Aqueles que devem morrer: Cena 12. A vida em comunidade.
Cena 12. A vida em comunidade.
Encontrou João sentado no chão; a empregada varria a sala. Já havia empilhado todos os seus papeis e livros e recolhido suas peças de roupa suja. João era burro, não no sentido intelectual, mas era afável e não resistiria a uma intimação para sair. Tinha que tirá-lo dali.
Foram a um boteco, tomar média com torrada canoa. Aquela idéia de morar em comunidade, afinal, era impossível de dar certo. Ao invés de se criar um grupo fraterno, as diferença individuais acabam prevalecendo. Muitas pessoas não contribuíam para pagar as despesas; estavam desempregadas. A combinação original era a de que todos se apoiariam, dividiriam os trabalhos. Os que tinham pretensões artísticas se deixavam ficar em casa, esperando a inspiração reveladora, espécie de santo que baixaria, parecido com um ataque epiléptico. Dividiam o tempo entre a poesia e a louça suja. Os que ganhavam dinheiro fora, julgavam-se superiores, e guardavam a secreta impressão de estarem sustentando os artistas vagabundos. Ou simplesmente vagabundos. Como alguém pode vir ao mundo com a proposta de ser um artista profissional? João decididamente não era um artista. Não havia como justificar seu ócio com esse argumento. E, certamente não era um trabalhador. Seu principal interesse era questionar os hábitos e rotinas; para demonstrar a utilidade das cuecas deixou de usá-las.
A relação entre as pessoas passou a ser feita com chistes e piadas, um jogo de agressões mútuas nada saudável. João era o “Triste-trastre”; Aldo o “suburbano musculoso”, o “superman”, o “timoneiro”, o grande líder”, o “fuehrer”: Tom era o “cabeça”, o “bigode cantante”, Violete era a “fera de Ramos”, a “pequena notável”, a Violeta Alcaparra”, a “Rainha da Babilônia”; Maria Antonia ninguém teve coragem de apelidar: era bonita demais, e agradável, e cheirosa e gostosa. Pareciam codinomes, mas eram sacanagens puras, acentuando um traço qualquer da personalidade.
João não ofendia a ninguém. Quando o chamavam de triste-traste, respondia com um olhar aflito. Podia-se sentir que por dentro estava fervendo, doido para retaliar. Mas a reação nunca acontecia. Aos poucos foi ficando indiferente ao jogo e se ensimesmando. Já Aldo partia para a briga franca. E terminava com um longo discurso, acusando os comunitários de individualistas vaidosos. Violete exigia de todos a participação nos serviços domésticos. Parecia estar querendo obrigar aqueles machos em formação a se curvar ante a fatalidade de lavação de pratos, panelas e privadas.
- Tua mãe não te ensinou a mijar dentro da privada?
Risos, risos e mais risos.
Mijar era uma arte e um grande segredo, que passava de geração em geração: as grandes questões políticas daquele domicilio se pautavam pela quantidade de pingos de urina que cada um era capaz de depositar fora da privada, ou na sua tábua, que era de plástico.
- Gente, talvez a privada não tenha sido inventada para se urinar de pé. Talvez o rei Luís XIV mijasse sentado como uma fêmea, enquanto ajeitava o chinó e retocava a maquiagem. Estava quase vestido como uma fêmea, falava de modo afeminado e docemente escorchava o povo de França.
“Cabeça” achava que a privada havia sido inventada a pedido do rei da França, para se livrar dos incômodos e fedidos urinóis. Uma coisa ligada por tubos diretamente ao rio Sena, com a abertura vedada por um selo d’água, e formato gracioso de pescoço de cisne, evitando emanações mal cheirosas, e capaz de levar os dejetos reais para bem longe de seu delicado olfato e de sua real visão acostumada às mais deslumbrantes obras de arte. Um toque de alavanca, e voilá, cascatas de água perfumada levariam o cocô do rei para os subúrbios de Paris.
“Como urinamos de pé, é impossível evitar que alguns poucos pingos remanescentes e residuais na ponta da uretra masculina, que recém emitiu o seu fluxo urinário, caíam sobre o piso, ou sobre a tábua. Conforme a quarta lei de Newton”. A não ser que todos urinássemos sentados. Mas aí, já é muita viadagem.
A platéia explodia em risos. Até as mulheres, a parte ofendida que tinha que encostar as suas nádegas macias nas tábuas molhadas para, com asco levantar rapidamente, e enxugá-las, sorriram um pouco envergonhadas. Violete não achava muita graça. Mas o riso é uma reação coletiva que contagia. Eles riam como se estivessem vivendo num daqueles enlatados de televisão, que tem risos e aplausos gravados para mostrar onde estão as piadas. Depois os programas brasileiros passaram a adotar o sistema, porque a televisão não é igual ao cinema. Tem gente que solitariamente assiste a um programa humorístico e não dá uma única risada. Rir virou ritual; Quando querem nos fazer chorar tocam uma musica melosa. Quando querem nos fazer rir, fazem-nos ouvir gargalhadas.
Esses risos são coerção pura. Reduzir ao ridículo a ordem estabelecida, ou a ordem que luta para se impor. Coisas que no fundo servem para demarcar padrões de comportamento em grupo. O aceitável e o inaceitável. Afinal, qual a família que não tem um maluquinho? Ou um viadinho? Ou um vagabundo? Ou um bandido? Ou um torturador? Qual a família que não tem um cara esperto, que para ser esperto tem que transformar todos os demais numas bestas quadradas. Ou seriam, bestas ao quadrado?. Aquilo ali estava virando uma grande família, não muito diferente da casa de papai e mamãe.