As conchas do rio

As conchas do rio

Meu pai chutava pedra, cuspia fogo e avançava para engolir inteiro a quem o chamasse homofóbico. Dizia que homofobia é coisa de viado casado, enrustido, que adora afagar um peludo, acariciar e render-se a uma tora grande, grossa e cheia de leite quente. Sem-vegonhice. Odiava homem e não simpatizava com nenhuma parte do corpo masculino: nem mesmo o bolso. Preferia morrer a conviver com tal desfaçatez. Ai de um filho dele que resolvesse envergar a munheca, andar jogando os quadris direita/esquerda ou pisar fofo feito bailarina! Ele retiraria do registro o sobrenome, deserdaria e daria uma surra de arrancar o couro do lombo do boiola!

Mas, se o verme ainda assim sobrevivesse, o botaria no olho da rua para acabar de morrer à mingua: sem moradia, sem amigos, sem família... Piedade, ele não teria mesmo. Felizmente tal desgraça passara longe de sua linhagem sangue bom, puro. Seus filhos homens estavam acima de qualquer suspeita: comiam todas e gastavam dinheiro para levarem suas namoradas a motéis!

Minha mãe padecia de mal sem cura: a língua maior que a boca! Não dava trégua e encontrava defeitos, gravíssimas falhas morais e comportamentais, na vizinhança inteira. Não saía da janela, passava pente-fino e dela não havia como salvar-se: falava o que ouvia, acrescentando sua parte, claro; falava o que supunha em alucinadas conjecturas e fazia inferno da vida de todos. A vizinhança não sabia criar filhos. E por isso o mundo estava perdido. Cheio de prostitutas, como a vizinha da direita; maconheiros, ‘pedreiros’ e cheiradores como os vizinhos da esquerda... Viados escandalosos como os vizinhos da frente e assim por diante. Quem não tinha calcanhares de Aquiles tão evidentes assim, minha santa mãezinha dava um jeito. Sua satisfação era rotular. Parecia que tinha imensa necessidade de apontar os defeitos alheios como se isto a limpasse, a redimisse de sua própria podridão social e, talvez, até moral. Ela e meu pai só faltavam derrubar o quarto, trancavam-se a qualquer hora do dia e ouvíamos ensurdecedora sinfonia ais e uis. Uma vez, após tal sarau, saiu do quarto também o pedreiro que veio fazer reparos. Quase surtei. Mas não sei por quais argumentos, achei que poderia ter confundido alhos com bugalhos. Meu pai era todo cheio de graça.

Eu ouvia falarem tais e estarrecia-me. Ninguém na região era mais viado do que eu, o filho macho que eles botavam maior fé! Minha namorada andava pelas tamancas e batia o pé: não iria mais a motel se não fosse para fazer o que o todo mortal faz: transar! E se eu não tomasse jeito e não lhe metesse o ferro, botaria a boca no trombone, diria a todos que a fruta que ela gosta eu como até o caroço. Eu me cagava de dia e de noite, rareava as escapadelas com Bigode... Cada vez mais me sentia dentro de uma conchinha prestes a eclodir.

Um dia desviei do trabalho e fui parar num viadeiro em Cabasoro. Estava muito injuriado, cansado, sem tino, sem rumo, sem saber o que fazer. Fui procurar um homem para chamar de meu. Além disso, o cinema (viadeiro, gays para todos os gostos) é muito tranqüilo e lá dentro me sinto livre feito uma gaivota lépida, leve e fogosa.

Entrando, fui direito ao banheirão, cuja porta não parava de bater contra o portal. A grande fresta em baixo, antes do piso, levou-me a cometer grave infração: meti o celular e fotografei as caras dos quatro pés masculinos que trepavam vigorosamente.

Caro leitor, nunca poderias imaginar quem aparece na tela. Alí, nitidamente, as caras e bocas de foda na fotografia. Quem diria: meu pai! Encostei-me a parece, atônito, e esperei saírem. Como podia aquilo, gente, meu pai, maior pinteiro da paróquia. Não me restava duvida que ele apreciava a coisa mais que eu. Pensei entrar em tremenda crise existencial, ou, talvez, quem sabe, fazer proveito dessa grande descoberta, soltar os grilhões, a franga e cair na farra...

Abriu-se a porta; saiu um marrento desconhecido, arrumando a mala e as calças, e, logo atrás, ele – meu papai - com cara de fudido, feliz e muito macho. Disse-lhe que vira tudo, que descobrira tudo e ele nem aí. E minha mãe sabe, perguntei. Respondeu que nem ia saber, pois, eu não ia ser tonto de falar e além do mais, ela não era, nem de longe, a santa que auto-pintava-se.

Relaxei. Crise existencial anda tão fora de moda. Resolvi aproveitar as benesses do poderoso e inesperado aliado. Tornamo-nos amicíssimos e em pouco tempo ele confidenciou-me que minha santa mãezinha trepava, há anos, com o pedreiro que fazia reparos em nosso santo lar. Acusar é mesmo a maior defesa, disse-lhe e ele respondeu que o segredo ainda é a alma do negocio.

Dei para me pintar, me vestir à Nei Matogrosso e dublar para eles, papai e mamãe, no recôndito familiar. Eles mesmos, longe de constrangimentos, confeccionam minhas roupetas com tiras de pano e conchas do rio que corria lento, caudaloso e cristalino a pouco do quintal de nosso cândido lar.