Viagem Através do Sonho - Segunda Viagem
Levantei-me da pedra que naquele momento já se tornara suportável. O calor que emitia era conseqüência do tempo em que ficara exposta ao sol que, naquele momento, já não estava tão inclemente quando do momento que eu ali chegara.
Já passava das quinze horas. E o calor daquela região diminuía, em virtude das correntes do ar e da posição o sol.
Era muito comum eu caminhar por aquela vereda, dirigindo-me aos locais aonde costumava ir, procurar por outra realidade que para muitos parecia ser apenas fantasia de uma mente desocupada e sem objetivos.
Minha parada era apenas para descansar. A rota era longa e exigia que parasse para um pequeno descanso. Como de costume, eu sentava-me naquela pedra como se ela fosse um trono que me aguardava. Eu sempre descansava ali.
Há muitos anos eu deixara de ir por aquele caminho. Quando voltara a transitar por ele, pude notar que pequenos arbustos haviam nascido e crescido nas reentrâncias das pedras. O pequeno arbusto que agora se destacava começava a dar sombra àquele trono.
O tempo sempre nos impulsiona a ver uma nova realidade que desponta em nossas vidas que nos dá o tom e indica o momento certo de mudanças ou mesmo de continuarmos a seguir a mesma rota.
Na região nem todas as pessoas conseguiam ver além dos aspectos formais e concretos que são olhados e vistos pela maioria dos que se aventuram em sua passagem pela terra.
Os que ousam olhar por detrás das cortinas e mesmo levantar uma pequena parte do véu conseguem vislumbrar, o que existe e que ainda não se apresentou para o mundo concreto. Mundo este que preenche a necessidade da maioria da humanidade que se encontra tão sofrida.
Olhei para cima, procurando vislumbrar o tamanho da nuvem que se aproximava e iria por algum momento tampar a luz do sol que ainda incomodava devido a sua claridade e calor. Sabendo que o tempo se esgotava, eu precisava apressar-me para chegar ao lugar no momento aprazado. Reiniciei a caminhada, esperando, no entanto, que a nuvem me beneficiasse com a sua sombra, mesmo que passageira, pois iria economizar algumas gotas d`agua que eram perdidas através do suor
Quando reiniciei a caminhada, pássaros andavam despreocupadamente na minha trilha e voaram espantadas com o som dos meus passos e das pequenas pedras que rolaram.
Queria poder fazê-las entender que nada de mal iria acontecer-lhe, porém não podiam ouvir minha alma que se encontrava circundada por um corpo e impulsionada por um espírito em constante busca.
Os pedregulhos que se encontravam soltos na trilha provocavam certo receio, por estarem soltos e devido à inclinação do solo, já escorregara neles algumas vezes, o que provocara uma aceleração do coração diante do susto.
Uma leve brisa tocou meu rosto no momento que as nuvens obstruíram a claridade do sol. Apressei o passo, tentando alcançar a maior distância possível debaixo daquele enorme guarda-chuva que se abria no espaço. Era uma bênção dos deuses.
Minha costumeira ansiedade era motivo de fazer-me andar sempre e a cada vez mais rápido, para conseguir transpor aquele trecho e alcançar o portal para outra realidade. O local deveria estar em algum lugar daquele caminho. Muitas pessoas já haviam transitado por ali sem, no entanto, conseguir ver e sentir aquilo que eu já presenciara em outras andanças pelo caminho. A maioria dos humanos não consegue enxergar.
Caminhando, observei detalhes do terreno que ficava cada vez mais íngreme. Lembrei-me da primeira vez que conseguira transpor o portal que ligava um mundo ao outro. Nem mesmo eu sabia como conseguira. Apenas uma realidade se antepunha a outra e nestes momentos surgiam interrogações que tentavam, dentro de um conceito concreto de mundo, explicar aquilo que não poderia ser explicado através do lógico ou racional.
Deveria ser um encantamento e nada poderia ser pesquisado através da razão que sempre procurava uma explicação para tudo. Como se tudo necessitasse de explicação que viesse satisfazer os nossos anseios. E com isso pensamos encontrar um liame dentro deste nosso conturbado mundo, onde a razão pensa ditar as normas da convivência e da própria sobrevivência.
Ali perto da trilha, um camponês colocava fogo em alguns galhos secos juntados em um enorme monte. Além dos galhos, vários pedaços de pau e algumas folhas estavam sendo atirados na fogueira.
O odor da fumaça de folhas ainda meio verdes chegou até mim no momento em que a nuvem quase não tampava o sol, que ainda continuava bastante quente naquela época do ano.
O camponês cumprimentou-me com um aceno de cabeça no momento em que jogava sobre o monte de folhas e gravetos outros galhos. Ele apenas apressava um modo de transformação.
Eu conseguia ver e sentir através o fogo que serpenteava, algo vivo, contorcendo-se de um lado para outro, para cima e para baixo quando era tocado pelo vento que, embora pouco, parecia dar-lhe vida. O pequeno ardor nos olhos era conseqüência da fumaça que chegava até mim.
Destruímos quase tudo que nos cerca e nos dá sustentação da vida e não nos apercebemos disto, pois, ainda não temos a cultura da conservação e da modificação natural dos elementos. Estamos sempre querendo alterar as formas naturais de transformação. A máxima de Lavoisier se encontra esquecida.
Eu analisava a atitude daquele pobre homem que lutava para sobreviver em um terreno árido e agreste. Fazia aquilo apenas porque copiara de outros que o antecederam, mas que nunca se preocuparam em encontrar um novo caminho. Nunca tentaram descobrir uma nova realidade que pudesse existir entre uma e outra alternativa. A sua própria sobrevivência naquela região tão inóspita lhe obrigava a seguir aquela rotina de tentar criar seus meios de sobrevivência no solo onde vive. Ao criar também está destruindo.
Afastei meus pensamentos e continuei minha jornada de certa forma impaciente, pois sentia que o tempo se esgotava e eu ainda não conseguira atingir o ponto que julgava apropriado para a transposição e atingir meu destino. Em algum lugar existia um ponto.
Lembrei-me que ainda não ultrapassara a cerca que tantas vezes me obrigara a me curvar e transpô-la por debaixo dos arames. Por duas vezes rasgara a camisa. Passava sob a cerca, arrastando-me.
Quando afastei o pensamento, divisei logo à frente a cerca que me obrigava a ajoelhar-me como se estivesse implorando e pedindo permissão para transpor aquele local e chegar aonde eu queria.
Era o tributo que eu pagava.
Apressei o passo no momento que nuvens encobriam o sol, permitindo novo refrigério ao corpo que se encontrava cansado e suando por todos os poros. A umidade era grande, embora não houvesse muita água por ali. Após ultrapassar a cerca, prossegui atento, esperando a qualquer momento a mudança e transformação, permitindo assim que eu atingisse o local que procurava.
Alguns anus voavam com seu canto agourento, enquanto perseguiam insetos para o seu alimento. Passei pelo pequeno morro que ficava depois da cerca e que indicava que eu estava próximo do local onde eu deveria mudar de ambiente. Sairia daquele local árido para atingir um pedaço do paraíso que ficava bem ali, mas invisível aos olhos humanos.
É muito triste enxergar e nunca ver.
Algumas vezes fiquei imaginando se outras pessoas teriam tido a felicidade de alcançar aquele lugar. Talvez eu nunca viesse saber. Tudo era estranho e toda vez que tentava entender o que acontecia, ficava confuso. Sempre procuramos comparativos para o que ainda não entendemos.
Finalmente, conseguir atingir o ponto que eu julgava ser o local exato da transposição ou passagem. Olhei para cima e notei que o sol parecia indicar que era apenas meio-dia, quando na realidade deveria passar das quatro horas. Naquele momento eu sabia que me encontrava do outro lado.
O calor, os animais, os insetos, a fumaça, o suor, a sede, tudo ficara para trás. Agora somente sentia a satisfação de ver um sol que parecia ser enorme lâmpada pendurada no meio do céu, iluminando e mantendo a vida naquele mundo. Era para mim uma grande satisfação estar novamente ali.
A alegria tomou conta de mim e transformou minha alma que antes se encontrava impaciente, em um símbolo perfeito do contentamento. Agora tudo seria alegria e satisfação, tudo que sempre desejava, via naquele lugar.
Ali parecia cada dia mais lindo e todas as formas de vida adquiriam as cores próprias dos lugares sagrados, com nuances de rara beleza e forma. Sons e cores pareciam flutuar no ar. A criação tinha ali manifestado o ideal dos deuses.
Todas as preocupações e apreensões ficaram para trás, num átimo de tempo no espaço. Eu não conseguia entender nem mesmo queria, apenas sentia aquele momento sublime. O conceito de céu cristão encontrava ali sua correspondência.
A temperatura era sempre equilibrada, os perfumes das flores, o canto dos pássaros pareciam-me dizer que deveria abstrair-me do passado e viver apenas aquele momento sem me preocupar com o futuro. Os conceitos deveriam ser esquecidos e apenas viver.
Lembrei-me do enorme lago e caminhei em sua direção, para deliciar-me com a visão dos peixes e ter a felicidade de encontrar aquela mulher (anjo) que eu vira entoando um canto tão suave e harmônico.
Uma manada de cavalos alados cruzou o meu caminho, andando de forma pausada, sem pressa e sem medo, como se fossem tangidos para um local específico, indicando que uma mente superior coordenava tudo. Com formas delicadas e cores suaves era rara a beleza daqueles animais. Andavam como se flutuassem, tocando suavemente o solo.
A vegetação que vira na viagem anterior ficava bem mais adiante. Ali, apenas algumas árvores de grande porte se destacavam sobre os campos gramados e floridos que pareciam um enorme jardim cuidadosamente zelado para encantar todos aqueles que andavam por ali.
O som melodioso de um canto feminino chegava até meus ouvidos e procurei descobrir o local de onde vinha para que pudesse me aproximar e escutar e mais uma vez comunicar-me com aqueles seres .
Ao longe, enormes pássaros voavam bem baixo, próximos ao chão florido. Observando atentamente, vi que eram os seres que eu os classificara como anjos e não pássaros. Voavam sem alvoroço e calmamente pousavam um após o outro perto do lago para onde eu ia.
Fui seguindo pelo jardim gramado e vi as folhas do enorme vegetal que ficava bem à minha frente. As folhas caíam e então me lembrei da sensação que sentia quando as pegava. Senti a necessidade de ser tocado por aquela energia e repor um pouco de minhas forças que despendera antes de transpor o portal.
Aproximei-me e após apanhar no chão duas folhas vi que elas se desfaziam em minhas mãos como se a energia que existia nelas fosse por meu corpo sugado e os átomos que as compunham se desagregassem. Enquanto isso eu sentia o leve formigamento que passava por meu corpo.
Em minha mente veio uma mensagem como se alguém me falasse. “Você se alimenta com energia de forma sutil, tudo é transformação, nada será destruído, tudo é devidamente aproveitado”.
Então entendi que o sentido da vida é a transposição de energia e tudo é vida. A morte é apenas uma suposição de mentes que criaram medos para transformar o homem em escravo das formas. Senti-me como se estivesse em uma escola aprendendo a destruir conceitos errôneos e adquirindo o conhecimento pleno. Ali existia a verdadeira sabedoria que está além da nossa capacidade de compreensão.
Um contentamento invadiu-me plenamente, encontrava-me no paraíso, indo ao encontro do conhecimento que todos os humanos deveriam ter.
Eu analisava tudo que via, pensando na infelicidade dos seres humanos que ainda não tinham capacidade de chegar ao paraíso. Novamente uma sentença veio como se fosse uma ordem. ”Deixe de se preocupar, apenas viva e só assim irá entender o significado real da vida”. Diante de tais observações restou-me esquecer os homens da terra e egoíosticamente apenas me limitei a absorver o que via e sentia, sem me preocupar com as mazelas humanas. Pois só as tem que as merece.
Sentei-me da relva florida sob a enorme árvore luminosa. Fechei meus olhos e senti que os sons e os perfumes invadiam meu corpo como se naquele momento eu estivesse sendo transformado. Eu era energia em forma de homem.
A sensação de grandiosidade fluía através do meu corpo. Leves choques estavam reativando todas as células do meu corpo. O que sentia naquele momento era indescritível. Apenas consigo transpor para o papel de uma forma grotesca aquilo que senti. Eram sensações que jamais havia sentido. Eu não encontrava comparações dentro dos conceitos humanos.
Eram realmente coisas de outro mundo.
A música, os perfumes pareciam flutuar no espaço, os pássaros que voavam, as folhas que caíam, os animais que passavam, a leve brisa eram como se fossem apenas lembranças. Meu corpo absorvia tudo como se fosse uma esponja. Eu passara a viver através de cada célula do corpo e nada se perdia. Minha sensibilidade ficara totalmente desperta. Agora eu conseguia saber o que é ser integral.
Eu estava repleto de viver.
Enquanto me deliciava com aquela sensação, tudo o mais parecia não ter importância. Nem mesmo as pessoas que haviam ficado do outro lado e que pudessem estar a pensar e viver de acordo com os padrões humanos. Eu, naquele momento não me importava mais com nada.
Alguns pássaros pousaram na árvore que ficava perto dali e, enquanto se alimentavam, entoavam um canto que parecia ter sido ensaiado de forma que pudesse encantar e acariciar a mente e o coração de cada um dos habitantes daquele lugar.
Esvaziei a mente e limitei-me a sentir e viver tudo de acordo com a frase que ouvira minutos antes. ”Deixe de se preocupar, apenas viva e, só assim, irá entender o significado real da vida”.
Tentei naquele momento, de olhos fechados, esquecer que existia outro lugar que não fosse aquele. Senti que alguém se aproximava mansamente, caminhando sobre a relva. Quando abri os olhos diante de mim, lá estava ela. Aquela que eu vira da outra vez, um sorriso gentil, olhando-me de forma cândida e com leve aceno de mão pediu que me levantasse.
Aquela era a primeira vez que ela se comunicava comigo. Levantei-me e sem saber o que deveria fazer, apenas esperei. Ela se aproximou e colocou sua mão direita sobre a minha cabeça, enquanto a esquerda deslizava suavemente sobre os meus olhos, indicando que os mesmos deveriam ser fechados.
Naquele momento obedeci sem questionar.
Enquanto u’a mão tocava minha cabeça, a outra deslizava sobre o meu rosto, senti que além da energia que percorria meu corpo o perfume que exalava dela era indescritível. O perfume era do seu próprio corpo.
De olhos fechados, não tinha a mínima idéia do que deveria acontecer e não me incomodava com isso.
Dela eu só esperava coisas boas.
A mão dela descia suavemente sobre o meu rosto como uma carícia. Nunca havia sentido nada igual em toda a minha vida. Tentei esboçar algumas palavras e abrir os olhos, porém não foi possível. Uma música era tocada e como se as palavras estivessem sendo executadas em alguma harpa.
Quando ela permitiu que abrisse os olhos, vi diante de mim dezenas de seres iguais a ela. Alguns masculinos outros femininos, além de crianças e outros mais idosos. Eu havia sido transportado para uma cidade. Em torno de nós existiam várias moradias que tinham sido construídas de puro cristal, que refletiam e rebrilhavam os suaves raios do sol.
Sem nada entender, procurei descobrir a razão de tudo o que acontecia. Ela pareceu entender meu pensamento e, colocando sua mão em minha fronte, transmitiu para dentro de minha cabeça, através das têmporas, uma sensação de suave frescor.
Surgiam naquele momento em minha mente, frases e pensamentos que indicavam um diálogo que era mantido entre minha mente consciente e “ outra”.
Tudo que eu perguntava, era prontamente respondido como se houvesse uma comunicação através de telepatia. Com isso evitava que me esforçasse para emitir sons que pudessem ser compreendidos pelos seres que ali se encontravam.
As mensagens que eu entendia eram esclarecedoras. Agora compreendia tudo, nada mais seria surpresa ou mistério. Apenas não sabia o destino que me estava reservado. Por minha própria vontade ficaria ali para sempre, no entanto ainda não dependia somente de mim. As leis tinham de ser observadas, as alterações não poderiam ser efetuadas somente por minha vontade. Nestes momentos de dúvidas entendi o que ela me dizia. “Não se preocupe, muito em breve estaremos novamente juntos, sua missão está perto do fim”.
Embora ouvisse aquilo que me servia de consolo, ficara uma dúvida. A que tempo estaria ela se referindo?
E novamente ela fala: “Porque a pressa, esqueceu da promessa?” Naquele momento eu de nada me lembrava nem mesmo sabia a que promessa ela se referia.
Tentei lembrar-me de alguma coisa que deveria ter ficado perdido e esquecido no tempo. Nada indicava, mesmo de relance, alguma coisa que pudesse me ligar àquele povo que vivia no paraíso, enquanto eu me sujeitava a viver num mundo que, embora bonito e com todos os recursos de que se podia dispor, era um inferno, em conseqüência dos seus habitantes.
Novamente ela passou a mão em minha cabeça e senti certa tontura.
Quando abri os olhos, estava mais uma vez de volta a uma realidade que ainda não posso deixar.
Havia voltado para meu lugar de origem e as perguntas haviam mais uma vez ficado sem as respostas nem mesmo sabia se algum dia novamente teria a oportunidade de voltar e a entender o que ainda estava para ser desvelado.
As dúvidas, as angústias e os sofrimento continuarão, para um homem que ainda é obrigado a viver num mundo que não lhe pertence.E seguindo de acordo com a vida que temos, continuamos nosso destino, enquanto fica sempre a interrogação.
Sempre quero saber se tudo era uma realidade ou se apenas um breve sonho.
VEM. 09/12/03