa situação fez com que os clãs, depois de séculos de guerras entre si, se unissem. Nessa situação somos todos iguais, somos as vítimas.
Começa a chover, a principio timidamente depois, a água apaga as últimas brasas da fogueira, molha a cinza e desfaz a fumaça, mas já é tarde, a mulher já está morta. Caminho na chuva, que em minutos é uma tempestade. Meus pés descalços fazem sulcos na terra, as ruas já são lama, pessoas correm, animais doméstico se abrigam sob carroças e em qualquer lugar que não caia água. Caminho em passos lentos. Não temo a chuva, na verdade gosto dela, gosto de sentir as gotas enormes batendo no meu rosto, nos ombros e no peito, me sinto vivo e livre.
Entro em casa molhado. Alguns homens estão reunidos com meu pai, todos têm os semblantes preocupados, os olhos estão acesos, sinto o cheiro de suas transpirações e isso não é um bom sinal. Vou para meu quarto trocar de roupa. Homens que saíram de seus castelos para viverem até aqui com esses rostos nublados, isso não pode significar boa coisa. Ouço os nomes que falam, alguns conhecidos, outros não, mas sei que são todos clãs numerosos, as famílias estão se unindo por algum motivo. Sou muito jovem e não me contam muita coisa, não tenho nem trezentos anos, mas minha barba já começa a crescer e isso é um bom sinal. Tento escutar a conversa, pequenos fragmentos dela chegam a meus ouvidos, alguma coisa sobre os Narathus, outras sobre um possível conflito, perseguições da Igreja, a fúria dos cristãos, alguma coisa sobre uma lista de nomes que caiu, não se sabe como, nas mãos dos homens do Vaticano.
Penso no espetáculo cruel que presenciei na praça, Évora está se tornado uma espécie de Coliseu, os leões estão à solta e famintos de carne humana, os leões do Vaticano. A chuva aumenta. Parece que essa estação de chuvas não pára nunca. Batem na porta.
- Entre.
Esteban empurra a porta pesada, de madeira, sólida, dobradiças de ferro. Ele está vestido para sair, ou está chegando, não sei, ainda não o vi essa semana.
- Esteve na praça? – Ele me pergunta.
- Sim, estive, os cristãos estão loucos.
- Sabe que não deve se expor. É perigoso.
- Não tenho medo desses cães.
- Não é uma questão de medo. É prudência, não temos medo deles, mas estamos em desvantagem agora. E eles estão loucos, você bem o disse. É melhor tomar mais cuidado.
- Você a conhecia? – Pergunto a Esteban.
- Sim, era Verônica Narathus.
- Mais uma baixa para os Narathus. – Digo.
- Eles estão enfurecidos. Falam até mesmo em traição. Acham que algum outro clã fez a denúncia. Querem uma explicação.
- Mas quem é capaz de explicar essa loucura da Igreja.
- Ninguém Ignor. Estão ensandecidos. Os Narathus estão incitando outros clãs a uma cruzada contra a igreja. E isso pode ser perigoso. Esse povo todo aí fora acredita nessas bobagens que os padres dizem. Se nossa condição vir a se tornar pública vamos todos ser queimados vivos em uma fogueira no centro dessa praça, nas vistas desses fanáticos, da mesma maneira que fizeram com Verônica.
- É sobre isso que todos aqueles homens estão discutindo com meu pai?
- Sim. Seu pai é o líder dos Vichacks. É necessário que sua palavra seja ouvida. Haverá muito mais lideres chegando essa noite para uma assembléia. Estão vindo de várias partes da Europa e até mesmo do Novo Mundo.
- O que acontecerá, Esteban? – Pergunto.
- Você estará presente a assembléia, poderá tirar suas próprias conclusões.
Esteban se vai. Fecha a porta em um estrondo forte. O barulho da chuva aumenta. Os sinos começam a ressonar anunciando a noite que se aproxima. Sinto frio. A imagem de Verônica Narathus sendo queimada em praça pública não me sai da cabeça. Sou ainda capaz de sentir o cheiro de sua carne sendo carbonizada.
A assembléia é realizada em uma enorme sala na ala norte de nossa casa, toda de pedra, construída a vários séculos por Vladchsk Vichacks, passada de geração a geração através dos séculos ao homem destinado a se tornar o chefe de nosso clã. Muitos homens se espalham pelos vários acentos de madeira espalhados pelo salão, todos sobriamente vestidos, semblantes inquietos, olhos tensos, sobrancelhas que sobem e descem ao menor ruído, parecem ter o peso do mundo sobre cada um dos músculos da face.
Um homem, suíças enormes, nariz de traços pontiagudos, braços fortes, se ergue entre os outros, pede a palavra e caminha em direção a meu pai que se encontra de pé a frente dos bancos.
- Sou Vandi Destrovischei, creio que todos aqui me conheçam, e creio também que a maioria de vocês sabe o porque dessa reunião a calada da noite, tantos rostos que não vemos a décadas e até mesmo a séculos, parece não ser ignorado por ninguém, e até mesmo triste, que a imensa maioria de nosso povo só se reúna por ocasião de alguma tragédia ou ameaça, como é o caso. Sabemos todos que estamos mais uma vez ameaçados pela ignorância do homem, já foram vários, e dessa vez, mais uma vez, são os padres, esses malditos inquisidores, ao inferno com eles, eu sei que é o que todos nós pensamos de todos esses filhos bastardos do cristianismo, mas o momento não é para fúria, pelo contrário, precisamos nos manter calmos, colocar nossas cabeças no lugar e voltarmo-nos para um problema em comum, nossa guerra não é com os clãs vizinhos e nem mesmo é com os cristãos, nem todos são fanáticos e nem todos estão ensandecidos, nem todo querem ver homens e mulheres queimando nas fogueiras dos padres, nem todos aplaudem esses malditos autos de fé. Sei que já ouviram rumores sobre uma guerra entre os clãs, que os Narathus estão procurando cabeças para cortarem, todos estamos nervosos, receosos e com medo, mas posso assegurar-lhes que não estamos em guerra. Não haverá mais mortes, não haverá guerra.
Um homem pequeno, porém de cabelos enormes e suíças gigantescas ergue o braço, pedindo a palavra.
- Sou Ilgbbert Loariz, peço a palavra para fazer a seguinte pergunta ao Sr. Destrovischei. Como o senhor pode garantir essa paz que afirma. Todos nós sabemos da animosidade que cresce no seio de nossa espécie, desde muitos séculos atrás, não é um sentimento novo, é algo que já se acumula e se torna um viçoso fel a muitas gerações?
- Não há meios seguros de afirmar que não haverá guerra, eu reconheço, mas meus anos de vida, minha experiência me diz que dessa fez a paz não será rompida.
Infelizmente Vandi Destrovischei, estava errado.
Trechos do diário de Rebeca S. Bietrix.
23 de fevereiro de 1937
As insígnias nazistas estão nas portas. Hitler é um louco e deve ser parado. Ontem os soldados arrombaram a porta, armados, gritando palavras de ordem, cuspindo na gente. Arrastaram Cecília, bateram em seu rosto, e a levaram em um jipe do exercito.
Tenho ânsias de vomito só de pensar que eu já comprei, uma vez, para Arnold, um cartão postal desse louco.
Cecília estava se preparando para fugir. Ir embora para a América. A Europa está uma confusão, quase impossível sair da Alemanha. Ela estava com medo. Não estava falando coisa com coisa. Falava de vampiros, de perseguições ao seu clã.
Nunca entendi direito essa menina. Tinha os olhos sempre assustados como se estivesse fugindo de alguma coisa ou de alguém. Estava sempre alerta, quase não dormia e esse comportamento piorou nos últimos anos. Neurótica, confusa e sempre assustada.
27 de março de 1937
Papai está desaparecido desde ontem, tenho medo de que os soldados o tenham capturado também. Não tivemos mais noticias de Cecília. Muita gente sumiu sem deixar rastro. Os soldados andam pelas ruas, impõem um toque de recolher. Estou com muito medo. Arnold disse que a guerra logo vai acabar. Mas não são essas as noticias que temos. O que os soldados comemoram nas ruas o avanço do Reich. Os nazistas vibram com os passos de Hitler. Os judeus estão sendo caçados como animais. A sanha dos soldados não tem freios.
01 de junho de 1937
Nenhuma notícia de papai. Arnold também sumiu. Estou sozinha. Nenhuma noticia de Cecília. Os soldados estão farejando tudo e não sei o que procuram. O bairro está tomado por eles, armas enormes nos ombros, sorrisos maldosos nos rostos. O que procuram? Tenho mais medo ainda. Arnold estava errado, a guerra não está chegando ao fim. Onde esta ele? Onde está papai? Onde estará Cecília?
Dublin, Irlanda, 1972
O som da locomotiva é como uma canção aos meus ouvidos. O ar entra pelas narinas, gelado e rarefeito, talvez por causa do resfriado. As pessoas passam apressadas, gente comum, mãos escondidas dentro de grossas luvas. Longos rolos de fumaça escapam da locomotiva, o barulho ritmado de seu coração em chamas me acalenta. Parece que foi ontem que cheguei na Irlanda, mas já faz muito tempo. Cheguei na época da morte de Charles Parnell, ele havia apanhado um resfriado após fazer um discurso em meio a chuva, morreu de febre reumática. Faz muito tempo. A situação política depois de sua morte, que já não era boa, piorou ainda mais.
Tomo Guinness enquanto espero por Cecília, a cerveja está gelada, desce queimando a garganta, que já sente os primeiros tormentos do resfriado. . O relógio marca meio dia e um terço, meus olhos espiam o pouco movimento das ruas próximas a rodoviária. Cecília está atrasada mais uma vez, anda devagar, se virando a todo momento, atenta, sempre com medo de ser seguida por quem quer que seja, está já em seu espírito, tem medo de qualquer coisa que não sabe bem o que é. Digo a ela que estamos seguros por algum tempo, estou na Irlanda a muito tempo, Cecília diz que gostaria de estar em alguma parte da América, Estados Unidos, Canadá, Brasil talvez, mas não está de toda triste na Irlanda, se sente em casa, digo a ela que a Europa é sua verdadeira casa. Mas ela diz que quando puder vaio para a América.
Vejo-a caminhando contra o fraco sol do meio dia, anda de vagar como sempre, alerta, em eterno estado de vigilância, paranóica até, chego a pensar comigo em certos momentos. Se aproxima, sorri, seus lábios estão trêmulos.
Sinto frio e ela também, isso me faz lembrar de nosso primeiro encontro a mais de um século atrás. Enquanto o grande castelo dos Loduz era incendiado, na primeira grande ofensiva dos Narathus. Eu a ajudei fugir em um pequeno barco, aquela noite fazia tanto frio quanto hoje. Naquela noite eu ainda podia sentir o cheiro da carne de Verônica carbonizada na fogueira da Inquisição, e se fechasse os olhos por um segundo podia vê-la entre as chamas. As vezes ainda sonho com a cena. Pesadelos terríveis. Tomo mais cerveja. Cecília sorri.
Quatro anos atrás.
O telefone toca insistentemente. Uma. Duas. Três. Quatro. Cinco vezes. Depois se cala. A água do chuveiro cai sobre meu corpo. Quente, quase que escaldante. Alguns segundos no mais absoluto silêncio. O telefone volta a chamar. Alguns toques e se cala mais uma vez. Volto a ouvir apenas o som do chuveiro. A fumaça se desprende da água. Forma uma cortina fina ao meu redor.
Quando saio do chuveiro o telefone já não toca. Silêncio profundo. Enervante. Alguma coisa estranha nesse silêncio. Presságio de alguma tragédia. Tomo uma dose de uísque. Sento-me no sofá. Ligo a TV. O canal 13 exibe seu curso básico de fazer idiotas. Durmo. Acordo meia hora depois com o telefone tocando mais uma vez. É a polícia. A voz do outro lado da extensão fala sobre Cecília. Aconteceu alguma coisa com ela.
Chego a casa de Cecília no meio do caos, viaturas, carros da policia, parece cenário de CSI, ou outro seriado americano qualquer. Policias entram e saem. O corpo ainda está na cena. Alguém me segura pelo braço.
- Você não pode entrar. Vai contaminar a cena.
- Vá se foder.
Entro casa a dentro. O corpo está caído no centro da sala. Uma pequena poça de sangue. Nenhuma arma, nem um sinal de violência além do corte na garganta de Cecília. No canto da sala vejo uma bituca de cigarro. Apanho-a.
- A vitima era fumante? – O detetive me pergunta.
- Sim.
Saio, deixo o corpo. Deixo tudo para trás. Levo a bituca comigo. Sam Marinho. Cecília fuma, mas nunca fumou Sam Marinho. Só pode ser do assassino esse resto de cigarro.
A polícia não sabe de nada. Não consegue explicar nada. Não sabem onde foi parar todo o sangue que devia estar em suas veias. Não conseguem justificar sua lividez, a transparência de sua pele. Cecília era uma princesa, a herdeira do trono dos Loduz, mas a polícia não sabe de nada disso. Eles vivem em um outro mundo. Um mundo onde não existem as coisas que eu estou acostumado a ver. Não sabem o que eu sei. Os humanos estão perdidos em meio a uma guerra que não conhecem. Uma guerra de centenas de anos. Essa noite se travou uma batalha nessa casa e Cecília perdeu. Uma baixa a mais para o clã dos Loduz. Faz quase trezentos anos que Cecília teme esse momento, momento em que a guerra invadiria sua casa. Ela sempre quis fugir. Nunca quis saber de nada disso. Não queria ser herdeira de trono nenhum. Não queria guerra alguma. Queria apenas ser uma pessoa normal, viver entre os seres humanos.
Durante muitos anos ela conseguiu. Conheceu pessoas, amou, odiou e viu as pessoas se degenerando, as viu sendo corroídas pelo tempo, enquanto ela se mantinha intacta. Mudou-se varias vezes, de cidade, de estado, de país. Não adiantou, as pessoas continuavam a nascer e morrer a seu redor. Ela fugia da guerra. Mas a guerra estava a seu redor. Não havia como escapar, não havia como fugir. Ela conseguiu por algum tempo. Mas a guerra não perdoa os inocentes. Eu sempre soube disso. Acho que Cecília também sabia. A vida a estava sempre separando das pessoas que amava.
Atualmente.
Já se passaram quatro anos desde a morte de Cecília. Eu fumo devagar. Fumo Sam Marinho, fumo essa merda de cigarro desde aquela noite. Só deixarei de fuma-lo quando matar todos eles. Caminho até o bar. Compro uma longneck. Cerveja. Tomo em goles longos enquanto fumo. Coloco os olhos rapidamente na tela da TV. O canal 13 anuncia a chegada do papa ao país.
- Grande merda.
Imediatamente minha memória é arrastada para aquela tarde fria de 1754, na praça central de Évora. Os tempos da inquisição foram terríveis. Será que ninguém se lembra disso. Não, nenhum deles esteve lá. Eu estive. Ainda sinto o cheiro. A fuligem. O asco. Por isso não aplaudo a chegada do Papa.
Ainda chove. Chove desde as sete horas da noite. Frio. Os ossos estão doendo. Fraturas recentes destes quatro anos de buscas, lutas, brigas. Tenho cicatrizes pelo corpo. Penso nos Narathus que já matei nesses anos que se passaram. Nenhum deles me trouxe Cecília de volta, não importa, a caçada continua. Essa noite é apenas mais um episódio dessa guerra. Sou um justiceiro? Sou um louco? Já não sei. Sei apenas que não posso voltar atrás. Não posso parar. Já é tarde demais. E essa chuva que não pára. Os últimos dias têm sido assim, úmidos.
Naquela noite o telefone tocou várias vezes enquanto eu estava ainda no chuveiro, era Cecília, chamou insistentemente. O que ela queria?
Eu não queria essa guerra. Ninguém queria. Nunca pensei em de fato tomar um partido. Mas a morte de Cecília me fez mudar de idéia, jogou verdades do meu rosto, foi como uma cusparada. Eu pegaria cada um deles, levasse o tempo que fosse.
A chuva está cada vez mais forte. Gosto dessas noites chuvosas. A caçada é menos enigmática, mais suave, o sangue tem um cheiro mais forte, um cheiro que entra por minhas narinas de uma forma mais branda, me anestesia.
Meu nome é Ignor, sou do clã dos Vichacks. Minha família não tomou de imediato partido na guerra. E quando tomou escolheu o lado errado. Por isso eu desertei, fugi para longe. Então encontrei Cecília. E ela também fugia. Tínhamos algo em comum, nossas famílias estavam em guerra a mais de duzentos anos. E nos queríamos apenas paz. Penso do que ela estava querendo me dizer naquela noite em que não atendi ao telefone. De madrugada, durante o sono, ouço o som do telefone, quase todas as madrugadas o som me assombra. Talvez se eu houvesse atendido ela ainda estaria viva.
A guerra entre o clã dos Loduz e dos Narathus já tem mais de três séculos. No submundo do mundo que você conhece existe um mundo oculto, escondido atrás de cada parede, atrás de cada imagem, o mundo por detrás do mundo. Um mundo que você não vê. Um mundo que você e sua família desconhecem quase que por completo. Alguns homens desertaram, fugiram, espalharam histórias de terror, instalaram pânico em algumas épocas da história, os homens não estão preparados para a verdade. Loduz e Narathus foram queimados nas fogueiras da Inquisição Católica a séculos atrás, acusados de bruxaria, e outras coisas que os homens não conseguiam explicar. Nossa espécie sempre foi acusada de torpezas, mas os humanos é que nos assustam. Pintam-nos como apenas uma lenda, um mito. Personagens fugidos da famosa fabula de Stoker. Nos chamam de vampiros. Sanguessugas, e outras palavras de repugnância. Eles não sabem, mas não somos apenas personagens de uma fábula. Estamos aqui, estamos vivos e estamos em guerra.
O canal 13 ainda anuncia a chegada de vossa santidade. Saio do bar. Tomo a cerveja em um gole longo. Sorvo o ar com força. Sinto o cheiro dos Narathus. Tornei-me um especialista na caçada noturna. Não sou um caçador de vampiros. Sou um vampiro que quer justiça. Quero descobrir os assassinos de Cecília, apenas isso. Essa é minha cruzada nesses últimos anos. A policia já arquivou o caso a muito tempo. Mas tempo é o que não me falta. Tenho séculos e mais séculos e não descansarei enquanto não conseguir punir o culpado.
Não me importa essa maldita guerra. Não tomo partido. Não quero saber de poder. Tudo isso me enoja, minha guerra particular é o que me motiva. O sorriso de Cecília me ensinou algumas coisas. E um exilado está sempre disposto a aprender. Aprender e tirar proveito de cada lição.
O Narathus está parado sob a luz acesa do poste, a luz amarela inside sob o tom anêmico de sua pele. Ele acende o cigarro. Duas baforadas. Muita fumaça. Sam Marinho. Sinto o cheiro desse cigarro a quilômetros de distância. Talvez esse Narathus não tenha culpa de nada, mas ele fuma Sam Marinho. Não tenho quase nada contra eles, somos todos iguais, marginalizados, escondidos nas sombras da noite, mas um Narathus fumando Sam marinho matou Cecília, e isso eu não posso perdoar. Posso estar cometendo um erro, mas isso é uma guerra. Não fui eu quem a declarou, não fui eu quem deu o primeiro tiro.
A morte é rápida, ele nem sequer sabe o que lhe atingiu. Só há um meio realmente infalível de se matar um vampiro. Nada dessa bobagem mitológica de cruzes, água benta, alho, prata, isso tudo é lenda contada por aqueles que nem se quer acreditam que vampiros realmente existem. Há somente um meio realmente eficaz e eu o conheço. O corpo tomba na calçada, o sangue jorra, caminho até o Narathus que ainda está respirando. O sangue escorre pelo bueiro, coloco o dedo no orifício provocado pelo tiro, provo seu sangue, adocicado, não gosto de sangue de Narathus.
Caminho de volta para o carro. Jogo a cerveja no lixo. Acendo um outro Sam Marinho.
Além das noticias sobre a chegada do papa a TV noticia mais um crime do maníaco do Sam Marinho. É assim que a mídia sensacionalista me chama, Maníaco do Sam Marinho. O repórter com cara de ressaca, anuncia direto do coração da cidade, é essa a expressão que o boçal usa, um clichê, tão antigo quanto a própria cidade, anuncia mais uma morte, e mais uma bituca de Sam Marinho encontrada no local. A quatro anos atrás, quando tudo começou, a imprensa marrom parecia uma matilha de cães atrás de uma única raposa, uma balburdia desgraçada, um entusiasmo doentio, os jornais enchiam suas primeiras páginas com os corpos, editais bombásticos pediam providencias mais enérgicas das autoridades, e nada, as mortes continuavam, eu continuava implacável em minha sanha caçadora.
O repórter do canal 13, direto do centro da cidade, anuncia a descoberta de um corpo dentro de um apartamento em um edifício de luxo, diz que os vizinhos notaram o mau cheiro, o cadáver já estava em decomposição. A vitima morava sozinha, conhecido magnata das telecomunicações. Um magnata que fumava Sam Marinho, francamente eu não entendo. Associaram a morte ao Maníaco do Sam Marinho, já que uma evidencia física, do mesmo foi encontrada no lugar; restos de um cigarro.
Mudo de canal, estou cansado dessa conversa, nada que presta na programação, acendo outro cigarro, na geladeira tem cerveja preta. Penso em Cecília, e no que ela queria me dizer a quatro anos atrás naquele telefonema. Não consigo chegar a conclusão alguma. Ela havia sobrevivido a muitas coisas, e finalmente fora vencida. Sobreviverá a loucura dos cientistas nazistas que fizeram experiências com ela e com muitos outros vampiros, sobreviveu a caçada por mais de três séculos, para morrer sozinha em sua casa, tentando ligar para mim. Isso não era justo. Nunca vou me perdoar por não ter atendido àquele telefonema.
Daqui a algumas horas esse mesmo repórter, provavelmente, com essa mesma cara de ressaca, vai anunciar mais um dos crimes do Maníaco do Sam Marinho, maior serial killer já visto, falaram de seu requinte e de sua crueldade ao atirar na nuca e depois cortar a garganta da vítima, cobraram mais providências do governo, incitaram a população ao caos, e venderam jornal, ganharam contratos publicitários com multinacionais nos intervalos dos telejornais, atingiram números no IBOP. Que se foda toda essa balburdia, ninguém tem nada com isso, isso é um problema entre o assassino de Cecília e eu. A TV paga mostra um filme de sacanagem, um negro enorme com um membro gigantesco fode uma loira, que geme para o prédio todo ouvir. Merda de programação. Desligo a TV. O ar entra gelado pela janela. Tenho uma garrafa de vodca pela metade, mas está quente. Tenho evitado dormir nos últimos trezentos anos. Tenho pesadelos com Verônica Narathus sendo queimada viva em praça publica, vejo padres sorrindo sarcasticamente perante o espetáculo. Padres que falam de pecado e salvação e queimam pessoas. O pesadelo é muito antigo, mas ainda acordo suando frio.
O Narathus dessa noite não tinha nenhuma identificação, nenhum número de telefone, apenas algumas notas miúdas nos bolsos das calças. Madrugada.
Olho em direção ao computador, textos pela metade. Quase não tenho tido tempo para escrever. Meu editor está me cobrando o romance, que escrevo já a quase dois anos. A caça aos Narathus tem me tirado o sono e o tempo de escrever. Cecília gostava de ler meus contos ficava lendo por cima dos meus ombros enquanto eu escrevia em Dublim. Naquela época o frio da cidade não era capaz de nos contagiar, estávamos sempre em ebulição. Tomávamos cerveja, andávamos de mãos dadas pelas ruas do centro, íamos aos teatros, líamos, eu escrevia e ela lia por cima do meu ombro. Tempos que deixaram saudade, é como se naqueles três anos a guerra houvesse sido adiada para que nós vivêssemos um sonho em meio ao antigo pesadelo.
Há rumores pela cidade, rumores sobre o Maníaco do Sam Marinho, dizem que é um louco, as pessoas estão assustadas, eu dou com os ombros. Paro o carro na contra mão, nenhum guarda por perto, nenhuma placa de que é proibido isso ou aquilo. Há rumores de que o maníaco vai atacar o Papa. A polícia parece acreditar em tais boatos, blindam carros, seguranças as centenas, papa-móvel e o escambal, fazem um circo. A menos que o papa seja um Narathus nojento que fume Sam Marinho, eu não o atacarei.
Caminho para o bar, uma dose de uísque custa quase a quantia que havia no bolso do ultimo Narathus que exterminei, tomo em goles longos. A noite mais uma vez está escura. Molhada, a dias que não pára de chover. Chove, assim como chovia em Évora naquele dia. Assim como chove dentro dos meus pesadelos. Olho a TV, meus olhos estão longe, estão pregados no sorriso de Cecília naquela época que vivíamos na Irlanda. Sei que sairei daqui essa noite, encontrarei mais um Narathus fumando Sam Marinho e o matarei, talvez faça isso pelo restos dos meus dias, por mais séculos e séculos e talvez não chegue a lugar algum. Talvez eu esteja apenas alimentando a guerra. Não sei.
Sei apenas que não consigo deixar de sentir esse ódio. Essa gana. Desde aquela tarde chuvosa em Évora. Minha alma também foi queimada naquela fogueira. E queima até hoje. Saio para a chuva, mas não há como apagar essa chama dentro de mim.
Mais uma noite de caçada. Mais uma vitima do maníaco do Sam Marinho.
*Diziam-me os amigos que, se eu visitasse o túmulo da amiga, minhas preocupações seriam suavizadas.