Traduzir-se

(Caro amigo, acho que ainda não absorvi nem dez por cento do que o texto comporta nas entrelinhas. Não obstante, fica aqui o agradecimento do fã de Nelson Rodrigues pelo carinho da homenagem. Grande abraço!

Enviado por xxx xx xxxxxx em 17/03/2008 22:50

para o texto: Rede de Cristal (Ao fã de Nelson Rodrigues) (T884444);

lendo isto, ocorreu-me Traduzir-se; sem querer plagiar Cazuza, achei melhor usar x como codinome).

Traduzir-se

Chovia. Chovia torrencialmente no sertão do Siara Grande. O rio estava irreconhecível. Nem parecia o costumeiro mar de areia branca enfeitado com tímido fio de água azul.. Estava de barreira a barreira, cheio de águas turvas e vorazes que se assomavam aos verdes mares. O casal havia de atravessá-lo e levar a criança aos pés do vigário, na Capela de São Francisco de Assis.

Se não fosse naquele dia, seria dali a quase um ano. Seria imprudência confiar tanto assim na sorte. Ocorresse um sinistro e o recém-nascido viesse a morrer, pagão não viraria anjo. Quem prestaria contas no dia do juízo final? O pai e a mãe. Com enchente ou sem enchente, atravessariam a torrente e conduziriam à pia batismal o menino de seis meses de vida.

Serviu para alguma coisa o bananal que a enchente devastara: dos troncos, fez-se uma espécie de plataforma flutuante. E sobre esta, venceram a correnteza. Ante Deus estavam no dia e hora marcados. Dar-se-ia, como manda a crença inabalável do povo da caatinga, o ritual de apresentação de mim a Deus.

A igreja cheia de gente (eu chorava se me colocassem em posição desfavorável à observação do movimento) e muitos santos de gesso, barro, pedra – alguns apenas desenhados - espalhados pelo grande salão paroquial. Perante o altar, fileiras de recém-nascidos a esgoelarem-se. Insuportáveis!

Foi então que mirei o olhar num santo de pedra que não parava de me escrutinar. Encarei-o e fiquei esperando como se adivinhasse que ele - justamente aquele dentre tantos – queria alguma coisa a mais comigo.

A pedra, aliás, o santo, foi ganhando ares vitais: cor de gente, maciez de pele, quase imperceptíveis expressões de riso/dor, um encantamento por mim, cílios e pálpebras a moverem-se e o corpo inteiro, enfim, ganhando vida!

Arregalei e fixei tanto o olhar que... Vai ver que este meu jeito esquisito de olhar nem é do astigmatismo ou da tela do computador... Originou-se naquele dia! Meu pai movimentava-se comigo no colo, mas, eu não tirava os olhos dos olhos do santo que ganhara vida alí, diante dos meus olhos e somente eu percebi! E não dá para dizer que se fuma ou cheira aos seis meses de vida.

Abriu a portinhola da redoma e suspenso, andando sobre os ares, dirigiu-se até mim:

- Eu sou Deus.

- E daí? – perguntei. O que você quer aqui? Seu lugar é lá na parede, na casinha de santo...

- Todo lugar é meu lugar, coisinha fofa... – disse, esfregando o dedo na minha barriga.

- Sem viadagem, por favor – disse - Por que saiu do seu lugar?

- Venho te dizer uma coisa muito boa.

- Boa pra você ou pra mim?- perguntei.

- Olha só: vou te dar o poder de conhecer plenamente a alma humana. Mas não poderás traduzi-la, codificá-la ou partilhá-la. A inquietude acompanhar-te-á todos os dias de tua vida.

Disse e desapareceu, encantou-se. Quando consegui olhar para a redoma, lá estava ele. Olhou-me fixamente e, sultimente, torceu o cantinho da boca e piscou o olho. Foi cerrando a fisionomia - por instante, achei que fosse cera - e prosseguiu em mutação até tornar-se pedra novamente.

Decidi que não obedecer-lhe-ia. Tornei-me literato e travei a grande lutar da minha vida inteira: traduzir a alma humana.