VOLTAR NO TEMPO
Zecão era uma pessoa daquelas que nunca avaliava, era desmedido, briguento e fanfarrão, não levava desaforo para casa e nunca pensava antes de arrumar confusão.
Muitas vezes buscava briga e quando estava frente à frente com ela, não se apartava antes de se considerar vitorioso.
Numa dessas contendas, o bonachão quis brigar com quatro lutadores de jiu-jitsu, quando estava em um bar na Rua Augusta. Depois de beber todas, ele começou a provocar os rapazes, primeiro por causa das roupas com os símbolos da academia em que treinavam.
_ Olha as camisas dos meninos! Dizia ele ao vento, esperando por uma reação.
Sem obter resposta, Zecão resolveu apelar e sem titubear, parou em frente à mesa dos rapazes e bateu a mão no móvel, olhou para os quatro, que não entenderam o que estava acontecendo.
_ Qual é a boneca que vai querer apanhar primeiro? Perguntou como se fosse o super-homem ou um homem estupidamente forte.
Sim, porque apesar de ser machão e responder por “Zecão”, ele era franzino, com pouco mais de um metro e sessenta de altura.
_ Não vai dar nem para o começo! Disseram todos os freqüentadores do bar.
Sorte de Zecão, foi a inteligência e a disciplina dos lutadores. Quando se levantaram, logo após o silêncio de todos ( que esperavam a pancadaria), os rapazes pagaram a conta e saíram. Somente lembrando, o menor deles deveria ser três vezes maior que o nosso amigo Zecão..
Na saída, os quatro olharam em direção ao briguento e rindo disseram:
_ Se tivesse, ao menos, tamanho de gente!
Zecão, sentindo-se o todo-poderoso, e para não dar razão para as gargalhadas que sobressaltavam aos ouvidos, disse mais uma vez ao vento:
_ É isso mesmo! É melhor ir embora antes que eu faça cada um engolir a roupa!
Virou-se, balançou a cabeça e tornou a beber.
Por muitas vezes, sua mulher lhe pedia calma e Zecão jorrava-lhe um tonel de insultos insensatos. Não se separavam porque a mulher o amava muito, mesmo com tantos defeitos. Zecão sabia ser romântico com a esposa, quando não arrumava confusão, é claro!
Aconteceu porém, que um dia ao sair de casa para ir trabalhar, Zecão despediu-se da mulher, que muito preocupada disse:
_Tome juízo hoje e veja se não se mete em confusão!
Fora como se Marina dissesse o contrário. Mal saíra de casa, Zecão topou com um armário, que estava sendo transportado por dois sujeitos, parecendo gorilas.
Imediatamente partiu para o seu repertório de ofensas e para ir às vias de fato, bastou dizer somente um pequeno “A”.
Socos, tapas e pontapés marcaram a contenda. Ora Zecão apanhava, ora apanhava de novo. Eram dois ( e que dois!) contra o “super” Zecão, que já não passava de Zequinha.
Tentando desvencilhar-se dos socos, Zecão empurrou um dos homens. Infeliz tentativa de sair da confusão.
Ao ir em direção à rua, o adversário tropeçou, batendo a cabeça na guia e estrebuchando, pôs-se a sangrar pela boca e morreu.
Nunca vi homem tão assombrado quanto Zecão, naquele instante. Talvez o mais terrível em sua vida.
Choro e lamentos. Zecão acabou sendo condenado a passar quinze anos de sua vida na prisão. Legítima defesa alegou o advogado, as testemunhas afirmaram e até o outro rapaz que batia em Zecão afirmou isso.
O que condenou o infeliz foi o fato de ele ter se dirigido ao júri, em pé, com os braços separados do corpo, tal um palito de sorvete imitando o Tarzan de filmes antigos, dizendo:
_ Eu sou assim mesmo! Se não mato na porrada, dou um sopro e o infeliz voa e até bate a cabeça!
O Juiz, querendo ajudar-lhe, falou:
_ Senhor José, não é isso que os fatos mostram!
_ Como não doutor? Ele teve até sorte de morrer com a batida na cabeça. Caso contrário, eu o mataria de tanta pancada no coco!
_ Senhor José – retomou o Juiz. O Senhor estava apanhando mais que mulher de malandro!
A sala se contorceu de tanto gargalhar com a cara ruborizada de Zecão. Mas ele não deu o braço a torcer e continuo relinchando. E a cada palavra que dizia, mais se complicava.
Seu julgamento terminou na condenação. Mas não pense que ele foi condenado por ser culpado, mas sim por ser boca-dura.
Lá se foi Zecão para o seu martírio, bem nos cafundós do interior de São Paulo, para cumprir o seu tempo de prisão.
Logo que chegou no presídio, Zecão, um tanto assustado teve de responder a inúmeras questões e após contar sua infelicidade por repetidas vezes, acabou com a alcunha de “Zé do Empurrão”.
Zecão passou por dificuldades imensas, durante o tempo de exílio, vivendo em condições muito precárias e privado de quase tudo.
Mas Zecão era Zecão. E da forma com que agia antes de ser preso, continuava agindo: maldizia, provocava, brigava e sempre apanhava. Por muitos anos essa foi a sua rotina.
Distante do convívio familiar, o sofrimento do homem parecia não ter fim. Era desgraça atraindo desgraça e ele já não tinha mais o sonho de ser pai ( tão desejado, antes daquele dia), nosso amigo perdera a mulher, que não agüentou tanta humilhação.
Na última visita que teve, ele e a esposa conversaram muito:
_ Zecão, eu bem que avisei! Disse ela muito tristonha.
_ Eu não posso mudar a minha natureza. Sou assim e pronto!
Ela, cada vez mais tristonha, retrucou:
_ Eu só pedi para você ter juízo e não se meter em confusão. Poderia muito bem ter se aprumado, tirado a poeira e ter ido trabalhar. Mas não! Você tinha de brigar!
_ E eu ia deixar barato? E você sabe que foi um acidente! Respondeu ele.
_ Isso, todo mundo sabia! Retrucou ela. Então por que você não ficou quieto na frente do juiz? Até ele queria te ajudar. Mas você era o Super-Homem...
_ Era não! Eu sou! Entrecortando-a.
_Então Super-Homem, saia voando e resolva a sua vida, ou melhor, volte no tempo!
Esta é a parte da conversa do casal que se pode contar. O que dialogaram daí em diante não é agradável aos olhos e nem aos ouvidos. Somente Zecão e Marina sabem o que ali fora dito e só aos dois cabe o direito de falar tal coisa.
O fato é que o teor da conversa abalou muito o nosso companheiro, que de forma muito estranha, ao passar dos anos, mudou da água para o vinho.
Dez longos anos passaram e ninguém mais reconhecia o Zecão. Estava tão mudado que se alguém lhe cuspisse no rosto, ele o limpava, sorria e saía.
As más línguas e os boateiros de plantão espalharam milhares d versões sobre a sua mudança, comentando desde traição até conversão de religião. Mas nada disso era verdade. O que importava era a transformação de Zecão.
Nessa época, a amargura no peito era-lhe constante, refletia em seus erros e em seu temperamento, chegando a conscientizar-se de todo o mal que causara a si mesmo. Os anos não foram muito gentis com o infeliz e em seus momentos reflexivos se mostrava sonhador, dizendo para si:
_ Se eu pudesse voltar no tempo e acordar naquele dia, faria tudo diferente!
Certo doa, Zecão, estando deitado em sua cama, cochilou e acordou quando entrou um homem na cela, alguém tão velho como o próprio tempo. Seu rosto, mesmo trazendo as marcas da idade, brilhava como a flor da juventude. Era algo misterioso, pois ao mesmo tempo em que a velhice estava nua aos olhos, parecia-lhe ter acabado de nascer, tamanha a mocidade transmitida. Sem dúvida, aquele homem era como o tempo, que por mais velho que fosse, renovava-se a cada dia.
Zecão, por alguns instantes ficou atônito sem compreender e sem se entender naquele lugar e nesse exato momento. Por segundos esqueceu o mundo, voltando a si quando o homem lhe falou:
_ Posso atender a teus anseios!
_ Que anseios? Quem é você? De onde me conhece? Perguntou Zecão, como se conhecesse aquela pessoa.
Tranqüilo, o velho (ou o moço) lhe respondeu:
_ Eu?! Já se esqueceu de mim, Zecão?
_ Nunca lhe vi, amigo! Disse ele.
_ Você nunca me viu, mas meus atos influenciaram na sua vida, todos os dias!
Zecão, outra vez pasmo, perguntou:
_ Quem é você?
_ Eu sou o Tempo! E posso fazer com que você acorde naquele dia!
Zecão espantou-se, porém desacreditando, retrucou:
_ Pode mesmo?
O Tempo confirmou.
_ Eu posso e vou lhe propor o seguinte: vou lhe dar uma semana a mais.
_ Como assim? Quis nosso amigo saber.
_ Vou deixar você acordar uma semana antes e na véspera daquele dia, você me dirá se quer ou não continuar. Serão sete dias para modificar o seu passado!
Antes de Zecão ter qualquer menção de se recusar, o moço (ou o velho) recomeçou:
_ Durma, durma Zecão, durma...
_ Acorde Zecão! Era Marina que lhe despertava.
Zecão assustou-se como se estivera em um sono profundo durante anos.
_ Que pesadelo! Disse, não se recordando do que lhe acontecera a poucos instantes.
Levantou-se, arrumou-se e quando ia beber um pouco de café, tropicou em uma cadeira.
_ Filho da P...! Xingou desmedidamente, como faria e sempre fez.
Após as reclamações, saiu para trabalhar como se coisa alguma não lhe ocorrera.
Durante os dias que se seguiram, ele saía e voltava reclamando. Logo no primeiro dia conseguiu discutir com várias pessoas, por diversas razões.
_ Que inferno! Disse ao retornar no terceiro dia de sua nova chance.
_ O que aconteceu, homem de Deus? Perguntou a esposa.
_ Foram aqueles animais da firma. Todos riram de mim, como se eu estivesse pintado de palhaço!
Ela indagou:
_ E por que você não riu com eles, ao invés de se zangar?
_ Não sei! Sabe Marina, nestes últimos dias tenho me sentido estranho. Às vezes olho para certas pessoas e penso no que elas irão fazer e fazem. Parece que eu já tinha visto aquelas cenas antes!
_ Isto é chamado “deja-vú”. É uma sensação de já ter visto algo, antes de acontecer. Não é estranho e todo mundo tem essa impressão. Falou Marina.
_ No meu caso deve ser de “ já vivi”, pois parece que alguém quer me mostrar algo que eu deva evitar! Eu sei muito bem o que vai acontecer. Acho que sou vidente ou algo assim!
_ É nada! Retrucou a mulher. Você deve estar impressionado e está vendo demais!
_ Ah, isso não! Disse ele de forma grosseira.
Iniciou-se ali mais uma discussão, como não se via desde o dia em que Zecão fora preso (ou desde o dia em que ele será presos).
Depois de muito bate-boca, Marina olhando-o firmemente, comentou:
_ O mesmo Zecão briguento e resmungão! Zecão é sempre Zecão!
Ele arregalou os olhos, assustado, parecendo-lhe que aquilo lhe dizia algo importante. Então sentou-se e ficou mudo pelo resto do dia, tentando entender o que significava.
Os dias passaram rápidos e nosso amigo, apesar de todas as manifestações para que ele pensasse e repensasse em sua vida, não deu-lhes valor, tornado-se o mesmo homem reclamão de antes.
No penúltimo dia do retorno, Zecão fez as mesmas coisas que fizera na primeira vez e ao deitar-se comentou com a esposa:
_ Tenho a impressão de que minha vida toda está passando e eu ainda não aprendi o que deveria. Parece-me que amanhã devo tomar uma decisão que a mude para sempre...
_ Vá dormir homem! Disse Marina. Durma...durma...
_Acorde... acorde Zecão! Era o velho senhor, moço como antes, que lhe chamava.
O pobre assustou-se e rapidamente percebeu onde se encontrava, relembrando de tudo.
_ É o Senhor!?
_ Sim, sou eu! E como disse, retomaríamos nossa conversa um dia antes de sua infelicidade... O que você me diz sobre a sua vida?
_ Não sei bem o que pensar!
_ Pois bem! Vamos entender o que aconteceu! Retomou o homem. Você deve estar se perguntando várias coisas: “Por que não se lembrou deste lado da vida? Por que voltou a ser como antes? Por que não mudou nada, dentre as coisas erradas que fez?”
_É isto o que eu quero entender! Falou nosso amigo.
Então o jovem de idade avançada continuou:
_ O que você carregaria para essa nova vida, caso se lembrasse?
_ Os erros que deveria evitar!
_ Mas dessa forma você não seria você. E com certeza pensaria que tudo não passou de um pesadelo. Como de fato aconteceu!
_ Isso é verdade! Logo que acordei no primeiro dia, os poucos momentos que relembrei me pareceram sonhos!
_ Foram os sinais que lhe deixei para ver se você os entenderia. Cada sonho, cada deja-vú. Mas passaram totalmente desapercebidos na sua mente!
_ E por que? Questionou Zecão. Por que não foram mais precisos?
_ Porque você deveria refletir sobre esses alertas. Seria fácil mudar o futuro, quando se sabe os males que o nosso comportamento trará, somente para evitá-los, não buscando melhorias de espírito e da alma. Foi justamente por isso que você não se lembrou totalmente deste lado!
_ Está certo! Isto eu entendo, mas o que você me propõe agora? Quis Zecão saber.
O homem olhou fixo para Zecão e disse-lhe:
_ Você escolhe de que ponto quer retomar a sua vida. Daqui onde estamos ou voltar para a sua antiga vivência!
Zecão olhou para o jovem-velho, pensou e disse:
_ Quero continuar daqui. Nesses últimos dias eu sentia que aquele já não era mais o meu mundo, que o meu EU antigo jamais seria melhor do que sou agora. Percebi que hoje sou um homem com muito mais qualidades do que antes!
_ Eu sei disto! Indagou o velho-jovem. Alguns dizem que na vida aprendemos pela dor ou pelo amor, só se esquecendo de falar que algumas coisas aprendemos pelo sofrimento e outra pela devoção. Sempre aprendemos através das duas formas e não somente por uma delas.
_ Isto eu percebi muito bem. E agora ? Disse nosso amigo, após um instante de silêncio.
O Tempo olhou para ele e falou:
_ O Tempo é o melhor remédio para acalmar as angústias. É o melhor mestre em todas uma vida.
Zecão concordou com o jovem-ancião, balançando a cabeça positivamente. O Tempo concluiu:
_ Agora você vai dormir e quando acordar não vai se lembrar dessa última semana!
Zecão sentou-se na cama e fitou o velho-jovial mais uma vez. Cismado, perguntou:
_ Você já sabia qual seria a minha escolha. Não é mesmo?
_ Claro que sim! Tente entender que o tempo envelhece e a cada dia renasce, porém ele não volta rejuvenescendo. Por isso o passado não muda. Caso você escolhesse o outro lado, cometeria os mesmos erros fatídicos e teria de passar por tudo de novo. A sua escolha foi a mais acertada o possível, pois devemos sofrer uma única vez por causa de um mesmo erro. Boa noite e durma bem... durma... durma...
Zecão mal fechou os olhos, assustou-se com um trovão, da chuva que começava. Estava deitado da mesma forma que se pusera na cama há uma semana atrás, ou naquele mesmo dia. Sentou-se, olhou ao redor e disse consigo:
_ Foi um sonho !?! Somente um sonho que me ensinou muito!
Pensativo, levantou-se, foi até a janela para observar os pingos da chuva, viu o tempo passar sem se aperceber e novamente falou para si:
_ Foi um sonho!