Sangue ferido

De onde veio o sangue, não sei. Sei que vi uma coisa escorrendo feito mijo doente pela beirada do meio-fio.

Arrepios pelo corpo. Uma dor afiada.

Socorro.

Onde estava? Onde estava?

“Tem um homem ferido aqui! Tá morrendo! Tá morrendo!”

Era um velho que gritava, apontando para mim.

“Tá sangrando muito! Vai morrer! Vai morrer!”

Uma certeza, um orifício de onde vertia o amarelo sangue.

“Meu?!”

Como saber? Como suspeitar?

Delírio de morte. De surpresa. De espanto.

Por quê? Por que não os outros da televisão. Dos filmes. Daqueles. Os incrédulos. Os intocáveis. Por que eu, santo e piedoso?

Variava. Um velho (ou não?) olhava-me, complacente.

Visão desmistificada, pois. Era vítima. Sim, era. Fim da utopia inutilmente alimentada. Maneira de se encantar para ser feliz. A não observância das leis do crime, do ódio, da violência contra a própria alma dos calmos, dos lavados da sujeira torpe, sanguinária, medonha.

O homem que olhava complacente quis me levantar. Quis me trazer de volta àquela atmosfera de renhida luta, pois era ele mesmo quem me gritava aos ouvidos para que respondesse, que manifestasse gesto vivo, pulso ativo. E foi, então, o momento que senti calores humanos a me rodearem como que querendo sorver o restante do meu sangue, aquele ínfimo e ralo restante de sangue. Algo como aguado ele, escorrendo feito cobra dopada sobre o asfalto em chamas, interligando-me ao calor civilizado dos pobres homens primatas.

Parecia dormir e sonhar um sonho de morte. Aquele alívio quando acordamos, e nos damos conta de que não era real, de que não era fatal. Entretanto, sentia que esvaziava, como automóvel que perde vital calor de explosão. Sentia que voava, que subia, que via algo além do limite dos céus. Não, não sonhava. Melhor mesmo não fosse. Há muito não sentia aquela leveza, aquela bruma, aquele amparo feito asas. Nunca, em toda a minha vida mesquinha, mergulhara em mar de amor, como num leito de carícias. Certamente era o fim, o fim não trágico de uma vida trágica. O que tinha eu com aquilo? Aquela briga! Fatalmente sobrara para mim.

Fatalmente, a bala em minha direção. Perdida e certeira, a bala da traição, do ódio explosivo, do erro evitável de outrem.

Deitado ali, naquele asfalto quente, gemendo, moribundo, vazio, olhos arregalados e fixos num ponto do céu, eu ia lendo, nas formações das nuvens divinais, a mensagem de que era chegado o fim. E ele se desencadeava em mistério, sob uma alta voz estridente que escapava de uma das crianças que brincavam com o sangue que de mim saia, violentamente:

“Olha! Olha! O sangue do moço tá dodói, mamãe!”

Daniel Oliveira
Enviado por Daniel Oliveira em 09/02/2008
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