AS VIAGENS DO ESTRANHO
AS
VIAGENS
DO
ESTRANHO
Romance de Otrebor Ozodrac
CAPITULO I
O ESTRANHO
Nove de agosto de 1983
O jovem Cristobal Bernardo terminara a graduação em Jornalismo. A formatura tinha sido supimpa. Como orador tivera a oportunidade de desabafar, dizendo tudo o que tinha trancado na goela, por longos anos de universidade. Mas tudo isso passara.
Hoje, ele era um jornalista que trabalhava como caixa de um banco. Tinha dúvidas se devia abandonar tudo e dedicar-se tão só e exclusivamente ao Jornalismo. Mas, como freelance, não obtinha nem o suficiente para o seu sustento.
Finalmente, tivera a oportunidade de se dedicar exclusivamente ao Jornalismo. Fora convidado a ser o editor de um livro, isto é, transformar uma história contada por quem a viveu, em um livro, com todas as características técnicas necessárias à sua edição.
Embora tivesse sido selecionado e contratado para o trabalho, ainda não conhecia o narrador. Apenas lhe foi dito seu nome: Cizilião Cristóvão da Rocha.
Hoje, iria encontrá-lo na praia do Cassino, onde o referido morava. Naquele horário, costumava contemplar o mar e se expor a infindáveis devaneios.
Aos 90 anos, preso a uma cadeira de rodas, ele contemplava o oceano Atlântico, na longa praia do Cassino.
Quando Cristobal Bernardo chegou, ele estava com sua cadeira de rodas estacionada no asfalto da Avenida Atlântica, local onde passava horas do dia, contemplando o fluxo e refluxo das ondas.
Naquele dia, excepcionalmente, o vento bramia, gélido e incômodo, movimentando as areias de um lado para outro. A grande estátua de Iemanjá, soberba e bela, parecia não se importar com o vento frio que a açoitava. O homem parecia, a exemplo da estátua, não se importar com os açoites do vento bravio. A maresia gélida não o incomodava.
— Bom-dia Senhor Cizilião. — disse Cristobal sorrindo.
— Sou Bernardo. Cristobal Bernardo, tenho muito prazer em conhecê-lo.
— Já fui informado de sua vinda. Como está meu rapaz? — disse o velho senhor.
Cristobal olhou para o alquebrado homem. Sua fisionomia era serena e sua vista parecia, após fitá-lo, se perder no horizonte longínquo.
— Vejo que já esteve em minha casa. À primeira vista me parece muito jovem, mas eu, por incrível que lhe pareça, também já fui jovem. Mas isso já faz parte do seu trabalho. Esteja em minha casa amanhã, a partir das 9 horas, que começaremos o trabalho para o qual foi contratado.
O ENCONTRO
No dia seguinte, Cristobal, quinze minutos antes do horário preestabelecido, já se encontrava na sala de estar, à espera do narrador. Pontualmente, às 9 horas, ele adentra na sala, conduzindo a sua cadeira de rodas.
— Bom-dia, Senhor. Bernardo! Vamos ao trabalho. — disse o narrador.
Assim, ele começou sua narrativa:
— Meu caro repórter, nossa história começa no dia 25 de maio de 1952, na cidade de Rio Grande, na escola particular Liceu Salesiano Leão XIII. Na sala de aula do quarto ano primário, o clérigo Monsueter é surpreendido pelo Diretor, quando segurava um menino pelo topete, tentado mantê-lo longe, enquanto este lhe tentava soquear o estômago. O diretor para a turma do primeiro ano colegial, e, adentrando na sala diz:
— Me moço, (o diretor era de origem alemã, queria dizer “como é moço”), que é isto?
O menino chorando e com extremo nervosismo, parou de soquear o aspirante a padre e, soluçando, tentava explicar o ocorrido. A turma foi dispensada, pois já findava o período da manhã. Naquele dia, não haveria aula no período da tarde. O menino saiu espavorido e muito preocupado. As lágrimas deslizavam pela face, a secreção nasal corria e ele passava a manga da túnica, que constituía o uniforme, alcunhado pelos alunos mais velhos de “burro encilhado”, dado aos cintos e tiras diagonais que iam do ombro a cintura, confeccionadas em sola com largura de cerca de cinco centímetros.
Já no lado de fora da escola, um homem, aparentando ter mais de 60 anos, abordou o menino e disse:
— Não se preocupe pelo que aconteceu. O Monsueter não poderia tê-lo impedido de pegar o ônibus, afinal você disse que teria que sair no horário, para apanhar o ônibus, que sai da rodoviária às 12 horas. Só que no momento a turma estava agitada e o clérigo perdeu o controle. Para impedi-lo de sair antes dos demais, lhe apanhou pelo topete.
Ambos rumaram para a parada do ônibus, enquanto o estranho falava com a mão no ombro do garoto, que ainda chorava muito.
— Fique calmo, não precisa contar nada em casa. Na segunda-feira, você será levado ao gabinete do diretor, e lá estará o clérigo. O diretor lhe proporá que façam as pazes e esqueçam o ocorrido, desde que você prometa não agredir mais os professores.
Entre soluços, o garoto apenas balançava a cabeça, em sinal de confirmação de entendimento.
O ônibus que ia para o Balneário do Cassino parou e o garoto adentrou, ainda chorando. O estranho acenou para ele, quando já se encontrava no interior do ônibus. Sentado em um banco ao lado da janela, o menino, em todo o percurso, tinha os pensamentos emaranhados como teia de aranha. Tudo acontecera tão depressa. Aquele homem, que bem poderia ser seu avô, lhe causara uma impressão imensamente positiva, dando-lhe alento e segurança.
Chegara à chácara onde residiam seus pais, que ficava a meio caminho entre a cidade de Rio Grande e o Balneário do Cassino, num lugarejo denominado de Senandes. O final de semana fora um período angustiante para o menino, porém tinha em sua mente o que lhe dissera o estranho: “tudo dará certo, não necessitas contar nada”. Por incrível que parecesse, o menino confiava plenamente no dito pelo estranho. Afinal, dado ao estado emocional em que se encontrava, no momento do encontro, não tinha observado praticamente nada no estranho. Tentava se lembrar de como ele era e nada, porém tinha absoluta certeza do que ele tinha dito, o que lhe tranquilizava e enchia-o de coragem.
A segunda-feira chegara. O menino, cedo da manhã, pegara o ônibus que o levaria à escola. Às 7h30min da manhã, todas as classes se reuniam no imenso pátio, em fila indiana. O padre conselheiro conduzia as orações, que duravam cerca de vinte minutos, após as quais os alunos, em fila, se dirigiam para as salas de aula. Ao finalizar as orações, o padre conselheiro lê um aviso:
— O aluno Cizilião, do quarto ano primário, deve se dirigir ao gabinete do diretor.
O menino começou a tremer e as lágrimas, a brotar dos seus olhos. Enquanto se dirigia à sala do diretor, pensava no que lhe dissera o estranho: “ergue a cabeça, passa a manga da túnica do uniforme nos olhos, segue confiante”. Lá chegando; à porta, lhe esperava o diretor e o clérigo. O diretor o convidou a entrar, e dirigindo-se à escrivaninha, em pé, de frente para os dois, disse:
— Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo.
Os convidados disseram:
— Para sempre seja louvado!
Convidou ambos a sentarem, acomodou a cadeira e se sentou.
— Meu jovem aluno, estamos em uma escola católica. Aqui seguimos os ensinamentos de nosso Senhor Jesus Cristo. O incidente, ocorrido na sexta passada, não mais será tolerado. Embora o jovem aluno tivesse que sair no horário certo do término da aula para pegar o ônibus e, estando a turma de castigo, por mais meia hora, não poderia ter abandonado a classe sem a autorização do professor, muito menos agredi-lo aos socos, como o fez.
No entanto, considerando tratar-se de um aluno exemplar, sendo essa a primeira ocorrência de indisciplina, nós propomos que o ocorrido seja esquecido e que o aluno e o professor façam as pazes, condicionando-se que o jovem aluno deve prometer que nunca mais fará tal façanha.
O clérigo, que se encontrava de braços cruzados, tomando nova postura, estendeu a mão ao jovem, que a apertou. O diretor, por sua vez, colocou ambas as mãos segurando as duas mãos, apertadas e disse:
— Que essa paz seja duradoura e que Deus lhes proteja, para todo o sempre, amém.
Tudo saíra como o estranho havia previsto, gostaria de falar com ele outra vez, pensou o garoto.
Às 17h30min, os alunos do externato voltavam para a casa. Já os do semi-internato e os internos se dirigiam às salas de estudos. O menino Cizilião saíra da escola e se dirigia para a parada onde iria esperar o ônibus, que passava na Rua Buarque de Macedo. Para tanto, teria que contornar o prédio da escola, pois a saída ficava na rua paralela. Caminhava tranquilo, quando ouviu uma voz que lhe disse:
— Jovem Cizilião, deu tudo certo?
— Oh! É o senhor? Como sabe o meu nome se eu não o disse? Como sabia o que iria acontecer?
— Sou apenas um amigo. Como sei o seu nome? Ouvi um colega seu chamá-lo. Como sabia o que iria acontecer? Foi apenas dedução, pois o professor jamais poderia tê-lo segurado pelo topete. Poderia até deslocar seu couro cabeludo. O diretor sabia disso e, dessa forma, teve de abafar o caso.
Ambos continuam caminhando e conversando. Param ao chegar no ponto de ônibus, momento em que o menino pôde olhar atentamente para o estranho.
Ele era calvo, usava um bigode bem baixo, utilizava óculos, como nunca tinha visto antes. A mão direita sempre segurava o coto no antebraço esquerdo. O estranho não tinha a mão esquerda e parte do antebraço. O ônibus chegara, o menino embarcou, enquanto o estranho, parado o olhava e acenava.
Na sexta-feira seguinte, às 12 horas o menino Cizilião deixa a escola e ruma, como de costume, para a parada de ônibus. Lá encontra com o estranho, que o cumprimenta com um aperto de mãos e lhe diz:
— Hoje também vou pegar o ônibus. Vou ao Balneário do Cassino, podemos conversar durante a viagem.
O menino assentiu com um aceno de cabeça. O ônibus para e ambos adentram pela porta traseira e sentam em lugares localizados no centro do veículo de transporte. O estranho, após acomodar-se no assento, pergunta:
— Você conhece os moles?
O menino lhe diz apenas que já ouviu falar.
— Os moles são formados por pedras de grande porte, pesando mais de uma tonelada cada uma. Não sei ao certo, mas a zorra entra mais ou menos quatro mil metros mar adentro sobre os molhes.
O menino ouvia atentamente tudo o que o estranho dissera. Porém, em seus olhos havia uma pergunta que queria fazer, não sabia como e se deveria fazer. Criou coragem e disse:
— Quem é o Senhor? Nos conhecemos há poucos dias e parece que sempre nos conhecemos.
— Sou apenas um estranho. A impressão de me conhecer há muito tempo, embora tenhamos nos encontrado apenas há alguns dias atrás, é comum em certos casos. A propósito, como vai o cão, como é mesmo o nome dele?
— Dante. — diz o garoto.
— Você desliza na grama seca, utilizando os tamancos como esqui, puxado pelo Dante?
O menino fica perplexo e responde:
— Sim! Como você sabe disto?
— Pura dedução. Um menino da sua idade sempre tem um cão. Como no verão a grama fica seca e os tamancos ficam lisos, nada mais natural que os utilize como esqui puxado pelo cão. O que você acha de me convidar para fazer uma visita na casa de seus pais?
— O que direi aos meus pais sobre você, se mal nos conhecemos, nem o seu nome eu sei?
— Diga-lhes apenas que sou um professor e que você me convidou para visitar o sítio.
— Sim, farei isso e verei o que eles acham.
— Fica combinado para a próxima sexta-feira, Ok?
— Tudo certo.
— Se tiver coragem — pensou o garoto.
— Diga-me, Cizilião, você e seus irmãos têm pescado muitos jundiás? E o camarão, deu bem este ano na lagoa?
— Como sabe que pescamos jundiás e camarões? Você é adivinho?
— Não! Apenas conheço o sítio e sei que na lagoa se pescam camarões e no arroio, jundiás. Daí é fácil deduzir que você e seus irmãos devem pescar.
— E como sabe que tenho irmãos?
— Simples dedução. As famílias quase sempre são numerosas, daí deduzi que você tinha irmãos.
A semana passava. O garoto Cizilião, em momento algum, deixava de pensar no estranho professor, que lhe parecia um ser maravilhoso. Nunca ninguém tinha lhe olhado daquela forma. Sentia grande ternura em seu olhar, quando o fitava bem dentro do olho.
Na quinta-feira à noite, o garoto criou coragem e resolveu falar a seu pai sobre o estranho professor.
O Senhor Rocha, homem simples, mal sabia escrever o seu nome. Aos 51 anos, chefiava a família com austeridade e rigidez, sem ser redundante. Seus inúmeros filhos, na maioria já não estavam mais sob seu julgo, dos treze (sendo onze do primeiro matrimônio e dois do segundo, pois viuvara e casara novamente), Cizilião era o mais novo do segundo casamento, estavam em casa apenas duas moças e três filhos menores. O Senhor Rocha, homem alto, com cerca de um metro e noventa, tinha cabelos lisos escuros, sobrancelhas cerradas e olhos azuis. No lado esquerdo da fronte, era visível um grande sinal, em relevo, usava bigode, com fios cerrados e de altura reduzida, de forma trapezoidal.
A severidade do Senhor Rocha, muito comum naqueles tempos, deixava o pequeno Cizilião apreensivo e inseguro. De repente, tomou coragem e falou:
— Papai, posso trazer um professor aqui em casa, na sexta-feira à tarde?
O pai, entendendo que se tratava de um dos professores da escola, aquiesceu, dizendo:
— Sim, só que não pode ser de cerimônia. Tudo aqui em casa é simples e eu sou quase analfabeto, mal sei escrever o meu nome, não sei como vou conversar com ele.
O pequeno procurou trocar o assunto, para não dar tempo ao pai de lhe fazer qualquer pergunta. sobre o convidado, pois certamente não saberia responder.
CAPITULO II
A VISITA DO ESTRANHO
Na sexta-feira, às 12 horas o menino Cizilião saíra da escola e se dirigia para a parada de ônibus.
— Bom-dia, Cizilião.
— Bom-dia, professor. Falei com meu pai e o Senhor pode nos visitar hoje. Ele está lhe esperando. Mandou dizer que o Senhor não pode ser de cerimônia, que ele é um homem simples e quase analfabeto.
— Certamente. Tenho impressão de que o Senhor. Rocha e eu nos entenderemos maravilhosamente bem. E a mamãe, também está me esperando?
— Acho que o papai deve ter contado a ela que receberá a visita de um professor.
O ônibus chegara, adentraram no veículo, o estranho disse:
— Bom-dia, Senhor Wilton!
O motorista, parecendo surpreso, respondeu:
— Bom-dia Senhor!
Sentaram e o ônibus partiu. Ele perguntou ao jovem Rocha:
— O riacho que cruza a chácara de seu pai, nesta época do ano, está seco ou as chuvas o mantêm cheio?
— Ele está cheio, pois vem chovendo regularmente nesta época do ano.
— Você certamente pula de um lado para o outro, utilizando uma taquara, estou certo?
— Sim! Como sabe disso?
— Todo o jovem na sua idade faz isso!
O ônibus chegou na parada na frente da chácara. Eles desceram. O ônibus seguiu o seu itinerário. Pararam ainda no lado contrário da estrada. Olharam aquelas três árvores resplendorosas, a casa branca, com o símbolo na parte superior da parede frontal, um círculo com um cavalo ao centro. O menino se adiantou como que impelido pelo sistema nervoso, de quem não sabe o que vai acontecer. O estranho parou na frente da porta e esperou.
Aquele homem, com 51 anos, onze anos mais moço do que o professor, aparecera à porta ao seu lado. O pequeno Cizilião mostrava sinais de inquietude. Frente a frente, o convidado tomou a iniciativa, estendendo-lhe a mão. O mesmo gesto fez o dono da casa, e as mãos se apertaram. O recém-chegado teve a mão completamente envolvida por aquela grande mão, proporcional àquele homem de 1,90m e 90kg, aproximadamente, com o físico privilegiado, em comparação aos 1m70cm e 67kg de peso do convidado. Na sua parca formação cultural, disse:
— Com passou? — (querendo dizer como tem passado?)
Ao que respondeu:
— Muito melhor agora que estou lhe conhecendo!
— Vá entrando. — disse o anfitrião, fazendo sinal com a mão para que avançasse.
Entrou e, nesse momento, olhando para o garoto, percebeu um ligeiro alívio no seu semblante.
Adentraram na grande sala, rodeada por móveis em madeira, com assento e encosto em tela, produzida em fitas trançadas.
A majestosa sala com pé direito de 4m, aproximadamente, com uma barra de quase 1m de largura na parte superior, tinha desenhos que realçavam a pintura da barra. O piso, em tábuas de madeira de lei, as grandes janelas encimadas, com um respaldo em arco, produzido na própria esquadria, eram fechadas por veneziana. Já sentados, pairava um silêncio profundo. Os olhares se entrelaçavam, a curiosidade se aguçava a cada momento.
Rompendo o silêncio, o recém-chegado, tomando a iniciativa, disse:
— O Senhor tem um filho muito interessante. Nós nos conhecemos na escola. De tanto ele falar na chácara em que morava e em seus familiares, fiquei com vontade de os conhecer.
Mostrando um ligeiro nervosismo, o convidado envolve o coto com a mão direita.
Nesse momento, adentra à porta uma senhora morena, cabelos negros, olhos brilhantes, feições serenas, aparentando cerca de quarenta ou quarenta e três anos, e olhando para o estranho, disse:
— Boa-tarde! Eu sou a mãe do “Cizi”. O Senhor é o professor, não é?
Levantou e se aproximou dela. Ela estendeu a mão, a qual pegou e a beijou, sob os olhos estupefatos do pai e do filho, dizendo:
— É imensa a alegria de conhecê-la!
Ela respondeu:
— É uma satisfação conhecer o professor do qual Cizi fala tão bem. Sabe, ele acha que o senhor é adivinho.
— Nada disso, minha senhora, apenas faço deduções com grande incidência de acertos.
— Não entendo isso.
Arguiu o Senhor Rocha.
— Gostaria de entender melhor?
— É simples, vejamos: o senhor é de origem castelhana, estou certo?
— Sim.
Em o sendo, certamente gosta de recitar trechos de Martin Hierro.
— Como sabe?
— Simples dedução, saudoso de suas origens, recitar as décimas do mais famoso poeta e escritor da sua terra, lhe conduzem a velhas e saudosas lembranças. Outro exemplo: o senhor costuma lavrar a terra, com arado puxado por cavalo, que é montado pelo garoto, estou certo?
— Sim, mas, como sabe?
— Simples dedução. Ao chegar, vi um cavalo Normando. Como a chácara fica perto da cidade e o ônibus passa a cada hora, podemos deduzir que o senhor, tendo um cavalo Normando, só pode ser para puxar arado. Se o senhor tem um garoto, certamente, utiliza-o para conduzir o cavalo.
— É tão simples assim?
— Sim, basta aperfeiçoarmos os sentidos da percepção nessa direção.
Como seria de prever, o Senhor Rocha e o professor se entenderam perfeitamente bem. Chegou o Senhor. Rocha a dizer que parecia que o conhecia de longo tempo, pela maneira simples e respeitosa com que o tratava.
A certa altura da visita, não mais tinham o que falar. Já haviam falado de política. o Senhor. Rocha era eleitor do partido libertador, que na época estava no governo. Getúlio Vargas estava fazendo campanha para as eleições de 1954. O Senhor. Rocha era contrário ao Getúlio.
O professor foi convidado a visitar a chácara. À frente ia o pequeno Cizi, saracoteando. Ao passarem pelo canil, disse ao Senhor. Rocha:
— Este é o Dante?
O cão, preso pela corrente amarrada na coleira, chegava a ficar em pé, apoiado apenas nas duas patas. Seu ladrar nervoso era ameaçador.
— Sim. — respondeu o Senhor. Rocha.
— Porém, tenha cuidado que ele é bravo, pode mordê-lo.
— Não o fará, com certeza, sei muito sobre cães, eles são quase cegos, vê em apenas vultos. O seu olfato e sua audição são bem desenvolvidos, por isso, ao nos aproximarmos de um cão, devemos falar com ele e deixar que nos cheire. Com estes sentidos perceberá se somos amigos ou inimigos, ou seja, se estivermos com medo, somos inimigos, e ele perceberá, pois nessas condições exalamos um cheiro característico do medo, da mesma forma que a voz. Se estivermos com medo ela sairá com uma entonação característica do medo e ele perceberá.
O estranho abriu a porta do canil e adentrou, falando mansamente com o cão.
— Dante, oi! Dante, venha me cheirar.
Estendeu a mão. O cão se aproximou lentamente, cheirou a sua mão, sacudiu o rabo e como fazem os cães jovens, que não era o caso do Dante, que tinha mais de cinco anos, portanto, era adulto, se deitou com a barriga para cima. O professor se abaixou e passou a mão sobre a barriga do cão, enquanto ele gania de contentamento.
Os olhares de pai e filho se entrecortavam, sendo dito pelo Senhor. Rocha:
— Parece que o conhece há muito tempo e que está feliz em lhe ver.
— Ledo engano. — respondeu o estranho.
— Apenas utilizei uma técnica de adestramento de cães.
O Senhor. Rocha levou-os a visitar a plantação, da qual se orgulhava muito, pois sempre tinha grande abundância de hortaliças e legumes, para dar e comer, nada vendia. Ao retornarem do passeio, a Senhora. Rocha os aguardava com uma mesa de café, posta na varanda, que ficava na lateral esquerda da casa, que era servida por uma porta que dava para o corredor central e outras que a ligava ao pátio. O delicioso café da tarde estava servido em uma grande mesa para dez lugares. Os pratos continham angu feito de fubá de milho “Cateto”, um milho branco de grande sabor, próprio para o preparo de angu. Durante o café da tarde, dona Maria Rocha, comentou:
— Professor, o senhor me causa a impressão de que o conheço há muito tempo.
O Senhor. Rocha, nesse momento arguiu:
— A mim também me pareceu conhecê-lo há muito, desde o momento em que o vi.
Ao que respondeu:
— É simples, sou uma pessoa comum, igual a vocês, a seu filho, apenas mais velho do que vocês, pois tenho 62 anos e vocês devem ter, no máximo, quarenta e cinco, a dona Maria, e o Senhor Rocha, cinquenta e dois.
— Acertou mais uma vez, professor. Qualquer dia desses, o Senhor vai me ensinar a fazer isso.
Após o café, o Senhor Rocha convidou-o a sentar na sala. Ele, como de costume, sentara em uma cadeira de balanço. O maneta foi convidado a sentar em uma cadeira ampla com o encosto ligeiramente inclinado a uns cem graus, o que lhe dava um sentar ergonômico. Ao ver o antigo rádio sobre uma mesinha, perguntou ao Senhor Rocha:
— O seu filho ouve os contos e aventuras das 6h30min, da Rádio Nacional, do Rio de Janeiro?
— Acho que sim. Ele ouve todos os dias, mas o volume é tão baixo que ele coloca o ouvido no alto-falante, dessa forma, eu não ouço nada.
Dirigindo-se ao garoto Cizi, perguntou:
— Você ouve as Sensacionais Aventuras do Anjo, às 6h30min, na Rádio Nacional, do Rio de Janeiro e logo após, Jerônimo, o Herói do Sertão?
— Sim! Como sabe?
— Pura dedução. Há um rádio, você todos os dias o ouve, à tardinha, fácil deduzir que é a programação da Rádio Nacional.
Às 17h45min, se despediu dos anfitriões, agradecendo os momentos felizes que passara em sua companhia. O pequeno Cizi, levou-o à parada de ônibus.
Antes de o ônibus chegar, ele disse ao pequeno:
— Não queira saber que alegria você me proporcionou, convidando-me a visitar seus pais. Creia, é inenarrável a alegria que me foi dada.
Ao que respondeu:
— Creio que todos ficaram contentes em conhecê-lo, professor.
O ônibus chegara. Despediu-se de Cizilião, dizendo:
— Nos veremos na próxima semana, até lá.
Na semana seguinte, o professor estivera com o menino diariamente. O encontro ocorria às 17 horas, quando o menino saía da escola e esperava o ônibus na parada. O menino sentia, não sabia como, que o estranho lhe transmitia segurança e lhe causava uma tranquilidade inigualável. Em um dos encontros, o professor perguntara ao menino se ele costumava pescar no arroio que tinha do outro lado da lagoa, na qual os moradores locais denominavam-na de Arroio Fundo. Diziam que era piscoso. O menino disse-lhe que não havia pescado no tal arroio, mas que gostaria muito de pescar no canal. Ficara combinado que no sábado ele iria à casa do menino e que ele e seu irmão levariam o professor até o lugar, para fazerem uma pescaria. No sábado, o professor, às 9 horas da manhã, chegara à chácara. Foi recebido pelos familiares do garoto. Desta feita o professor abraçara com grande alegria o pai e a mãe do menino, pois já os conhecia da visita anterior. Todos demonstraram grande simpatia pelo professor. Como combinado, foram pescar o professor e os dois garotos, Cizi e seu irmão, dois anos mais velho. Para chegarem ao pesqueiro, tiveram de atravessar à lagoa, que tinha cerca de oitocentos metros de largura. A água era rasa. Nos lugares mais fundos, a água chegava no peito dos meninos e à altura da cintura do professor. A travessia levara quase meia hora, pois havia muitas algas que dificultava a movimentação dos pés. A pescaria fora um sucesso e grande dificuldade foi levar tanto peixe para a casa. Quando a tarde chegara, os três pescadores tiveram de novamente atravessar a lagoa, pois a tarde caía e a água ficara fria. Nos trinta minutos de travessia, seus corpos ficaram gelados.
Na manhã seguinte, o menino achava-se resfriado e com febre o que o impediu de ir à escola. Como era de costume na época, sua mãe fora à escola levar o atestado de doença, para justificar as suas faltas. Na portaria da escola, procurou o professor que, por duas vezes, tinha estado em sua casa. Como não sabia o seu nome, pois simplesmente fora apresentado como “o professor”, informara que ele não tinha a mão esquerda e que deveria ser padre ou clérigo. O diretor foi chamado. Após haver questionado e ouvido a narrativa sobre as duas visitas que o estranho professor fizera ao menino e seus familiares, o diretor disse que absolutamente tal professor não pertencia à escola. Mandou chamar o padre conselheiro. Este, por sua vez, ficou surpreso com o que acabara de ouvir. Confirmou que nunca tal pessoa tinha sido vista na escola. A mãe de Cizi não sabia o que dizer. Ao chegar à casa, perguntou ao menino como conhecera o tal professor. Cizi contou exatamente o que acontecera e todos ficaram estupefatos com o caso. Quais seriam as intenções do estranho ao se aproximar do menino.
Diante do fato, tão surpreendente, o diretor e o padre conselheiro mandaram chamar o irmão adjunto, Radbod Werner Herig, homem com características militares, fugitivo da segunda guerra mundial, pois fora perseguido pela GESTAPO, por ajudar os judeus a fugirem dos campos de concentração. Como fugitivo, durante toda a guerra, ficara escondido como instrutor de marcenaria, mas tinha especiais dotes para detetive, pois já havia resolvido diversos casos estranhos na escola.
— Deixe comigo, Senhor Padre Diretor, estes são os meus casos prediletos, apenas me avise quando o garoto voltar às aulas, o resto deixe por minha conta.
O pretenso detive, homem forte, com cabelos loiros, lisos, que sempre lhe caíam na testa, nem gordo, nem magro, poderia ser considerado um homem grande. Seu corpo curvado tinha 1m95cm de altura e poderia ser considerado um atleta, com os seus 50 anos.
Na manhã seguinte, o alemão, cedo da manhã, procurara o inspetor Ingo Laubnitz, seu amigo particular, com grande afinidade de origem, um era alemão e o outro iugoslavo descendente. Apenas um telefonema seu e o procurado seria preso para interrogatório.
Na segunda-feira seguinte, o menino retornara às aulas. Na saída, às 17 horas o menino está na parada, à espera do ônibus, quando o estranho professor chega e começa a conversar com o menino. Pergunta-lhe apenas se já se recuperara da infecção na garganta.
— Como sabe que estive doente, professor?
— Ora, simples dedução, como você não compareceu às aulas e, sabendo que tínhamos atravessado a lagoa, em horário que a água já estava fria, deduzi que tivesse ficado doente.
Logo o ônibus encosta na parada, o menino adentra no veículo de passageiro e acena para o professor.
Os dois investigadores, já à espreita, seguem o estranho maneta, que se dirige ao iate clube de Rio Grande, que fica nas imediações do porto velho. Na marina, o estranho pega um pequeno barco e desaparece, rumo à cidade de São José do Norte, que fica do outro lado do braço do oceano, que separa as duas cidades.
O inspetor e o improvisado detetive ficam embasbacados, pois não estavam prevenidos para uma perseguição pôr água. No dia seguinte, logo após o garoto haver se afastado:
— Desculpe incomodá-lo, senhor, mas gostaríamos que nos acompanhasse. Sou Ingo Laubnitz, inspetor da polícia local, e estou lhe detendo para averiguações. Se tudo estiver correto com o senhor, não lhe ocuparemos mais de uma hora. Estou com o carro estacionado ali adiante. Procuraremos fazer com que seja o mais breve possível.
— A... Acho que não há outro jeito.
Ao chegarem ao carro, Ingo abriu a porta para que o maneta entrasse. Depois se sentou ao volante e ligou o carro. Lançou um olhar rápido e avaliador para o seu companheiro. O preso olhava e coçava o coto, dando sinal de apreensão.
— Há uma coisa que me deixa surpreso, senhor. - disse o inspetor.
— Não perguntou uma única vez porque estamos lhe levando.
O detido deu de ombros, apaticamente. Estavam passando pela Rua 24 de maio. Tiveram de parar por alguns instantes, pois um dos bondes havia desencarrilado, e o trânsito estava lento no local.
— Por que não está interessado?
— Certamente, o saberei em alguns instantes.
— Tem razão.
O inspetor Ingo estacionou o carro na frente da delegacia de investigação e repreensão e subiu os degraus, conduzindo o professor. Não havia ninguém na sala de detetives, apenas revistas e jornais velhos. Eles deixaram o detido na sala de identificação, na seção de impressões digitais O estranho manteve-se completamente alheio a tudo, enquanto passavam seus cinco dedos da mão direita, pela placa de vidro com tinta.
Durante o interrogatório, o indivíduo apenas disse se chamar João Votto, e que seus documentos estavam no local onde estava residindo, na cidade de São José do Norte.
Durante o interrogatório, lhe foi perguntado pelo inspetor Ingo:
— Você é pedófilo?
— Não!
— Quais as suas pretensões ao se aproximar da família do garoto Cizi?
— Nada de especial, fui um garoto como ele e o encontrei num momento de extrema provação e tentei consolá-lo. Eu passava pela rua onde fica a saída da escola. O menino esbarrou em mim e eu o segurei. Ele estava chorando, tinha sido sacudido pelo topete, ao se retirar da aula para pegar o ônibus, por isso ele soqueou o estômago do professor. Eu o tranquilizei, dizendo-lhe que o professor jamais poderia ter tomado tal atitude e que até poderia ser processado. Assim, começou a amizade entre mim e o garoto Cizi.
Radbod, que tudo ouvira da sala ao lado, após o interrogatório sugeriu que soltassem o maneta, pois se revelasse o fato da agressão ao garoto os padres poderiam se incomodar.
O resultado da análise das impressões digitais nada revelou de positivo. O homem detido não tinha qualquer envolvimento com a polícia. No entanto, não se incomodara de permanecer preso. O inspetor resolveu soltá-lo, na verdade desejava segui-lo, fosse por terra ou por mar. Após vagar pela cidade, às 17 horas, ele pegou o ônibus que ia para o Cassino. Na parada, o garoto Cizi, estava lhe esperando. Ao entrar no ônibus, o maneta lhe chamou e ele sentou-se ao lado do estranho, que lhe perguntou.
— Como está?
E retirou do bolso um envelope pardo e o entregou, ao garoto, dizendo:
— Guarde-o. Somente tome conhecimento do seu conteúdo na data escrita no endereçamento. Se por qualquer motivo, você ou outra pessoa tomar conhecimento prematuramente, o que está escrito não fará sentido. Por isso é aconselhável que o guarde até a data estabelecida.
O garoto olhou o endereçamento e leu: “10 de agosto de 2004”
— Isso será daqui a 52 anos!
— Exatamente, daqui a 52 anos. Guarde-o como se dele dependesse a sua vida. Esta é a última vez que nós veremos. Foi uma grande alegria ter me comunicado com você nestas circunstâncias e ter conhecido os seus pais.
O ônibus chegara à parada onde o garoto desceu. O estranho maneta ficou acenando para o garoto, que saiu correndo com sua pasta, balançando na mão direita.
CAPÍTULO III
—1º de fevereiro do ano de 2004. Eu estava nesta mesma praia e eram 23 horas, aproximadamente.
—Um momento, Senhor. Cizilião, chamo-lhe a atenção para o fato de estarmos em 1983.
—Sim, sim, meu caro rapaz, estou consciente disto. Antes de terminar a minha narrativa, este fato será plenamente entendido.
A Avenida Atlântica estava tomada de gente, em ambos os lados e no canteiro central, onde há um passeio. Gente que ia e gente que vinha. Foi calculado que naquela hora havia mais cem mil pessoas na avenida. Comecei a caminhar rumo à estátua de Iemanjá. No lado direito e à frente do grande obelisco, onde se encontrava a imagem, havia um coreto, no qual as emissoras de rádio transmitiam o evento. A Brigada Militar, a cavalo, permanecia sobre as dunas que circundavam o local. Na parte posterior do obelisco, ou altar de Iemanjá, imensos postes com luzes, distanciados uns dos outros em, aproximadamente, vinte metros, formavam uma pista que chegava até as ondas do oceano. Visto isso, retornei, pois o alto-falante anunciava a saída do cortejo, a partir do Hotel Atlântico.
O povo se aglomerava, lotando ambas as laterais da avenida. As viaturas da Brigada Militar abriam o caminho para a passagem dos umbandistas, em procissão.
Ouve-se a batucada ao longe, onde estava o corso dos centros de umbandas, gentes de todas as classes sociais, com vestidos brancos que alcançavam o chão, todos com os pés descalços, exibiam adornos como colares e fitas.
As vestes e a caracterização eram comuns a ambos os sexos. Entoavam hinos à santa, pessoas conduzindo enfermos e aleijados. Pais e mães com seus filhos nos braços. Um dos centros de umbanda trazia a sua frente uma esbelta mulher trajada como a santa, com um vestido branco, manto azul-claro com estrelas brancas. Na cabeça, sobre longos cabelos negros, uma coroa de rainha. Nas laterais da avenida, comerciantes de churrasquinho, vendedores de flores e barcos de brinquedo. Outros vendiam bebidas, velas e adereços da fé. No oceano, pessoas entravam na água para depositar suas oferendas à rainha da fé. Ao longo da maior praia em extensão do mundo, as luzes dos carros, que circulavam representavam ser uma dança de imensos vaga-lumes.
À meia-noite começou o estourar de fogos de artifícios, que entrou madrugada adentro.
No dia seguinte, às 10 horas, vou caminhar na praia. No caminho de ida passo pelo obelisco onde se encontra a estátua de Iemanjá: uma murada de pedras, na altura de cinquenta centímetros, com mais ou menos 15m por 15m, tendo ao centro um pedestal de concreto de 3 m de comprimento por 2 m de largura e 3 m de altura, Sendo que em cima dele estava uma grande estátua, de inigualável beleza. A imagem de Iemanjá. No interior do murado, grande quantidade de velas acesas, garrafas de bebidas vazias, pois seu conteúdo fora derramado no solo. Gente acendendo dúzias de velas. Na frente da imagem, um aglomerado de gente rezava, estando uns ajoelhados e outros em pé com as mãos postas. No local, o cheiro de velas queimando, misturado com o cheiro de bebidas, chegava a causar enjoo.
Lá pelas 11 horas chego à praia. Aproximando-me da beira da maré, onde as ondas faziam o fluxo e refluxo, ouço o batuque dos tambores. Olho à minha direita e vejo uma aglomeração de pessoas. Aproximo-me e vejo três rapazes, afrodescendentes, tocando os tambores. Diversas mulheres, com seus vestidos longos e brancos, dançando em giros e se movimentando em círculos. Dentro do oceano, com água abaixo da cintura, vejo um homem com uma capa vermelha, muito enfeitada, tendo na cabeça uma espécie de elmo cobreado. Um outro homem forte e baixo, com uma espécie de vestido branco, que roçava na areia da praia de tão comprido, se aproximava dos espectadores, os quais lhe ofereciam uma criança, que levava para o homem da capa vermelha, que a tomava nos braços e lavava a sua cabeça na água do oceano.
Logo após o ritual, entregava a criança ao homem que a tinha levado que, de costas para a praia e de frente para o oceano, voltava a passos lentos e fazendo reverência. Assim, as pessoas eram levadas para aquela espécie de ritual umbandista. Em certo momento, o condutor de pessoas pega um senhor de meia idade, também afrodescendente e o leva ao homem que estava na arrebentação das ondas. O homem foi conduzido pela mão. Lá chegando, submeteu-se ao ritual das águas. O condutor trouxe-o para a praia, a passos lentos, à medida que avançavam. O conduzido ficava cada vez mais curvado, o braço esquerdo dobrado às costas e o direito, arqueado na frente, fazia um movimento de pêndulo. O condutor segurava-o pelo braço, que estava às costas com a mão direita, tendo a esquerda apoiada em seu ombro direito. Notei que aquele homem não era um comum. Quando chegara perto da multidão, lhe foi oferecido uma espécie de bengala feita de pau roliço descascado. O pedaço de pau não tinha mais que 80 centímetros. Foi-lhe arrumado um banquinho e ao chegar foi sentado. A mão direita trêmula segurava a bengala, que balançava impulsionada pela mão oscilante.
O condutor passou a levar as pessoas para perto do homem da bengala. As pessoas se aproximavam. Ele, com a mão esquerda apoiada na nuca da pessoa, pressionava-a, de forma que o ouvido da pessoa ficasse perto de sua boca, e falava tão baixinho que ninguém, com o barulho dos tambores, conseguia ouvir. Uma mulher se ajoelhou a sua frente e começaram a cochichar. Uma mulher que estava ao meu lado perguntou à outra se ela queria consultar com o preto velho, referindo-se ao homem da bengala. Para tentar ouvir o que o preto velho dizia, me afastei do batuque, colocando-me na diagonal, onde estava o homem falando com a mulher, mas nada consegui ouvir. O preto velho, de quando em vez, me olhava de soslaio. Ao meu lado, uma mulher chamara o condutor, dizendo:
- Eu quero consultar com o preto velho.
O homem fez um sinal com a mão para que ela esperasse. O preto velho me olhou mais uma vez. Desta feita não de soslaio e sim, de frente. Embora sendo eu ateu, confesso que fiquei todo arrepiado. Ele fixou o olhar em mim e eu me senti, naquele momento, como um garoto na sala de aula, quando o professor o olha com censura. Apontou-me com a mão trêmula estendida. O seu auxiliar, que tudo via, me olhou se aproximou, e com a mão estendida disse:
— Pode me acompanhar.
Vacilei por alguns instantes. Fiquei arrepiado e um calafrio me correu pela espinha, mas meus instintos mais primitivos me impeliram a ir. Não resisti, aquiesci ao convite e me deixei levar. Aproximei-me do preto velho e quando eu estava a sua frente, fez um sinal para que eu me abaixasse. Inclinei-me o máximo que pude, tentando colocar minha cabeça à altura da dele. Ele, com a mão esquerda colocada na minha nuca, forçou para que nossas cabeças ficassem no mesmo plano, o que fez com que eu tivesse que ficar ajoelhado a sua frente.
Quando minha orelha estava à altura de sua boca, ele disse:
— “Zi fio” é descrente, até no Pai-nosso não acredita. Tá com a vida enredada, tem muita confusão, tá tudo distorcido, o antes vem depois, o depois vem antes, o passado se confunde com o presente, muito sofrimento e dor, ódio e vingança. “Zi fio” é muito complicado até pro preto veio. Vai e que Iemanjá te proteja.”
Saí dali estranhamente pensativo, porém nada havia entendido, sobre o que falara o tal de Preto Velho. No dia seguinte, retornei a Porto Alegre, onde iria encontrar com Alquimíades de Almeida.
CAPITULO IV
A REUNIÃO
Dias depois, na reunião-almoço da Associação Industrial e Comercial do Rio Grande do Sul, fui apresentado como palestrante. Naquela oportunidade, o presidente da casa, ao me apresentar assim se referiu:
— Hoje, teremos a satisfação de ter como convidado e palestrante o Professor Cizilião Cristóvão da Rocha, que obteve o título de professor, na universidade de Harvard, à qual pertence. O seu conhecimento científico é em pesquisa de casos estranhos. No entanto, omitiu o conteúdo da palestra, apenas reportando-se que seria uma revelação surpreendente e que, ao final, nos proporia uma parceria com a possibilidade de grandes lucros para todos.
O salão se encontrava repleto. As mesas para quatro lugares, onde estavam expostos pratos para a entrada, com talheres pequenos, para serem utilizados na entrada, e talheres grandes, para serem utilizados no prato principal. Tudo dentro da finesse característica do lugar. Quase que na unanimidade, os comensais comentavam sobre o assunto da pauta. Indagações diversas sobre o estranho apresentador. Alusões ora otimista, ora pessimista, era o que se ouvia nos grupos que circundavam as mesas. Fez-se ouvir uma pequena batida do microfone. O mestre de cerimônias dá às boas vindas, aos habitués da casa e logo passa a palavra ao conferencista do dia:
— Senhores. membros da Associação Industrial e Comercial do Rio Grande do Sul. Permitam que me apresente. Chamo-me Cizilião Cristóvão da Rocha. Sou digno desse nome. Tenho 62 anos, embora não pareça ter trinta, sequer.
Um sorriso fugaz alargara sua boca sem que os dentes chegassem a aparecer.
— Possuo constituição de rocha, saúde à toda prova, grande força muscular, excelente estômago e um coração de ferro, isso quanto ao físico. Quanto à cultura sou graduado em Engenharia Mecânica com ênfase em Engenharia Quântica. Em cibernética, defendi tese em Oxford sobre Nanotecnologia. Quanto às crenças, declaro-me ateu por convicção.
Nesse momento, Bernardo interrompe o narrador e pergunta:
— Mas, senhor! Desculpe a interrupção, mas é que não estou entendendo. O senhor em 2004 tinha 62 anos. A final, esta é uma história inventada ou é uma história real?
— Meu caro, jovem, não seja tão impetuoso. Isso será plenamente explicado no decorrer da narrativa. Continuemos.
A plateia ouvia, com máxima atenção, aquele homem resoluto e destemido. Quem ele era? Alguns rumores, que logo cessavam e ele continuou:
— Durante o almoço, exporei aos senhores os objetivos de minha palestra e, ao final, lhes proporei negócios. Está ao meu lado o meu assistente, Professor Alquimíades de Almeida, proeminente geólogo e ufólogo.
Todos os comensais ouviam atentos. Os alvoroçados sentiam-se, desde logo, desapontados, pelos autos elogios do seu discurso, tão pessoal. E pensavam: “Seria tal personagem louco ou mistificador?” Fosse o que fosse ele se impunha. De repente, os rumores cessaram. Não se ouvia nem um sopro em meio à assembleia, a qual parecia haver sido sacudida a pouco por um cismo. Permaneci parado e em silêncio, para aguçar a curiosidade dos ouvintes.
Apesar de tudo, Cizilião da Rocha parecia ser mesmo o homem que dizia ser. De estatura regular, ombros largos e geométricos. Sustentada por um pescoço alongado, destacava-se a cabeça de pequena dimensão e de forma esférica. Seus olhos que, a menor contrariedade, devia incandescer, brilhavam. Grossas sobrancelhas faziam com que os olhos parecessem profundos, quase ocultos pelos óculos de uso permanente. Seus cabelos curtos, com reflexos metálicos, apenas existiam no entorno do calvo topo da cabeça. Usava bigode e barba bem aparados, composto de fios mais escuros do que brancos, o que lhe dava uma forma austera e inflexível. Sua voz grave e ligeiramente rouca chegava aos ouvidos como uma melodia que dava prazer em se ouvir. Seus gestos eram cautelosos, não havia falta nem excesso. Falava olhando para todas as pessoas da plateia, girando o tronco e a cabeça com calma, ora para a esquerda, ora para a direita, valorizando e prestigiando a presença dos ouvintes. Sabia como se comportar diante da exposição e dava maleabilidade ao corpo, proporcionando, assim, uma postura natural.
E ele continuou:
— Senhores, estou deveras convencido, de que há comprovação suficiente para crer que ainda existam terras desconhecidas no nosso planeta, cujas riquezas são incalculáveis. Como alicerce de minha convicção, tenho as seguintes pesquisas e estudos por mim efetuados:
- “Início de 1970, a Administração do Serviço de Ciência e Meio Ambiente (ESSA), que pertence ao Departamento de Comércio dos Estados Unidos, divulgou para a imprensa fotografias do Polo Norte tiradas pelo satélite ESSA-7, em 23 de novembro de 1968”. Uma das fotografias mostrava o Polo Norte coberto pela conhecida camada de nuvens. A outra, que mostrava a mesma zona sem nuvens, revelava um imenso buraco, onde deveria estar o Polo.
— Em janeiro de 1956, após dirigir outras expedições à Antártida, o vice-almirante Byrd manifestou que sua expedição havia explorado 3700 km, além do Polo Sul. Justo antes de sua morte, Byrd disse que a Terra, além do Polo, era um continente encantado no céu, terra de mistério permanente. Essa terra, segundo outras teorias, era a legendária Cidade do arco-íris, berço de uma fabulosa civilização perdida.
— A possibilidade de que a Terra seja oca, de que se possa entrar nela, através dos Polos Norte e Sul, e de que civilizações secretas floresçam em seu interior, tem aguçado a imaginação, desde tempos atrás. Na mitologia grega, Orfeu tratou de resgatar Eurídice do inferno subterrâneo. Dizia-se que os faraós do Egito se comunicavam com o mundo inferior, onde desciam através de túneis secretos ocultos nas pirâmides e os budistas acreditavam (e acreditam, todavia) que milhões de pessoas vivem em Agharta, um paraíso subterrâneo governado pelo rei do mundo.
— Apesar da inexatidão da pretensa viagem de Byrd ao Polo Norte, existem algumas pessoas que afirmam ter visto em um noticiário sobre a dita expedição ao Polo Norte, onde se viam montanhas, árvores, rios e um grande animal identificado como um mamute. Durante o ano de 1980, ocorreu um boato a respeito de um satélite espião militar norte-americano, que tirou várias fotografias sobre o polo norte, no exato momento em que se abriu um buraco nele, para dar passagem a uma nave desconhecida. Seguramente, a terra não é oca! Mas, abaixo de nossos pés, podem existir civilizações inteiras.
— A nossa presença neste momento, junto aos senhores é, como foi anunciada, a proposição de uma parceria que, certamente, resultará em grandes lucros para todos.
A nossa ideia inicial foi a de propor aos governos que se interessassem em constituir um consórcio para a exploração dos polos. Porém, a ideia foi logo abortada, dadas as dificuldades encontradas para expô-las aos governos desses países. Logo a seguir, foi levantada a hipótese da formação de uma empresa, com a única finalidade de explorar os polos Norte e Sul. Esta empresa seria formada por um pool de empresas diversas que tivessem interesse em aplicar em outras sociedades. A empresa que foi formada é uma multinacional, que tem como escopo a exploração de ambos os polos da terra. Seu contrato social, que se acha registrado nos mais importantes países do nosso planeta, se encontra à disposição dos interessados junto aos nossos corretores, que permanecerão à disposição dos senhores após o almoço.
Todas as referências que fiz, durante a minha apresentação, podem ser encontradas na rede internacional de computadores, sobre os mais diversos títulos, caso queiram comprovar a origem de nossa pesquisa. Um bom almoço a todos.
Bernardo, que até então ouvia e tomava nota, não resistiu e perguntou:
— Senhor, o que é a rede mundial de computadores?
— É coisa do futuro, meu caro Bernardo. No final do século XX, o mundo todo estava conectado por uma imensa rede de computadores, chamada Internet. De sua casa, você era capaz de se ligar com todo o mundo, fazer pesquisas avançadas, ler o noticiário de todo o mundo e muitas coisas mais. Tenha paciência, você é novo e chegará lá, com certeza.
De volta ao quarto de Hotel, abriu a mala, pegou o velho envelope pardo, hermeticamente fechado no endereçamento e, pela milésima vez, seus olhos fitaram aquela data: 10 de agosto de 2004. Finalmente, será amanhã.
Na manhã seguinte, antes do desjejum, leu os jornais como de costume. Os principais jornais da região traziam a seguinte notícia.
“A expedição do Explorador e Professor Cizilião Cristóvão da Rocha e do Geólogo e Ufólogo Professor Alquimíades de Almeida, da empresa multinacional Exploradora dos Polos, será a primeira expedição a alcançar o Polo Sul geográfico, com fins comerciais”. A missão científica exploratória, que sairá no dia 28 de novembro, às 20 horas, rumo ao Polo Sul geográfico, levará cerca de vinte dias e percorrerá mais de 1.200 quilômetros de gelo, a uma temperatura média de 26 graus negativos. A equipe permanecerá no Polo Sul por tempo indeterminado, “retornando ao litoral, após haver cumprido todas as etapas pré-definidas pelo conselho administrativo da organização, pois os cientistas recolherão material em perfurações, fazendo levantamento geofísico da região...”.
Após o desjejum, com a mesma calma e tranquilidade com que guardara aquele envelope nos últimos cinquenta e dois anos, sem tomar conhecimento do seu conteúdo, serenamente ele foi aberto. Em seu interior havia uma mensagem que dizia:
“Não esqueça de levar material cirúrgico, anestésicos injetáveis e uma pequena serra manual, muitos analgésicos e anti-inflamatórios. Tenha-os sempre juntos a você, nunca os abandone em momento algum”.
Apenas isso, cinquenta e dois anos guardado, justo agora que vamos empreender uma importante expedição. Certamente que atenderei plenamente a esta sugestão, pensou Cizi. Além da mensagem, havia um outro envelope que ainda teria de ser guardado por mais de um ano, pois a data em seu endereçamento dizia 31 de março de 2006.
CAPITULO V
A EXPEDIÇÃO
Dia 28 de novembro de 2004. No dia seguinte, às 9 horas, a expedição partiu de Ushuaia, Terra do Fogo, Argentina, a cidade localizada no mais extremo sul do planeta. A viagem foi a bordo do navio oceanográfico Atlantis, de bandeira brasileira.
A expedição era composta por poucas pessoas:
Cizi e o seu assistente, Professor Alquimíades de Almeida, contavam com o auxílio de três carregadores, um observador a mando dos acionistas, investidores e patrocinadores, que, casualmente, era uma mulher de 45 anos, professora catedrática de Cartografia e Geologia avançada. Os participantes apenas se conheceram no dia do embarque A observadora se apresentou com uma carta de apresentação enviada pelos investidores. Dois experientes guias completavam o grupo.
A bordo do navio quebra-gelo Atlantis, fizeram a primeira reunião de trabalho. Cizi, sentado à cabeceira da grande mesa, onde a tripulação fazia as refeições. A sua direita, seu fiel escudeiro, Professor Alquimíades, homem de poucas palavras, mas com grande sabedoria, com seu porte atlético, de baixa estatura, tórax reforçado, uma grande cabeça alojada diretamente entre os ombros, parecendo não ter pescoço. Sua fisionomia era sempre serena, barba crescida, entre a qual se destacavam feições fortes.
À esquerda de Cizi, a observadora, mulher bela aos seus 45 anos, cabelos longos e negros, lábios grossos, dentes alvos e de uma simetria inigualável. Olhos verde-escuros e seios abundantes, uma figura de mulher para causar inveja à Vera Fischer.
Ao lado do Professor Alquimíades, os dois guias de origem esquimó e, ao lado da observadora, os três esquimós carregadores.
Cizi abriu a reunião, dando as boas-vindas aos expedicionários. Fez um breve relato da sua pessoa e expôs os objetivos de jornada. Após, solicitou que cada um se apresentasse aos demais, dando seu nome, seu grau de comprometimento com a expedição e um breve relato de seus conhecimentos pregressos e experiências anteriores.
O Professor Alquimíades disse:
— Me chamam de Alquimíades de Almeida, sou Geólogo e Ufólogo. Nunca estive antes no Polo Sul. Estou disponível para qualquer atividade, inclusive para transporte de cargas, se for necessário.
— Sou Professora catedrática em Cartografia e Geologia. Minha missão é acompanhar, relatar e cartografar a região e avaliar seu potencial exploratório. Meu nome é Lilanice Duquia. Por ser a única mulher da expedição, não espero tratamentos especiais, estou disponível para serviços leves.
Dos batedores apenas um falou. Disse que falava por ambos, que ele se chamava Uguro e o outro Noragô. Tinham experiência em viagem ao Polo Sul, porém nunca de tal envergadura.
Os três carregadores, por não falarem o português nem o inglês, línguas comuns aos demais, seriam interpretados pelos guias. A eles Cizi, deu um número a cada um. O 1 (um) o 2 (dois) e o 3 (três).
A experiência que tiveram na viagem de navio foi maravilhosa, fantástica e impressionante. Frio, ventos gelados, calmaria, neve, icebergs de todos os tamanhos e cores, absolutamente uma mudança em suas vidas. Os planos de viagem eram de atravessar de um lado para o outro do Polo Sul, passando pelo centro geográfico.
De helicóptero, desceram sobre a barreira do gelo Ross. Visitaram as estações científicas McMurdo e Scott, além dos pontos históricos, Cabo Evans e Cabo Royds. Passaram pelas ilhas subantárticas Macquarie, onde se encontraram milhares de pinguins-rei e nas ilhas Auckland, onde viram de perto os famosos albatrozes.
Estacionaram o comboio à 650m da estação norte-americana, na frente de um avião russo que chegou ao polo, anos atrás e não conseguiu decolar! Nos dias que se sucederam, os aventureiros aproveitaram para organizar os utensílios e fazer pequenos consertos nos trenós e preparar os equipamentos, para iniciar a aventura, e é claro, visitar a estação dos Estados Unidos da América: a estação na forma de um domo geodésico. O Domo, como todos chamam, tem 50m de diâmetro e 15m de altura e é da cor do papel-alumínio. Vários corredores (tubos de aço) ligam o Domo às garagens, carpintaria, geradores de energia. Tubos isolados do intenso frio levam água potável, esgoto, cabos elétricos, telefônicos e a rede de computadores. A Internet, bastante veloz, é de uso comum. Só que os usuários têm de aguardar que algum satélite esteja acima do horizonte (só entre duas horas e treze horas isso acontece). Todo aquele complexo está hoje soterrado sobre a neve que acumulou, ao longo de três décadas. Essa foi a ideia dos engenheiros: a neve é ótimo isolante térmico, protegendo a estação da atmosfera, isolando-a contra variações de temperatura e ventos fortes. Hoje a temperatura, dentro do Domo, está entre -20ºC e -49ºC.
O Polo Sul Geográfico encontra-se no platô antártico, à 2835 m de altitude, e sua temperatura média é de apenas -49ºC.
A meta dos aventureiros é de explorar esse imenso território, que é o sexto continente do planeta e por que não dizer, encontrar a entrada para o centro da Terra.
Estavam todos muito contentes, mas muito cansados, de modo que era hora de descansar.
Agora ficariam quatro dias no Polo Sul, realizando manutenção no trator e no comboio, antes de empreenderem a viagem sobre o gelo.
Olhando para o imenso e desértico platô, onde as feições mais proeminentes são pequenas dunas (sastruguis) com trinta centímetros de altura, rapidamente os aventureiros compreenderam algumas das opiniões dos exploradores do período heroico (início do século XX). Robert Scott, ao chegar ali, em 1912, exclamou “Meu Deus, que lugar horrível”. Vazio total. Por outro lado, este ambiente silencioso e vasto os leva a uma introspecção a uma paz interior. É o nada no meio do nada branco, com pouquíssimo estímulo externo.
Colocaram-se em marcha, às 15 horas, sendo necessário desacoplar os trenós para garantir que o trator TL-6 pudesse arrastar o comboio, pois os esquis estavam muito aderidos à neve. Destrancaram os trenós, um a um, e novamente acoplaram-nos ao trator TL-6 e partiram.
O trator, com suas largas lagartas, próprias para se movimentar na neve, tinha a desvantagem de andar em baixa velocidade. No entanto, era duas vezes maior do que a velocidade dos trenós tracionados por cães.
No trator iam Cizi e Uguro. No primeiro trenó iam o Professor Alquimíades e Noragô. Nos demais iam Lilanice e o nº. 3, e no último, o 2 e o 1. Faziam uma média de 80km por dia, incluindo paradas para observação e recolhimento de amostras de neve, mediante perfuração. A alimentação era à base de desidratados, pois faziam as refeições em pleno movimento. Os dados atmosféricos eram os seguintes, nos primeiros sete dias da expedição:
Temperatura: -29.2 ºC
Altitude: 2850m
Velocidade do vento de 16,0 a 24km/h
No final do oitavo dia, após haver percorridos oitenta e cinco quilômetros, iriam descansar. O 1, o 2 e o 3 se encarregaram de inflar o iglu, para uma parada de dois dias, com pás e picaretas próprios para a finalidade. Cavaram uma clareira no gelo, na qual armaram o iglu. Pelo que se sabe os iglus são como um forno de assar pães, formados por blocos de gelo. No entanto, para eles são infláveis, pois os de gelo dão muito trabalho e eles não tinham tempo a perder. Refeitas as forças, deram continuidade à jornada. Houve substancial modificação nos pares, e no trator Cizi foi substituído pelo Professor Alquimíades e teve, como companheira de viagem a observadora dos acionistas. As demais posições permaneceram inalteradas.
O bom humor de Lilanice, parceira de trenó de Cizi, fazia com que o tempo parecesse passar mais rápido do que quando estava no trator. Conversa vai, conversa vem, contou-lhe grande parte de sua vida e esperou que ela fizesse o mesmo. Porém, em não o fazendo, perguntou:
— Como foi a sua vida até aqui?
O que lhe respondeu:
— Uma vida comum, nada de significativo. Na universidade, conheci meu esposo, casamos quando eu tinha vinte e oito anos, fomos felizes até sua trágica morte.
— Se não quiser falar sobre isso, eu compreendo!
— Se você não se importar de ter uma chorona ao seu lado, posso lhe contar. “Meu marido era um homem maravilhoso, nós éramos imensamente felizes”. Do nosso casamento até a sua morte passaram-se doze anos, sem que eu tivesse percebido. Ele era engenheiro metalúrgico, com especialização em fornos para fundição, por isso sempre estava viajando, por todo o Brasil. A cada semana que ficava viajando, eu me embrenhava nos estudos e no desenvolvimento de minhas teses de doutorado. Certo dia, ele viajara para a serra. Eu estava em casa, trabalhando na última tese que defendi. Lá por volta das 23 horas, o telefone tocou. Era ele no celular.
— Oi, linda! Assim ele me chamava.
— Como está, tudo bem?
— Sim, tudo bem! Estou trabalhando na minha tese.
— Não vais descansar? Já deve ser tarde demais.
— E tu, onde estás nesse momento?
— Estou retornando. Só que tive um problema, quando dirigia peguei no sono e saí da estrada, o carro capotou diversas vezes e foi parado por um tronco de árvore. Eu estou, nesse momento, preso nas ferragens retorcidas, a luz interna, está acesa e eu consigo ver o estrago.
Na queda, o cinto se desprendeu e eu fiquei solto dentro do carro. Quando ele parou, ao bater no tronco de árvore, a lateral do motorista entrou para dentro do carro e apertou o meu tórax. O carro está com as rodas para cima. Nesse momento, estou com o tronco dentro do carro e as pernas para fora, pelo lado do carona. Não estou sentindo nada da barriga para baixo, devo ter lesionado a coluna, a dor no tronco é em forma de cinturão, mas é suportável.
Logo que ele parou de falar, perguntei:
— Qual é a sua localização para que eu possa pedir ajuda?
— Não sei, apenas sei que estou entre Nova Milano e São Vendelino, pela RS 122.
— As luzes estão acesas? Não há perigo de incêndio? Perguntei!
— Somente a luz interna, as demais estão apagadas.
— O celular! Vê se consegues ligá-lo no carregador pela bateria do carro.
— Já fiz isso antes de te ligar, o sinal está bem forte, vou tentar desligar a luz interna, consegui!
— Não desliga o telefone, vou pedir ajuda pelo meu celular, fica acompanhando.
— A polícia e o Corpo de Bombeiros foram atenciosos, porém argumentaram que, pelo mapa, entre São Vendelino e Nova Milano, havia cerca de 14 km, que estava chovendo na região, talvez até com cerração, que o resgate seria difícil e que mandaria várias viaturas para o local.
As buscas continuaram até o amanhecer. Durante todo o tempo, eu estive conversando com ele pelo celular. A certa altura ele me disse que havia um bicho se movimentando, perto de onde estavam os seus pés. Parecia que era mais de um, mas não podia enxergar, pois a escuridão era total.
Aos poucos, a conversa foi ficando mais lenta e, de repente, ele parou de falar, acho que adormeceu ou desmaiou.
Quando o dia amanheceu, ele voltou a me contatar dizendo:
— Consegui identificar os animais. São ratos, grandes e pretos, com longos pelos, acho que são os chamados de ratazana. Sabes o que estiveram fazendo durante a noite toda? Comendo o meu pé esquerdo, que se esfacelou na capotagem. Certamente, estava sem o sapato. Eles bebem o meu sangue e brigam entre si, alguns comem a carne e quando o sangue aparece, eles o bebem. Brigam entre si, de vez em quando, um se afasta e logo chega outro, sei que não é o mesmo, pois não está sujo com o sangue. Sinto-me fraco, acho que pela perda de sangue, se o resgate demorar, sinto que me encontrarão morto.
— Não! Aguenta firme, eles logo chegarão. Ele começou a me dizer o quanto me amava, que sentia muito ter de me deixar sozinha. Sua voz foi ficando cada vez mais fraca, passando apenas a murmurar algumas palavras. Eu nada pude fazer para salvá-lo.
Às 8 horas da manhã, ele foi localizado, porém já estava morto.
Após a sua morte, dediquei-me inteiramente ao trabalho. Diariamente, trabalhava até a exaustão total para não ter tempo de pensar. Quando acordava de madrugava, levantava e trabalhava. Assim consegui com que as feridas daquela fatalidade cicatrizassem. Resta-me apenas ir vivendo e esperando até que possa me juntar a ele novamente.
Findada a narrativa. Lilanice soluçava incessantemente. Cizi. passou a mão sobre a sua cabeça, querendo consolá-la. O choro foi diminuindo até cessar. Certamente, daquele dia em diante passaria a admirá-la cada vez mais: uma mulher sensível, porém possuidora de uma coragem inabalável, digna de toda a admiração e respeito.
No décimo dia de viagem, pararam para coleta de dados como faziam diariamente. Perigos e fenômenos do gelo lhes assolava a experiência de passar tantos dias trafegando a velocidades de, no máximo, 15km por hora, tracionados por um trator adaptado à neve e ao gelo. Antes de chegar ao objetivo, passaram por três perigos: o primeiro foi o frio, que exigia roupas e equipamentos adequados, o segundo foi o branco total, que poderia fazer a equipe perder as referências geográficas, e o terceiro, o maior deles, atravessar as fendas de gelo que poderiam engolir o comboio.
A paisagem ia ficando monótona. “Aparece o fenômeno ótico conhecido como “chuva de diamantes” Trata-se da passagem da umidade para o estado sólido quando o céu está sem nuvens”. A luz passa pelos cristais e é refratada para todos os lados.
O vento começava a aumentar a velocidade e por trinta minutos, ficaram expostos às baixas temperaturas, porém logo que finalizaram de coletar, retornaram aos postos para ficarem aquecidos pelos cobertores elétricos, mantidos quentes graças às potentes baterias do trator. Em trinta minutos, tiveram de parar novamente. O vento ficara forte, a sensação térmica era de cinquenta graus negativos, tinham de cobrir até o rosto com os cobertores. Permaneceram parados por mais de quatro horas e a neve que caiu aprisionou o trator e os trenós, trabalho para os números 1, 2 e 3, que levaram mais de uma hora para afastar a neve, que se compactara e formara blocos de gelo, tempo suficiente para que Cizi e Uguro fizessem uma incursão pelas redondezas. Para tanto colocaram as mochilas nas costas, calçaram os esquis e partiram.
Uguro com sua habilidade de homem experiente no gelo, tinha de esperar por Cizi, para não tomar uma distância que não o pudesse ver. A neve era de um branco quase que insuportável às vistas, as quais tinham de ser protegidas com óculos escuros, fato este que tornava a visão sombria. Uguro ia a mais de quinhentos metros, à frente, por mais que Cizi tentasse não o podia acompanhar, a não ser com a visão. De repente, ele some como se tivesse entrado em uma depressão existente na neve, e logo Cizi se aproximou. Ele estava parado, contemplando uma imensa fenda no gelo. Parou a seu lado e perguntou:
— O que é isso?
— Não sei não, senhor. Parece-me que houve um terremoto com capacidade de romper a imensa camada de gelo.
A fenda era de proporções imensas, devia ter, aproximadamente, uns dois mil metros de largura. A sua extensão era imprevisível, perdia-se no horizonte.
— O que vamos fazer, Senhor Rocha? - perguntou Uguro.
— Não sei, não consigo ver a profundidade. Há uma espécie de nevoeiro, a mais ou menos quinhentos metros de profundidade. Retornemos ao trator e juntamente com os demais retornemos até aqui, aí resolveremos o que fazer.
Estacionaram o trator de esteiras a uns duzentos metros de distância da fenda, receavam que pudesse haver um deslocamento com o peso do trator. Com cautela se aproximaram daquela imensidão.
O experiente geólogo, Professor Alquimíades, ficou estupefato ao ver a imensa fenda, produto de um sismo, certamente, disse ele. A representante dos investidores se apressou em registrar o fato com uma câmera digital. Os esquimós pareciam extasiados, olhavam-se uns para os outros e falavam no seu dialeto, que era traduzido por Noragô. Diziam:
— Os velhos da nossa tribo contavam histórias sobre essa fenda. Diziam que se alguém caísse nela, jamais retornaria, não se animavam nem a chegar perto o suficiente para ver o seu fundo, pois diziam que seriam atraídos pelos espíritos da fenda.
O altímetro registrava uma altitude de 2.845m. Segundo Alquimíades, essa também poderia ser a largura da fenda. Por mais de uma hora permaneceram comentando e discutindo as possibilidades de se fazer a exploração do achado. O professor Alquimíades consultava os mapas no interior da cabina do trator. Cizi e Lilanice estimavam a sua extensão longitudinal. Assim chega o Professor Alquimíades, com um bloco contendo anotações e cálculos e diz:
— Meu caro amigo, Professor Cizilião. Pelos meus cálculos a fenda deve ter uma dimensão longitudinal de mais de 100km e em suas extremidades deve haver uma inclinação por onde se poderá acessar as suas profundezas. No entanto, a descida terá de ser a pé. Sugiro que nos dirijamos até o seu final e que lá discutamos o assunto.
— Arguiu o Professor Alquimíades.
Cizi concordou prontamente, cada um tomou o seu lugar nos meios de transporte e partiram rumo ao final da fenda. Após haverem percorrido 18km, chegaram ao final. Como previra o Professor Alquimíades, o encontro das duas laterais da fenda se constituía em um plano inclinado, com mais de cento e cinquenta metros de largura, o quanto podiam ver, com relativa facilidade de ser percorrido a pé.
— Estamos exatamente a 88º 5’ de latitude e -88º 5’ de longitude, incrível coincidência. - Murmurou Alquimíades.
Os experientes guias e os esquimós procuraram um local para instalar o quartel-general, onde seria armado um iglu gigante, inflado pela descarga do trator. Comandados pelo guia, os esquimós estenderam o grande iglu, que tinha um diâmetro de vinte e cinco metros, movimentaram o trator para entrasse pela porta e se situasse a sua direita. A descarga do trator foi acoplada ao ponto de inflar e, após estar inflado, o trator ficaria em seu interior, também para o seu interior, foram arrastados os trenós. Todo o trabalho levara cerca de duas horas e estava tudo organizado. Dentro do iglu, a temperatura permanecia em torno dos 10º C, o que permitia que retirassem as roupas térmicas, próprias para o frio. Todos se sentaram, formando um círculo e procederam à primeira reunião do grupo. Cizi tomou inicialmente a palavra, dizendo:
— Estamos reunidos no interior quente deste iglu, para que possamos discutir e tomar decisões importantes para a nossa missão. A qualquer momento, qualquer um dos componentes deste grupo poderá externar a sua opinião, seja ela qual for, fazer proposições as quais depois de debatidas serão votadas pelo grupo. Se aprovadas, serão executas nas ações que iremos empreender. Se reprovadas, não caberá insistência ou racha do grupo. Somente começaremos as discussões após aprovadas as regras que acabo de propor. Seguiu-se a votação e a aprovação da moção foi por unanimidade.
Continuou Cizi:
— Este grupo de exploradores do Polo Sul, pela primeira vez, desde que saímos do Brasil, se deparou com uma tomada de decisão importante, digna de ser examinada por todos os componentes. Estamos prestes a empreender uma descida ao desconhecido, nunca dantes realizada por qualquer ser vivo, ao menos que tenhamos conhecimento. Para tanto, se torna mandatório que lhes faça alguns esclarecimentos sobre o assunto: Segundo algumas teorias, a terra era originalmente uma bola de fogo e de metal fundido. A força centrífuga, resultante da sua rotação em torno do seu eixo, fez com que seu material sólido fosse arremessado para a periferia e, com o resfriamento, foi sendo formada uma crosta sólida. Como a velocidade desta massa ígnea nas regiões polares era menor, se formaram duas aberturas nestas extremidades.
Segundo Marshall Gardner, a borda da abertura polar, o verdadeiro polo magnético, é um grande círculo de 2250km de diâmetro. É tão grande que, quando um explorador passa por ele, como muitos o fizeram, não se percebe que está seguindo para o interior da Terra, e sim, se imagina que continua na sua superfície, devido à sua declividade ser muito suave. Outra evidência é a presença de inúmeros animais selvagens numa terra considerada inóspita, como o Polo Norte.
Os exploradores polares mencionam a existência tanto de fauna quanto de flora, no extremo norte. Muitos animais, como o boi almiscarado, estranhamente migram em direção ao norte no inverno, o que fariam somente se lá existisse uma terra mais quente. Também, se observam a presença, cada vez mais frequente, de ursos polares e raposas, naquelas regiões, borboletas, abelhas e até mosquitos, numa região circundada por geleiras eternas. Encontram-se variedades desconhecidas de flores, revoada de pássaros são vistas constantemente e as lebres são abundantes, transformando esta região num viveiro para os predadores.
Minha proposição, diante do desconhecido e o incerto, é que parte do grupo desça e a outra parte permaneça a espera de seu retorno. Somos de parecer de que deva descer este que vos fala, acompanhado de um dos experientes guias e de um dos carregadores.
Acabara de falar e Lilanice já se encontrava com a mão levantada.
— Com a palavra, a nossa observadora, Doutora Lilanice Duquia.
— Concordo com a proposição do Professor Cizilião. No entanto, quero lembrá-los de que, como observadora, tenho o dever de acompanhar todas as incursões que forem feitas.
Logo em sequência, o Professor Alquimíades toma a palavra e diz:
— Senhores e senhora, sem a finalidade de contrariar, mas contrariando o nosso líder maior, o professor Cizilião, sou de parecer de que devamos ir todos. Estribo minha proposição no fato de que todos somos necessários à missão, cada um dentro da sua especialidade.
Após acirrada discussão, feita a votação, por unanimidade, foi decidido que todos desceriam a fenda. As baterias e um pequeno gerador de energia elétrica, movido a óleo diesel, foram acondicionados em um dos trenós, juntamente com dez galões de óleo combustível. No outro trenó, foram acondicionados os viveres e um iglu inflável, com dezesseis metros de diâmetro. A descida seria lenta, os trenós seriam armados com dispositivos de trava contra o deslizamento em declive, as roupas térmicas ligadas às baterias garantiriam o aquecimento necessário para a descida, a água seria obtida com o derretimento da neve em cantis especiais, aquecidos com resistências elétricas, energizadas pelas baterias.
Tudo pronto. Iniciou a descida, todos amarrados a cordas, que estavam ligadas aos trenós. Os primeiros mil metros de caminhada foram superados sem qualquer embaraço. Mais cem metros de percurso os colocaria dentro da cerração densa, que cobria toda a fenda. Antes de adentrarem na cerração pararam para uma breve conversa sobre a estratégia a ser adotada. Os guias sugeriram que esperássemos, aproveitando para fazer um descanso, enquanto um deles e um carregador fariam o reconhecimento das condições de visibilidade dentro da cerração.
Noragô se apresentara voluntariamente para empreender o reconhecimento e seria acompanhado do número 2. Os expedicionários sentaram nos trenós, enquanto os dois batedores entraram na densa serração e após trinta minutos, Noragô e o 2 apareceram saindo da nuvem, dizendo que a cerração era densa, mas que permitia uma visibilidade de cerca de dez metros, pois as condições não se alteraram nos duzentos metros que avançaram.
Prosseguiram na descida, nas novas condições de visibilidade, a marcha era com menor velocidade e maior cuidado. A dez metros de distância cada um, estavam todos presos na mesma corda que tinham de manter esticada, para o caso de cair em um precipício. O altímetro marcava mil, duzentos e oitenta metros, se considerassem que o plano inclinado tivesse 20ºC. Teriam de caminhar até atingir o nível do mar, mais de três mil e oitocentos metros. A marcha se desenvolvia a uma velocidade inferior a cinco quilômetros por hora.
CAPITULO VI
FINAL DA DESCIDA
O grupo movimentava-se com cautela. O avanço era lento. Passadas mais de cinco horas de caminhada sob a cerração, a visibilidade começava a aumentar, de dez metros já se podia ver a uns vinte metros. A cerração começava a se transformar em neblina, a temperatura começara a subir, os termômetros marcavam temperaturas ainda negativas, em torno de - 4ºC. Com o avanço, a neblina se transformava em finos flocos de neve. A visibilidade era a mais de vinte metros. Pararam e se reuniram para que pudessem conversar uns com os outros, pois a distância que os separava, mais de dez metros pessoa a pessoa, não permitia que grupo se comunicasse de forma coletiva.
Alquimíades olhou ao longe, na posição que se encontrava. Com o uso de um binóculo, foi possível ver o final da fenda, que findava em um imenso paredão. Pela imensidão era impossível avaliar a dimensão daquela imensa cratera, as rochas que a circundavam eram íngremes. A descida seria quase que impossível para os membros do grupo.
Reunidos em círculo, os aventureiros cedem à palavra ao iminente “experto” em Geologia e Ufologia, o professor Alquimíades de Almeida:
— Estamos diante do desconhecido e do incerto. Este momento exige nossa mais absoluta reflexão. Como Católico Apostólico Romano, invoco ao Grande Árbitro dos Mundos, “Deus”, que queira com misericórdia e sabedoria nos conduzir por estes caminhos desconhecidos, quem sabe, nunca dantes percorridos pelos seres humanos. No entanto, devo lembrá-los de que, desde o início da nossa jornada, esperávamos por acontecimentos semelhantes. Somente por isso a minha presença se justifica nesta expedição. Como geólogo posso, pelo pouco que pude examinar as escarpes e a forma geológica que se apresentam, concluir que estamos diante de um grande acidente geográfico e que esta imensa fenda, para ser explorada exigirá, com toda a certeza, um alto tributo a ser pago por nós. Mas, uma coisa é certa. Não se trata de forma alguma de uma entrada que ligue um polo ao outro. Sugiro que acampemos aqui e que descansemos todos. Eu, por minha vez, vou estudar o local e tecer minhas considerações sobre tudo isso que estamos vendo. Vou necessitar dos conhecimentos em Cartografia e Geologia de nossa ilustre observadora, Professora Lilanice Duquia.
O acampamento fora improvisado pelos carregadores 1, 2, e 3, comandados por Uguro e Noragô.
Enquanto os dois geólogos faziam suas investigações, Cizi aproveitou para descansar. Nesse momento, os termômetros marcavam - 5ºC, o bastante para que fossem dispensados os aquecedores das roupas com aquecimento elétrico. O cansaço chegara primeiro em Cizi, certamente por ser o mais velho do grupo. Acomodado em um dos trenós, observava Lilanice e Alquimíades trabalhando. Parecia que estavam se entendendo muito bem, hora um observava o telescópio, hora o outro e faziam anotações na carta que estavam elaborando. A visão se turvava, aos poucos fechou os olhos e adormeceu.
— Professor, Professor Cizilião!
— Sim!
— Desculpe ter lhe despertado. O senhor dormiu mais de duas horas. Todos nós já descansamos o suficiente. O pessoal acha que devemos fazer uma reunião.
Era Lilanice quem o chamava. Despertou de imediato e se dirigiu ao grupo. Todos estavam sentados como índios apaches em reunião, no solo com, as pernas cruzadas à frente. Cizi se sentou entre Alquimíades e Lilanice e disse:
— Professor Alquimíades! Tem o senhor a palavra, para suas considerações.
— Eu e a professora Lilanice, após havermos observado, atentamente, tudo isso que se apresenta diante de nós, chegamos às seguintes conclusões:
1º) Que estamos diante de um fenômeno geográfico formado a milhares de anos por placas tectônicas, mais provavelmente por três placas, formando um triângulo oco entre elas.
2º) Que até o seu fundo, se este existir, teríamos uma descida de mais de três mil metros, em paredões rochosos, íngremes, sem qualquer possibilidade de descida. Alguma pergunta até aqui?
— Professor Alquimíades? — Interpelou Uguro.
— Como sabe que a descida seria de três mil metros, se a cerração não permite que avistemos o fundo da cratera?
— Caro Uguro; eu e a professora Lilanice calculamos o tempo que uma pedra, sob a ação da gravidade, levou para chegar ao fundo da cratera. Porém, há a possibilidade de ela ter chegado apenas a uma encosta. Isso apenas nos dá a certeza de três mil metros, no mínimo, não no máximo.
— 3º) Que absolutamente não se trata de entrada para o centro da Terra, apenas e tão somente um acidente geográfico. Portanto, senhores, nada mais temos a fazer aqui. No entanto, esse acidente não está registrado em nenhuma carta, em nenhum mapa da Antártida. Localizá-lo corretamente e colocá-lo no mapa, somente isso justifica que passemos alguns momentos, ou alguns dias, à margem de suas estepes. Sugiro que após um descanso reparador, passemos contorná-lo. Quem sabe, em algum ponto achemos o local onde seja possível a descida.
O Professor Alquimíades, homem inquieto, não descansava. Juntamente com o nº. 1 reuniram as cordas disponíveis. Juntando todas, obtiveram mil quatrocentos e oitenta e três metros de corda, incluindo as cordas finas que serviam para amarrar as lonas dos trenós.
Após quatro horas de descanso e alimentação, o grupo começa a caminhada pela encosta da cratera. Em determinado ponto, após duas horas de caminhada, o Professor Alquimíades para e faz um sinal com a mão para o número 1. O número 1 a dez metros da encosta, com uma corda amarrada à cintura, que o ligava ao Professor Alquimíades, que se aproxima do barranco, amarra um termômetro na ponta dos mil, quatrocentos e oitenta e três metros de corda que restava e começa a descê-lo no precipício. Toda a corda é esticada, permanecendo o termômetro para a estabilização da temperatura por vinte minutos. O Professor começa a subir, puxando a corda com a maior rapidez possível, até o termômetro chegar as suas mãos. Este marcava 5ºC, sendo a temperatura no topo da escarpa de -5ºC. O Professor Alquimíades diz:
— Possivelmente, a temperatura na base da cratera será em torno de 20ºC.
Ao examinar a bússola, fica surpreendido, pois a bússola estava louca, e os celulares não funcionavam. Tudo indica que estavam dentro de uma ZAG "Zonas e Anomalias Geomagnéticas".
— Devemos nos reunir novamente, para tomarmos novas decisões, dado aos fatos e circunstâncias inesperadas. — diz ele.
Os aventureiros, como já era de costume, se reuniram em formação de círculo. Lilanice sugeriu que antes de cada reunião, erguêssemos uma homenagem ao soberano árbitro dos mundos, fazendo uma oração. Todos concordaram, incluindo Cizi que, embora sendo ateu, não era contrário às crenças de seus semelhantes. Após a oração, o Professor Alquimíades, tomando a palavra, assim se expressou:
— Tudo o que vi até o momento, nesta fenda, me levam a suspeitar de que estamos ou dentro ou nos aproximando de uma ZAG. As ZAGs, "Zonas de Anomalias Geomagnéticas", são conhecidas até hoje em número de doze ZAGs, Existem doze regiões no mundo, onde a gravitação e o magnetismo fazem das suas, alterando o espaço e o tempo: entre Marrocos e Argélia, Planalto do Irã, Pacífico Norte, Polo Norte e o Mar do Diabo (Japão-Filipinas), ao sul temos Ilhas Caledônia, no mar Índico, temos a região entre Madagascar e Moçambique, Ilhas Tubudi, no Pacífico Sul, Ilha de Páscoa e a nossa ensolarada Cabo Frio... Além do Polo Sul, é claro.
Sanderson, um estudioso do assunto, explica que, em sua maioria, essas zonas (ZAG) estão localizadas onde as correntes oceânicas quentes, em seu trajeto para o Norte, se encontram com as correntes frias que fluem até o Sul, originando pontos nodais (onde as correntes submarinas e as de superfície tomam caminhos diferentes). Em casos extremos, chegam a provocar o desaparecimento de barcos e aviões.
Somente duas das doze zonas estão em terra firme: uma no Afeganistão e outra na Antártida. As outras dez estão no mar.
Terminado o relato sobre as ZAGs, o Professor Alquimíades passou a palavra para Cizi, que assim falou:
— Nós somos um grupo de aventureiros. Os aventureiros, sempre na história da humanidade, foram os que fizeram importantes descobertas, enfrentaram o desconhecido, e muitas vezes, perderam suas vidas, inutilmente. Pois bem, estamos diante do desconhecido, poucas pessoas teriam a coragem necessária para o prosseguimento da aventura. Há, no momento, duas dificuldades. A primeira é a falta de comunicação com o mundo exterior. A segunda é a grande dificuldade que se avizinha de prosseguirmos. Diante de nós há um precipício imensurável. Não dispomos de nenhuma técnica de voo, que nos permita uma descida segura e um retorno incólume, e eu pergunto a vocês: prosseguimos ou retornamos?
Noguro, levantando o braço, armado em forma de soco, disse:
— Se me permitem, eu, meu companheiro e os serviçais que me acompanham, estamos decididos a lhes acompanhar, seja qual for a decisão que os senhores tomarem.
— Nesse caso, a decisão está em nós três: eu, Alquimíades e Lilanice. Quero lhes ouvir. Lila tem a palavra para as suas considerações:
— Meus companheiros, minha vida não temo perdê-la. Eu acredito em Deus e, se for seus desígnios perdê-la aqui é porque após esta vida serei recompensada. E a única recompensa que quero e desejo é novamente estar com meu finado e querido esposo. Por isso, eu sou da opinião de prosseguirmos na nossa aventura, sejam quais forem as dificuldades.
— Com a palavra, o Professor Alquimíades:
— Primeiramente, sou pelo prosseguimento da aventura. Mas, como vamos descer? Não temos cordas suficientes para um rapel. Descer como alpinistas, seria muito arriscado. E, no mais, não teríamos todos os materiais necessários para a descida de todos. No entanto, podemos fazer um grande paraquedas com o iglu inflável. Mas por maior que seja o paraquedas, não seria o suficiente para todos. Por isso, no meu entendimento, devemos dividir o grupo em dois, os que prosseguirão e os que retornarão, para buscar meios de resgate, como, por exemplo, um helicóptero, cordas e materiais de alpinismo.
Cizi, tomando a palavra, disse:
— Muito bem, no entanto, devo deixar claro que somente permitirei que meus parceiros desçam, se após cautelosa avaliação dos dois técnicos em Geologia, chegarem a uma conclusão de que temos reais possibilidades de sobrevivência e retorno incólumes. Por isso, somente após este estudo veremos a possibilidade de efetuarmos a descida.
O Professor Alquimíades se reuniu com Lilanice e começaram a trabalhar.
Após várias horas de estudo e acirrados debates, dos quais Cizi não participou, propositalmente, para não os influenciar, ambos chegaram a uma conclusão.
Todos reunidos, o Professor Alquimíades foi designado para dar as devidas explicações ao grupo, assim se referindo:
— A primeira pergunta que eu e a professora Lila fizemos foi a seguinte: O que encontraremos no fundo desse precipício? Nossa avaliação foi de que, com chances de 99,9%, teremos água. Por quê? Se esse precipício está cercado de geleiras e pelo teste do termômetro, onde as temperaturas são positivas, considera-se que há evaporação de água, pois nuvens de vapores d’água indicam que há um fluxo contínuo de água derretida descendo e água na forma de vapor subindo. A segunda pergunta que fizemos foi: considerando que para sobrevivência dos que descerem há a necessidade de se encontrar água, pois, nós, humanos, podemos apenas passar três dias sem bebermos água, qual a possibilidade de termos água potável para bebermos? Chegamos à conclusão que é de cem por cento, o gelo derretido escorre pelas rochas em pequenas ou em grandes quantidades, porém o suficiente para nos abastecermos. A terceira pergunta: Qual a possibilidade de encontrarmos alimentos? A esta pergunta não obtivemos qualquer possibilidade de resposta. No entanto, avaliamos o tempo necessário para o retorno de nossos companheiros, que terão a missão de trazer uma forma eficiente de resgate. Este tempo foi avaliado em dez dias. O suficiente para que cheguem à estação norte-americana, onde se comunicarão com Porto Alegre, conseguindo todo o material necessário para o salvamento, que, certamente, será transportado por um helicóptero. Por isso, teremos de, no mínimo, levar alimentos para doze dias e os meios para prepará-los e fazer a cocção.
Todos concordaram com o Professor e Lilanice. Restava apenas saber quem prosseguiria e quem retornaria. Seria uma briga, todos quereriam prosseguir.
Cizi, com a palavra, assim se referiu:
— Como líder desse grupo, até o momento, não usei de minha autoridade. Busquei sempre o convencimento de todos e acatei as sugestões da maioria. Temo que agora é chegada a hora de eu tomar certas decisões, por puro interesse da missão. Acho que, como somos oito pessoas, quatro devam prosseguir, duas devam retornar para buscar os meios de resgatar os demais, os outros dois permanecerão aqui, de vigília para garantir qualquer inesperado retorno. Minha decisão é de que retorne o nº. 2 com Uguro. O nº. 1 e o 3 ficam na espera. Que Noragô, Professor Alquimíades, Lila e eu prossigamos, saltando com os paraquedas. No entanto, devemos preparar dois paraquedas, utilizando o material do iglu inflável. Em cada um irão duas pessoas levando viveres e materiais necessários à sobrevivência em condições inóspitas. Devemos considerar a possibilidade de cairmos em meio aquoso, por isso devemos levar flutuadores.
Foi convencionado que o grupo que retornaria, ajudaria o grupo que saltaria de paraquedas e logo partiria. A capa que compunha o iglu foi dividida na junção entre a parte interna e a externa. Uma costura com utilização de fios de nylon reforçou as bordas. Oito cordas equidistantes ligavam as bordas do paraquedas ao cesto improvisado com lonas de cobertura dos trenós. Dois flutuadores, formados por toneis de aço, serviram de depósito de óleo combustível utilizado no trator. Cada grupo levaria óleo combustível para ser utilizado para aquecimento, se necessário fosse. Por isso, os tonéis que serviriam de flutuadores levariam vinte litros de óleo, ficando o espaço de oitenta litros para permitir a flutuação. Estes, por sua vez, foram instalados nas pontas dos berços. Nos apetrechos, que levariam como carga adicional de sobrevivência, incluía uma pequena mala, contendo diversos medicamentos, como analgésicos e anti-inflamatórios, foram acondicionados nos cestos. Uma grande rampa de gelo foi formada junto à encosta mais íngreme. O plano seria deslizar pela rampa e ser arremessado, com todo o conjunto formado pelo trenó, que carregaria o cesto, os viveres e utensílios e os passageiros. O trenó estaria amarrado a uma corda de aproximadamente cem metros, o suficiente para, na queda, abrir o paraquedas, sendo o trenó resgatado pelo grupo que retornaria.
O trabalho fora incessante. Após doze horas de árduo trabalho, o grupo de aventureiros descansara por oito horas consecutivas, envoltos nos cobertores elétricos. Ao despertarem, tudo estava pronto para a partida. O primeiro arremesso seria feito. Nele iriam Noragô e Lila. Foi levado em conta que Noragô tinha alguns conhecimentos sobre paraquedismo, pois já havia dado alguns saltos de paraquedas. O conjunto estava no alto da rampa, os passageiros do salto já estavam a postos. A corda que amarrava o trenó já fora arrumada em espiral para não atrapalhar o arremesso. O tronco de arbusto, que travava o esqui do trenó, foi arrancado da frente do esqui. O conjunto começa a se mover e pega velocidade na rampa íngreme. Ao chegar ao final da descida a queda espetacular do conjunto que, na queda, se distanciara do trenó do cesto. O paraquedas se distanciara, por sua vez, do cesto, até ficar totalmente aberto. O trenó, no final da corda, fora arremessado contra o paredão. O primeiro grupo sustentado pelo paraquedas começa a descida lentamente, perdendo-se na cerração. Logo, em seguida, o segundo arremesso foi realizado com igual sucesso. A sorte tinha sido lançada, tudo agora ficara por conta do destino que, no imaginário, é apenas tudo aquilo que acontece e não é possível modificar.
CAPÍTULO VII
A DESCIDA DE PÁRA-QUEDAS
O paraquedas estabilizara. A descida era lenta. Como a atmosfera era espessa tinham uma sensação de estranheza, a visão os enganava, fazendo-os crer que não havia terra a ser alcançada. O aspecto das brumas mudava de cor, não distinguiam o horizonte, ou coisa alguma que lhes indicasse onde estavam e para onde iam. Viam apenas um nevoeiro, esbranquiçado que passava para esverdeado.
Embora tivessem sido lançados antes, não tinham nenhum sinal de Noragô e Lilanice. Durante a lenta queda, foi possível sentir o aumento gradativo da temperatura. Começavam a aliviar as pesadas roupas, as quais empilhavam sob os pés. Pelo calor sentido, a temperatura já deveria estar além dos 10ºC. Um torvelinho os apanhou e a mansidão da descida tornara-se o rodear de um pião, que agora os movia rapidamente no sentido diagonal. Relâmpagos e coriscos se faziam presentes. Deveria ter passado cerca de dez minutos de extrema agitação e tudo voltou à serenidade a cor da bruma era de um tom esverdeado, passando, quando em vez, a uma tonalidade amarela. De repente, a bruma ficara acima de suas cabeças. Podia ver quão claro ficara o caminho da serena queda. Os raios do sol da meia-noite clareavam tudo, fazendo-os perceber que a queda terminaria na água que reluzia à luz solar. O Professor Alquimíades acertara! Cairiam na água, uma rápida olhada no termômetro que carregara no bolso, fez sentir aliviado: o termômetro marcava 23ºC, nem frio nem calor, a temperatura ideal para os seres humanos, o que fez Cizi quebrar o silêncio e dizer ao Professor Alquimíades.
— Temos mais sorte do que juízo, meu caro Professor.
O termômetro marca 23ºC, a queda na água era iminente. Prepararam-se para bater na água, que se aproximava rapidamente.
— Agora! - gritou o Professor Alquimíades.
Os flutuadores resistiram condignamente à batida na água. A lona plástica, que até então servia de paraquedas, caíra sobre eles. Sentiram que a água era calma e a temperatura agradável. Rapidamente se livram do paraquedas, enrolando-o por sobre o berço de flutuação. Olharam para o horizonte. Água, apenas água, o quanto a vista alcançava. Levantou e olhando ao longe podia ver o paredão íngreme, austero e implacável que, dada à distância, pequeno parecia. Olhou para o outro lado e nada viu. Água apenas água. A brisa mansa levemente movimentava a água límpida e clara.
O Professor Alquimíades, pegando um binóculo que sempre carrega na mochila, levanta, olha em todas as direções e diz:
— Meu caro Cizi, sinto lhe informar que teremos de remar até atingirmos o paredão. Certamente, nossos antecessores teriam feito o mesmo.
Cizi colocou a mão na água, enchendo-a com a mesma, levou boca, logo cuspiu e disse:
- É salgada!
Alquimíades, fazendo compressão no cenho, disse:
— Meu caro amigo, isso nos diz que o primeiro problema que teremos é o de descobrir água potável para beber. E essa só poderá vir das rochas, mais um motivo para nos dirigirmos aos rochedos. No entanto, por outro lado, há a grande possibilidade de que estas águas estejam ligadas ao oceano e, se eu estiver certo, nos fornecerá o alimento necessário à nossa sobrevivência.
Começaram a remar com as mãos, em direção ao rochedo. Após movimentar a embarcação, improvisada por mais de uma hora, pequenos camarões começaram a surgir na água, os quais foram identificados pelo Professor Alquimíades como sendo "krills" que vivem de fitoplâncton, em águas férteis, e servem de alimentos para as baleias e outros peixes. A remada já era praticada a mais de duas horas. Quando ficaram próximos do paredão, constataram que a rocha era intransponível. Não havia como descer de seu pequeno flutuador, fato este que os obrigou a seguir costeando o rochedo. Mais de três horas remando com as mãos, já sentindo-as pálidas e enrugadas pela água, resolveram descansar por alguns instantes e observar o rochedo. O cansaço era tamanho que adormeceram e, quando despertaram, havia passado mais de duas horas de sono profundo. O flutuador estava encostado e roçando levemente na pedra do rochedo. Cizi olhou para o alto e pode ver gaivotas ou andorinhas, que entravam nas fendas das rochas, a mais de cem metros de altura. Continuaram a remar em silêncio e a observar as aves, que plainavam e introduziam o bico na água e comiam o “Krill”. No silêncio profundo, puderam ouvir o barulho de uma queda d’água, o que os fez apressar as remadas, até atingirem uma pequena cascata, que se precipitava pelo rochedo, caindo na água salgada. Alquimíades levanta ambas as mãos ao céu e agradece a Deus, por ter dado água e comida, representada pelas aves e pelo “Krill”. Encheram os cantis na água da fonte que caía. A água era límpida e gelada. Beberam e reservaram água suficiente para prosseguir na jornada. Mais algumas horas de movimentação em improvisada barca, encontraram uma enseada, onde havia mais de cem metros de um platô à beira d’água. Desembarcaram e após arrastarem a pesada embarcação para cima do platô, vencidos pelo cansaço, se encostaram nos pertences e começaram a contemplar tudo aquilo que os cercava. O Professor Alquimíades, olhando para o rochedo apontando disse:
— Veja, Cizi. Há uma caverna ou furna lá ao longe.
Dirigiram-se imediatamente para o local. Sua entrada era baixa, cerca de oitenta centímetros de altura por uns dez metros de largura. O Professor Alquimíades se abaixou e colocando a cabeça para dentro da gruta disse:
— É escuro, nada enxergo lá dentro.
Prepararam uns archotes com pedaços de lona, derramaram um pouco de óleo combustível e atearam fogo. O Professor Alquimíades colocou a tocha e a cabeça para dentro da entrança e disse:
— Podemos entrar.
Introduziu o corpo e o outro o seguiu. Mais ou menos, a uns cinco metros o teto se ergueu a mais de dez metros de altura. Sua largura era duplicada. No seu interior a temperatura devia descer mais de 5ºC do exterior. Tudo era calmo, nada se movia.
Os espeleotemas eram abundantes, estalactites, estalagmites, colunas, cortinas, entre outras, Apresentavam cores, formas e dimensões diversas, dependendo do mecanismo de deposição.
Avançaram e, de repente, Alquimíades disse:
— Temos de voltar e apagar a tocha. Não podemos macular um ambiente que a mãe natureza levou, quem sabe, milhares de anos para formar.
Alquimíades procurou entre seus pertences uma lanterna, Cizi nem chegou a procurar. Sabia que não a tinha trazido, pois o dia naquele lugar era de vinte e quatro horas, no período de verão. Finalmente, Alquimíades achou a lanterna e entraram na caverna.
Uma examinada, em todas as direções, pôde constatar que se tratava, entre diversos salões, de um salão separado dos outros por colunas. No teto, havia grande formação de estalactites, no piso, as estalagmites, uns próximos aos outros, dificultando a movimentação. Perceberam que havia até uma estalactite de cor alaranjada devido à presença de óxido de ferro. Extasiados perante tanta beleza, que lhes parecia indescritível, Cizi perguntou a Alquimíades se, como geólogo, poderia lhe explicar o que era e como a natureza formava aqueles apêndices no teto e no solo.
— Meu caro Professor Cizilião, as cavernas formam-se normalmente em áreas de rochas calcárias, embora na zona costeira possam ocorrer em outros tipos de rochas. As rochas calcárias são formadas por calcita (carbonato de cálcio), que se dissolvem quando entram em contato com a água que contém suficiente teor de ácidos. Estes são provenientes da chuva ácida ou do dióxido de carbono existente na atmosfera e na decomposição da matéria orgânica que, em contato com a água, formam o ácido carbônico. Num segundo momento, a água ácida, penetrando pelas fendas do calcário, ataca a rocha, produzindo o bicarbonato de cálcio, que é solúvel e facilmente transportado pela água. Com a dissolução do bicarbonato de cálcio, as fendas vão-se alargando lentamente e formando as cavernas. Quanto aos apêndices, como você disse, estes são denominados de espeleotemas, que são formações minerais que ocorrem em cavernas, a exemplo das estalactites, estalagmites, colunas, cortinas, entre outras. Apresentam cores, formas e dimensões que dependem da morfologia de cada gruta, do tipo de mineral depositado e do mecanismo de deposição.
— Veja, Alquimíades, lá ao longe há uma espécie de escada!
— Meu caro Cizi, aquilo é uma cortina, mais parece uma cascata petrificada.
— Vamos até lá, Alquimíades, quero ver isso de perto. Quando lá chegaram viram que a cortina dava passagem para um outro salão. Subiram pela cortina, agarrando-se pelas escarpas da formação rochosa. Quando lá chegaram, com muita dificuldade, foram surpreendidos por algo que lhes causou imensa admiração e respeito. O imenso salão tinha a sua abóbada sustentada por imensas colunas de pedra. A altura da abóbada tinha mais de vinte metros e o que mais lhes impressionou era que estava toda iluminada por raios de sol, que entravam por uma abertura ao lado das escarpas. Os raios de sol eram refratados nas estalactites penduradas no teto, as mais diversas cores, verde-escura e clara, ocre e em tons de azul. No piso, havia formação de imensas “banheiras”, formadas pelas rochas, cheias de água límpida e fresca. A admiração de ambos foi tamanha que Cizi perguntou a Alquimíades como poderiam ser formadas as tais “banheiras”.
— Acredito Cizi, que tais formações ocorreram pela precipitação de água, de degelo, que, entrando pela abertura na escarpa onde agora está entrando a luz solar, houve a formação ao longo de milhares de anos, desta “banheira”. Porém, não tenho certeza, para mim isso nunca foi visto ou estudado.
A água estava gelada, mas mesmo assim tomaram um maravilhoso e merecedor banho. Pela primeira vez, após ter iniciado a descida, é que tomavam banho e trocavam de roupas.
Assim passaram a tarde, se assim podiam chamar, pois onde eles estavam, os dias duravam vinte e quatro horas e não tinham ideia de horário, a não ser que olhassem as horas. Após descansarem longamente, e haverem comido uma farta refeição, o que não faziam há muito tempo, dormiram por algumas horas e voltaram a planejar as atividades de exploradores.
O Professor Alquimíades, olhando em círculo, verificou a existência de uma cortina pela qual poderiam atingir um outro salão, até então inexplorado. Porém, no momento, isso lhes pareceu impossível, pois a cortina era formada por material de decomposição de pouca consistência e muito escorregadio. A escalada de seus, aproximadamente, dez metros, seria com grande dificuldade. Não havia outra possibilidade se quisesse continuar a exploração, pois esse era o único caminho a seguir. Começaram os preparativos para a subida pela cortina. A ideia foi de esculpirem uma espécie de escada, com a utilização de suas facas.
O plano inclinado da cortina devia ter no máximo 30º, o que a tornava muito íngreme. Mas, após horas de trabalho, conseguiram entalhar na cortina uma mal acabada escada, através da qual, com o maior cuidado possível, conseguiram chegar ao outro salão. A grande área de cobertura do salão era em granito negro, de onde se precipitavam estalactites de cor verde-clara, que brilhavam quando os raios de luz, passavam por uma abertura nas escarpas. Nada poderia ser comparado àquela obra majestosa da natureza. O granito, todo estratificado em grandes blocos, apresentava fendas, o que poderia facilitar a sua escalada, pois no seu ápice havia uma espécie de patamar que provavelmente os levaria a outro salão. Permaneceram naquele novo salão por cerca de três horas, estudando-o nos mínimos detalhes. O Professor Alquimíades, como bom geólogo, estudou demoradamente o granito negro que formava a parede estratificada.
Pelos seus cálculos, já passavam mais de vinte e quatro horas, desde o salto de paraquedas. Resolveram voltar para a praia, se é que se podia chamar de praia o local em que desceram do flutuador.
Com a utilização de um binóculo, o Professor Alquimíades examinou toda a extensão visível, à procura dos companheiros de aventura. Como nada encontrou, passou a conjeturar sobre os acontecimentos que os teria levado a uma separação tão grande em tão pouco espaço de tempo. Se houvesse noite, poderiam acender uma fogueira, com a utilização do combustível que haviam trazido. Também, eles poderiam utilizar esse artifício, mas tudo em vão, pois com a claridade nas vinte e quatro horas do dia, não seria fácil ver uma fogueira a grande distância. Definitivamente, teriam que sair à procura dos companheiros perdidos. Não queriam acreditar que tivessem perecido na descida. O que seria mais provável é que, tendo alguma noção de paraquedismo, Noragô tivesse inclinado o paraquedas, distanciando-se em alguns quilômetros. O Professor Alquimíades sugeriu que se separassem, ou seja, que um deles permanecesse no local e o outro continuasse com o flutuante seguindo a encosta rochosa, à procura dos perdidos. Resolveram de comum acordo que Alquimíades seguiria, pois tinha maior vigor físico para remar com o uso das mãos, e Cizi permaneceria no local continuando os estudos do meio ambiente.
O Professor Alquimíades havia partido a mais de uma hora, quando Cizi descia o paredão estratificado, após havê-lo estudado minuciosamente. Quando estava a pouco mais de dois metros do piso do salão, seu pé escorregou e ele perdeu o equilíbrio, momento em que, com a mão esquerda, tentou alcançar uma fenda vertical da parede estratificada. Sua mão esquerda ficou irremediavelmente presa na fenda, porém seus pés encostaram no solo. Tentou de imediato puxar a mão, mas a fenda se fechava à altura do pulso e como o braço ficara esticado, não conseguia erguer o braço para desencaixar a mão da fenda. Naquele momento, ainda não tinha se dado conta da real gravidade da situação. Tentou com a mão direita alcançar uma outra fenda, que permitisse erguer o corpo e, assim, desprender a mão esquerda. Nada! As fendas estavam fora do seu alcance. Com os pés tentara inutilmente uma depressão na rocha, capaz de sustentar o seu corpo. Nada.
Fala o Narrador ao jornalista Cristobal Bernardo:
— Meu caro rapaz, quando as primeiras tentativas falharam, vi que não restava outra coisa se não me acalmar e me colocar a raciocinar. Não posso precisar, mas devo ter estudado a situação por mais de oito horas. Meu braço erguido, já estava cansado e todo o meu peso forçava o pulso, que estava preso na fenda. Conjeturava sobre a possibilidade de Alquimíades retornar, acompanhado de nossos companheiros de aventuras. Gritei desesperadamente por auxílio. O som formava um grande eco nos diversos salões.
Nada, mais de doze horas havia passado. Por movimentar o pulso preso à rocha, na tentativa de soltá-lo, este já se encontrava ferido, o sangue coloria a rocha preta de vermelho-escuro. Naquele momento, a sede e o cansaço eram evidentes, o que fazia com que o desespero aumentasse cada vez mais.
— Meu caro, Bernardo, por eu ser um materialista, não acreditava em milagres. Por isso, cuidadosamente estudava a possibilidade que eu tinha de ser salvo por ajuda de outrem. Conhecia o Professor Alquimíades, sei que somente retornaria após haver encontrado nossos companheiros, ou no último momento da chegada dos que ficaram no alto, o que ocorreria dentro de oito dias aproximadamente. Era indubitável que eu tinha que tomar alguma providência, antes que o cansaço, a sede e o desespero me derrotassem. Após demorado estudo, concluí que não seria salvo por meios externos, que a única possibilidade de salvamento era por meus próprios meios.
— Meu caro jovem, até aquele momento, não tinha reparado no obvio, a carta, a primeira carta que me recomendou levar sempre comigo, anestésico, uma serra e materiais de primeiros socorros.
Minhas lembranças, naquele momento de desespero e angústia, me levaram até o estranho que conhecera quando ainda tinha tenra idade. Veio em minha mente aquelas cenas. O estranho retira do bolso um envelope pardo e o entrega a mim e diz: “Guarde-o e somente tome conhecimento do seu conteúdo na data que está escrita no endereçamento. Se por qualquer motivo, você ou outra pessoa tomar conhecimento prematuramente, o que está escrito não fará sentido. Dessa forma, é aconselhável que o guarde até a data estabelecida”. Sim, agora percebo, esta situação fora prevista pelo estranho. Como ele sabia o que iria acontecer neste momento? Tudo me levava a perceber o que irremediavelmente teria que fazer, mas me parecia absurdo, mas evidente. Sim, não havia a menor dúvida, eu tinha que amputar o meu braço. Tinha que mentalmente organizar as ações que teria que desenvolver, eliminar definitivamente todas as hipóteses de sair daquela situação, sem a necessidade de amputar o meu braço. Para retirar a mão da fenda que se alargava para cima, obrigatoriamente, teria que subir o meu corpo por inteiro, pois o braço preso estava estirado e eu mal encostava os pés no solo firme. Para erguer o corpo inteiro teria, ou com a mão direita suspender o corpo, ou ter um degrau que possibilitasse introduzir, no mínimo, um dos pés, erguendo o corpo. Nada disso era possível. Ao nível dos pés, a rocha preta era lisa e escorregadia, sem nenhuma fenda ou depressão que possibilitasse calçar um dos pés. Nada ao alcance da mão direita, que estava solta, também a rocha era lisa e escorregadia, não havia nenhuma depressão capaz de ser agarrada com a mão e possibilitar a elevação do meu corpo. Nada, todas as possibilidades estavam eliminadas. Passei a planejar friamente a amputação: primeiro teria que anestesiar os diversos músculos do antebraço, com os meus parcos conhecimentos de anatomia. Isso somente poderia ser feito com auxílio da sensibilidade da dor. Sabia que no antebraço havia diversos músculos e que cada um teria de ser anestesiado separadamente, mas como encontrá-los? Sabia, também, que os músculos são presos aos ossos por meio de tendões. O mais sensato seria separar os tendões dos ossos, sem cortar os músculos. Para tanto, teria que cortar a pele ao redor do pulso, porém isso era possível a mais de cinco centímetros da junta. Um torniquete seria necessário, para impedir a saída de grandes quantidades de sangue pelas artérias e veias seccionadas. Tudo planejado, teria que fazer uma sequência lógica das ações. Primeiro, deveria selecionar, com a mão direita, o aparelho de aplicar a anestesia, colocar a agulha nele, para isto tive que utilizar a boca, colocando nela o aparelho, e com a mão coloquei a agulha. Larguei o aparelho, peguei a ampola e segurando-a firmemente, com os dentes, quebrei a sua ponta, a qual me feriu as gengivas. Coloquei a ampola na boca e com a mão introduzi a agulha no seu interior e distendi o êmbolo, sugando o líquido anestésico. Meu antebraço delgado permitia que eu localizasse os músculos principais, e por eles comecei o processo de anestesia mento. Introduzi a agulha de baixo para cima e injetei o anestésico. Esperei por alguns segundos e comecei a procurar a sensibilidade, introduzindo a agulha na pele. E assim procedi, até que não havia mais nenhuma sensibilidade no antebraço. Apliquei um torniquete, logo acima de onde iria seccionar. A atadura fora amarrada, com certa folga, e logo o aparelho de injeção foi colocado sob ela e torcido, para fechar o torniquete. Assim que estava apertado o suficiente, o aparelho foi enfiado sob o torniquete, ficando ali preso. Agora vinha a parte mais difícil: com a lâmina, fiz um corte ao redor do final do antebraço, alguns pontos ainda estavam sensíveis, o sangue correu abundantemente, encharcando a camisa que se encontrava com a manga arregaçada. Assustei-me, mas, logo em seguida, diminuiu, quase parando o sangramento, o que significava que o torniquete estava em perfeito funcionamento. Aprofundei o corte, a lâmina rompia a carne até os ossos, a pele e a carne tinham sido seccionadas, restando apenas os dois ossos. Guardei a lâmina e peguei a serra, que era pequena e manual, utilizada em corte de ferrosos, mas que servia para a finalidade. O primeiro osso foi serrado e logo em sequência o segundo. Estava finalmente livre. Puxei a pele e os tecidos de forma a cobrirem os ossos. Fiz uma cobertura apertada com gases e ataduras, cobri tudo com espessa camada de esparadrapo. Fui aliviando o torniquete, com muito cuidado, pois o sangue iria irrigar a parte seccionada na amputação. Nada sentia, pois a anestesia era recente. A maior preocupação que tinha no momento era de haver perda exagerada de sangue, o que não aconteceu.
Combalido pelo sofrimento e pelas contínuas decisões que havia tomado, me prostrei sobre a mochila, peguei o cantil e tomei moderados goles de água. A exaustão tomara conta do meu ser e, assim, o sono chegou e eu dormi não sei quantas horas.
Ao acordar, logo procurei a existência de sangramento junto ao braço amputado. Verifiquei que o sangue que encharcara as ataduras tinha secado. Me pareceu que tudo estava sob controle. De imediato, procurei entre as minhas tralhas, analgésicos e anti-inflamatórios, como comprimidos a base de diclofenaco de potássio. Encontrei uma caixa contendo duas cartelas com vinte drágeas, cada uma. Logo em seguida, encontrei quatro caixas, contendo, cada uma, doze comprimidos à base de propifenozona, cafeína e paracetamol. Era tudo o que eu queria. No entanto, sabia que a dor iria ser forte ao passar o efeito da anestesia local que, dada a quantidade, me tornara sonolento. Agora tinha que me preocupar com o braço amputado. Sabia que deveria fazer o mínimo de exercício possível. Do local onde me encontrava, podia ver a mão amputada, pálida, sem uma gota de sangue, pois este tinha escorrido pela parede escura da rocha estratificada. Ficaria lá, pois se algo me acontecesse antes do retorno de qualquer tipo de salvamento, saberiam por certo o que havia acontecido. Preparava-me para o pior: a dor, sem dúvida, seria insuportável, com a passagem do efeito anestésico. Sabia que a minha mente era poderosa, poderia me salvar ou me matar, dependendo apenas de como eu a induzisse. Se pensasse no pior, este fatalmente iria acontecer, mas se condicionasse a minha mente de forma a rechaçar quaisquer pensamentos negativos e a alimentasse com pensamentos positivos, certamente que por ela seria ajudado.
Passei a enviar para o meu cérebro as seguintes mensagens: “tudo vai dar certo, a dor será mínima, o processo de cicatrização será rápido e total, não haverá dor que não possa suportar” e assim por diante. Fui repetindo estes pensamentos, pois sabia que se convencesse o meu cérebro de que tudo daria certo e que não sentiria dor, isso por ele seria realizado.
Preparei-me para convalescer, arrumei uma cama da melhor forma possível, juntei ao pé desta o recipiente com água potável, todo o estoque de comida e também os remédios. Tinha o propósito de permanecer quase que imóvel até que chegasse socorro, que poderia ser o retorno do Professor Alquimíades ou o salvamento vindo da superfície. Considerava o fato de não haver contaminação de espécie alguma naquele local ermo, cuja única vida que havia era a minha.
Naquele torpor, provocado pelos últimos acontecimentos, meus pensamentos me levaram até o Professor que eu havia conhecido, quando tinha apenas 10 anos. Embora esforçasse minha mente, não conseguia formar a sua imagem. Destacava-se o fato de que ele, como eu agora, não possuía a mão esquerda. Como sabia ele, há cinquenta anos atrás, o que iria acontecer neste momento? De uma coisa eu tinha certeza: se não fosse ele, eu ainda estaria preso àquela parede e com toda a certeza morreria por inanição, ou antes, por sede. Ele me salvou há cinquenta anos atrás. Por mais que pensasse, nada concluía. Comecei a fazer as contas, possuía quarenta comprimidos de diclofenaco de potássio. Poderia tomar até cinco comprimidos por dia, mas lembrava-me de que os deveria tomar de oito em oito horas. Tinha o suficiente até que o salvamento chegasse. Os comprimidos para dor, poderiam ser tomados até seis por dia, ou seja, de quatro em quatro horas, mas os tomaria somente quando a dor fosse forte, pois sabia empiricamente que o efeito cada vez seria menos eficiente.
CAPITULO VIII
A PROCURA:
Enquanto Cizi passava pelo drama da amputação e convalescia, seu parceiro e amigo, Professor Alquimíades, remava sem parar. Suas mãos estavam com a pele desfiando, por permanecerem muito tempo molhadas, o que o obrigou parar, a alguns quilômetros do local de onde partira, à procura de Lilanice e Noragô. Exausto, se alimentou e dormiu encostado a um banco de rocha que margeava a escarpa. Ao despertar, não sabia quanto tempo dormira, mas pelos sinais achava que deveria ter, no mínimo, dormido, por mais de oito horas ininterruptas, pois as mãos haviam secado e as rugas desaparecido. Olha para um lado e não vê o fim da escarpa, para o outro também nada vê. Olha para o rochedo e, ao longe, há um pedaço de rocha negra, que se parecia com um pedaço de madeira, porém, como era muito grande e pesada, não seria possível utilizá-la como remo a não ser que a quebrasse. Apanhou-a e com um golpe certeiro e quebrou-a ao meio. O peso ainda era grande, mas seria possível com ela remar.
Alquimíades coloca os flutuadores novamente na água e parte. Trabalho incessante, só parava para se alimentar e descansar, mais ou menos de quatro em quatro horas. Já havia passado mais de três dias de procura, quando ele viu ao longe alguém se aproximando a nado, empurrando um flutuador. Era Noragô, que, ao se aproximar, disse:
— Louvado seja Deus, por haver lhe encontrado, Professor Alquimíades.
Os homens se abraçaram e procuraram uma saliência no rochedo para saírem da água com seus flutuadores. Noragô perguntou pelo Professor Cizilião. Alquimíades informou que o professor ficara fazendo alguns reconhecimentos em umas furnas e que ele saíra a procurá-los. Perguntou o Professor Alquimíades por Lilanice. Noragô ficou em silêncio por alguns minutos, seus olhos se enchem de lagrimas, e diz:
— A professora se juntou ao seu esposo. Ela nos abandonou.
— Como? — perguntou o Professor Alquimíades.
— Quando o paraquedas abriu, logo em seguida, uma das amarras se desatou, formando um escapamento de ar lateral, que impulsionou o paraquedas, aumentando a velocidade de descida. Ele ficou descontrolado, o que fez nós nos distanciarmos de vocês. Não conseguimos soltar os materiais mais pesados, íamos bater no rochedo. Eu disse à Professora Lilanice que pulasse na água, antes de batermos. Eu pulei, mas ela não o fez, bateu no rochedo e despencou, batendo diversas vezes na encosta, até que seu corpo chegou à água. Nadei o mais rápido que pude, mas quando a alcancei, já estava morta. Nada pude fazer para salvá-la. Sabia que a distância que estava de vocês era imensa, dada a velocidade da descida. Mesmo assim, gritei por mais de uma hora, até que minha garganta não mais aguentou, e aí me calei. Recuperei praticamente tudo o que leváramos de suprimento. Como vocês, fiz um flutuante com um pedaço de corda amarrei uma grande pedra ao corpo da Professora Lilanice e a lancei na água. Fiz algumas orações antes, o que, para mim foi a melhor maneira de sepultar o seu corpo nesses confins do mundo.
O Professor Alquimíades, após ouvir atentamente o relato de Noragô, colocou a mão direita sobre seu ombro, em sinal de respeito, e disse:
— Meu caro, Noragô, nós, os aventureiros, estamos sujeitos a esses acontecimentos. Essa é nossa sina. Li certa vez, não sei onde, que os aventureiros, são pessoas contraditórias. “Quando estão vivendo uma aventura, nesse momento, gostariam de estar em sua casa, em frente à lareira, a tomar um copo de vinho. E quando estão em casa, ao lado da lareira, tomando um copo de vinho, gostariam de estar vivendo uma aventura.” Assim foi com a nossa finada amiga, pois nunca saberemos se ela não pulou por medo, ou porque encontrara a oportunidade de, em sua crença, juntar-se a seu querido esposo, que também morrera tragicamente, segundo confidenciou ao nosso caro amigo Cizi. Mas, a vida continua. É aconselhável que retornemos ao encontro do Professor Cizilião. Já faz, pelos, meus cálculos, mais de três dias que nós nos separamos. Se nos revezarmos no remo, podemos levar dois dias para reencontrá-lo, já que estamos completamente desorientados, pois nesse ermo lugar nada que tenha magnetismo ou onda funciona. Os relógios todos estão parados. Com o sol, não podemos contar com ele, sempre está no mesmo lugar, com pequenas variações.
Uniram seus flutuadores, enrolaram a lona do paraquedas, na forma de um colchão, colocaram-na sobre os flutuadores, amarraram firmemente com as cordas disponíveis, ficando o arranjo na forma de uma “banana Boat”, montaram como se monta um cavalo e começaram a remar, utilizando o pedaço de pedra.
Cizi permanecia à espera de Alquimíades ou do salvamento, que viria da superfície. Já passava o equivalente há cinco dias, nos quais havia consumido religiosamente os remédios que havia separado, juntamente com uma dieta de enlatados e empacotados. Teve alguma febre, mas nada de muito grave, pois naquele local, que nem vegetação existia, também não haveria de ter qualquer contaminação bacteriológica, salvo as que ele próprio carregava no seu organismo. A cobertura do ferimento havia secado. A dor, sem o anestésico, ainda era forte, porém suportável, ficando amena com o efeito do analgésico. Quando menos esperava, viu surgir, na entrada do salão em que se encontrava, a figura ímpar de Alquimíades, que se fazia seguir por Noragô. Quando o viram deitado sobre as tralhas, correram para junto dele. Alquimíades disse:
— O que houve meu amigo, como estás, conta-me tudo, nos mínimos detalhes.
Noragô se ajoelhou ao seu lado, abraçou-o e disse:
— Vejo que também aqui houve uma desgraça, mas tenho de lhe informar que perdemos a nossa saudosa Lilanice.
— Conta-me tudo, logo após te contarei minha desventura. — disse Cizi.
Noragô contou o que acontecera quando da queda, frisando que a Professora tivera a oportunidade de pular, mas não sabe se, por medo ou por vontade própria, não se lançou à água. Cizi lhes contou o que havia acontecido. Ambos não entenderam como ele tinha, naquele momento, tudo do que necessitava, para proceder ao seu desprendimento do rochedo. Respondeu que algum dia obteria a resposta, que naquele momento não a tinha, pois ali estava preocupado com a possibilidade de resgate, e que dava por malograda a expedição, uma vez que, pelos seus cálculos, já estavam no décimo dia. E se nas próximas vinte e quatro horas não ocorresse o resgate, seria a causa o efeito das "Zonas de Anomalias Geomagnéticas" (ZAG), que impediriam a descida de um helicóptero ou qualquer outro objeto voador, que necessitasse de qualquer forma de magnetismo.
— Meu caro Bernardo, realmente, eu tinha sobradas razões para assim pensar. Posteriormente, fiquei sabendo que, o helicóptero, que Uguro havia contratado, fizera diversas tentativas para descer. O piloto achou que o risco de entrar na densa bruma, sem a orientação dos instrumentos, seria uma imprudência descabida. Já estávamos no décimo primeiro dia, se as precárias condições de informação temporal que tínhamos, estivesse certa. O resgate não viria, os viveres e os medicamentos já estavam em seu final. Como se não bastasse, havíamos perdido nossa observadora e minha mão esquerda. Teríamos de perder nossas vidas naquele lugar onde havia apenas água e minerais. Não, não, isso não iria acontecer. Propus aos meus dois colaboradores que nos dedicássemos a pensar e planejar uma forma factível de nos salvarmos, retornando ao que chamávamos de superfície, pois considerávamos que estávamos em um buraco.
O nosso ufólogo, Professor Alquimíades tomando a palavra, assim se expressou:
— Nós, os aventureiros, estamos sujeitos a perdas. Sabemos disso e, mesmo assim, não deixamos de nos aventurar. Mas, analisando nossa real situação, eu lhes asseguro que nos encontramos dentro de uma ZAG. Não devemos nos enganar e esperar que o salvamento venha da superfície. A cada hora que permanecermos neste local, ele nos cobrará um alto tributo e o final dos suprimentos que trouxemos está próximo. Logo estaremos tão fracos que não teremos a mínima possibilidade de salvamento. Por eliminação, devemos buscar uma forma de sairmos dessa situação. Analisemos: qual a possibilidade de escalarmos as estepes?
Todos concordaram que não havia nenhuma possibilidade e continuou Alquimíades:
— Qual a possibilidade de sairmos através de uma corrente submarina, que certamente nos levaria ao oceano?
Fomos unânimes em considerar que não havia nenhuma possibilidade. Continuou:
— Qual a possibilidade de sairmos voando?
Eu olhei para Noragô, logo após para Alquimíades, todos se entreolharam e permaneceram pensativos, quando Alquimíades disse:
— Sem dúvida, esta é a única possibilidade.
Cizi, tomando a palavra, disse:
— Noragô, faça o favor de fazer um inventário de tudo o que temos disponível!
Ele se levantou do improvisado berço, o que não fazia há vários dias. De imediato, ficou tonto e quase desmaiou, seus companheiros o ampararam. Sentou em um dos tonéis. Noragô, com uma expressão de quem havia entendido perfeitamente a mensagem, levantou e se pôs organizar os materiais. Em primeiro lugar, separou os dois pedaços de lona que serviram de paraquedas. Logo a seguir, tudo o que havia de cordas de diversas bitolas e tamanhos. E assim, sucessivamente, eis o resultado do inventário feito por Noragô:
415m de corda das mais diversas bitolas;
234m de fio de nylon de várias espessuras;
2 lonas nas dimensões de 12m por 12m;
4 tonéis com capacidade para cem litros;
oitenta litros de óleo combustível;
vinte e cinco metros de arame de três mm de diâmetro;
Uma panela com capacidade para vinte litros;
Dois pacotes com fósforos;
Dois isqueiros;
Uma faca de caça.
— Vamos fabricar um balão e sairmos daqui. - disse Cizi, com tal convicção, que ambos permaneceram mudos, por alguns instantes.
Alquimíades, com uma expressão de entusiasmo, cerrando os punhos, disse:
— Mãos à obra, Noragô.
Procurou entre os pertences uma caneta e um pedaço de papel e passou a esboçar o desenho de um balão, que, em breves instantes, estava pronto. Com uma das lonas, que servira de paraquedas, faria a parte superior do balão, as outras usaria para fazer as laterais, que formariam o tronco de cone.
— Meu caro Bernardo, tudo o que queríamos naquele momento era sair daquele local, nem que, na tentativa, perdêssemos nossas vidas. Às vezes, esse é o destino dos aventureiros. Se fosse o nosso, mesmo assim, estávamos satisfeitos, pois preferiríamos uma morte rápida a nos ver morrer uns aos outros de inanição.
O trabalho foi árduo. Alquimíades e Noragô discutiam os detalhes. Cizi, dentro de suas limitações, apenas observava e dava a sua colaboração, supervisionando os serviços. Utilizando um pedaço de arame para furar a lona e passar os fios de nylon, costuramos os pedaços de lona, formando um balão razoável. Pelos cálculos de Alquimíades, seu tamanho era mais do que o necessário para nos elevar. O grande problema que se apresentava era de como iríamos controlar a queima. Se fosse muito violenta, o balão subiria rápido demais e seu controle seria difícil. Se a queima fosse muito pequena, não teria força para elevar o balão e sua carga.
Convencionaram que o balão seria experimentalmente testado dentro do salão, em uma parte que tivesse altura suficiente. Alquimíades, com ar de preocupado, cofiava a barba. Noragô ia falar com ele, quando Cizi lhe fez um sinal para que não o fizesse. Por breves instantes, Alquimíades. permaneceu pensativo. E, finalmente, deu um soco com a mão direita na esquerda, e disse:
— A chama tenderá a aumentar cada vez mais até a completa queima do combustível, pois o calor irá aquecer gradativamente as bordas do recipiente e o próprio combustível irá se transformar em vapor, aumentando o calor progressivamente. Temos que achar uma maneira de controlar a combustão. E isso é simples: vamos retirar o fundo de um dos tonéis, obtendo um disco metálico. Este disco será dividido em três gomos e utilizando pedaços de arames, faremos três dobradiças, de forma que possamos aumentar ou diminuir a saída dos vapores de combustível, e assim, podemos aumentar ou diminuir o fogo. Mão à obra, senhores! — bradou Alquimíades.
Para o preparo do queimador, se assim poder-se-ia chamar o aparato que queimaria o combustível, foram utilizados dois tonéis: de um deles foi retirado o fundo, para se fazer os gomos que controlariam a queima, do outro foi retirada a tampa, para que fosse colocado o “queimador”. Para o teste, encheram o tonel com água até faltarem dez centímetros para derramar, colocaram o combustível e atearam fogo. Para controlar o afastamento dos gomos, em cada um foi amarrado um pedaço de arame e, na à medida que o fogo aumentava pelo aquecimento, aproximavam o fechamento dos gomos, o que logo fazia com que diminuísse.
O trabalho fora árduo, mas os companheiros deram por concluído o protótipo. Agora tinham que testá-lo. Noragô escalou a parede de rocha negra, bem ao lado donde estavam presos os restos da mão de Cizi, a qual não se havia deteriorado e sim secado, apresentando uma cor escura e enrugada. Cizi pediu a Noragô que a deixasse naquele lugar, para demonstrar o perigo ali existente. Noragô, no topo da murada, lançou a corda que puxaria o balão pela parede de rocha estratificada. Alquimíades colocaria o queimador e, com o auxílio do tubo que sobrara do tonel, de onde haviam tirado o fundo e a tampa, juntou a boca do balão ao redor do tubo. Colocou alguns litros de óleo combustível no “queimador” e ateou fogo. O gás quente começou a entrar no balão e a inflá-lo, até que ficou completamente cheio, momento em que o pouco combustível que haviam colocado no “queimador” terminara. Amarraram à boca do balão para que se mantivesse cheio. O teste tinha sido satisfatório.
Pelos planos, teriam que viajar presos a uma corda na lateral do balão. Seu perímetro foi dividido em três partes proporcionais ao peso de cada um, ficando, dessa forma, com o balão equilibrado. Com os recortes de lona que sobraram, Alquimíades e Noragô fizeram uma espécie de balanço, que foram presos às laterais do balão. Um pedaço de arame foi ligado às tampas em dobradiça, pois cada um controlaria uma das tampas. Finalmente, tudo estava pronto. Enquanto os companheiros trabalhavam, Cizi pensava e ia dando as coordenadas seguintes. Agora teriam que passar o balão pela abertura na estepe, na qual a claridade entrava e iluminava todo o salão. Os gases que estavam encerrados no balão, a essa altura dos acontecimentos, já estavam frios e seu volume havia diminuído, o que facilitou a passagem pela abertura. Com o balão preso a uma corda e a uma estalactite, procederam ao enchimento total do balão. Para tanto, utilizaram uma panela para queima de uma pequena fração de óleo combustível, apenas o que acharam suficientes para inflá-lo totalmente. Quando a corda estava esticada, foi fácil verificar a força que tinha o balão, capaz de elevar a todos.
O aparato final fora instalado, o fogo fora aceso e as tampas, na mínima abertura, mantinham o balão suspenso. O primeiro a tomar posição de voo foi Cizi. O balão se inclinou, mas Noragô e Alquimíades o mantiveram estabilizado. Logo a seguir, Alquimíades tomou a sua posição e finalmente Noragô, que, após tomar a sua posição, cortou a corda que prendia o balão à estalactite. A partida foi rápida. Noragô, com as mãos, empurrou o balão para que este se afastasse do rochedo, o que aconteceu. Subiram mais rápido do que desceram. O balão se afastara do rochedo e o equilíbrio era satisfatório. Cizi sugeriu que colocassem mais aquecimento, para assim aumentarem a velocidade, receoso de que o combustível fosse faltar, antes de atingirem a superfície. Atravessaram um denso nevoeiro, o mesmo que haviam encontrado na descida. O frio começava a chegar, sinal de que já se encontravam próximos da superfície. Pela diferença térmica, a velocidade aumentara muito, o que os obrigou a diminuir a queima. Finalmente, tudo estava branco e o frio era insuportável. Embora estivessem preparados para ele, assim mesmo era irresistível, pois o vento na superfície os empurrava para fora da fenda, sendo possível ver o gelo sob eles. Fecharam quase que por completa a queima e o balão começou a perder altura, mas seu deslocamento lateral continuava. Cizi solicitou aos companheiros que fechassem toda a abertura de queima, receava que, ao colidirem com o solo, houvesse um incêndio. O fogo logo se extinguiu, aumentando a velocidade da descida, que a essa altura estava a apenas cinquenta metros do solo. O mergulho na neve foi inevitável. Foram quase sepultados na macia neve. A sorte estava a seu lado, todos incólumes. Procuram os comunicadores, que agora funcionavam relativamente bem e se comunicaram com Uguro.
A bússola também funcionava, deram sua localização. Uguro já partia com um helicóptero à procura. Não sabiam quanto tempo levaria para serem resgatados. O frio era muito, o que os obrigou a improvisar com o balão um iglu e ali se mantiveram aquecidos até ser localizados por Uguro. No helicóptero, Noragô foi deixado no acampamento com os demais, para providenciar o retorno da missão, enquanto Cizi e o Professor Alquimíades foram levados para a cidade de Porto Alegre, onde Cizi foi hospitalizado, em um centro traumatológico do Hospital das Clinicas. A surpresa dos médicos ao examinarem seu braço fora inigualável. Não sabiam explicar como o processo de cicatrização tinha ocorrido tão rápido, pois fazia apenas dez dias desde a amputação. Foi submetido a uma cirurgia reparadora e, após uma semana de internação, foi liberado, mantendo cuidados médicos nos próximos três meses.
No noticiário apenas saiu uma nota lacônica, informando o regresso prematuro da equipe de exploradores do Polo Sul, devido à ocorrência de um acidente. Apenas isso e nada mais. Agora restabelecido, pensava sobre tudo o que havia acontecido.
CAPÍTULO IX
O NAMORO DE CIZI
Era um baile infantil na terça-feira de carnaval. Ela pulava no salão, com suas amigas, acompanhando o rodear dos foliões, no salão imenso do Clube Operário. Cizi a cuidava de soslaio e a seguia ao redor da pista de dança. O salão estava ornamentado com motivos carnavalescos, muita serpentina e confetes cobriam o chão. Adultos pulavam com crianças nos ombros. A meninada se divertia, cantando as marchinhas de carnaval, como: Índio quer apito, Jardineira, Nega maluca e tantas outras.
De repente, ficaram lado a lado. A mão de Cizi segurou a dela, que se virou para ver quem era o atrevido que lhe segurara a mão. Seus olhos se encontraram, ambos sorriram, numa intensa troca de olhares. Pulando e cantando as marchinhas de carnaval de mãos dadas, permaneceram até o final do vesperal. A orquestra cessara de tocar, alguns foliões permaneciam no salão desejosos de que a folia continuasse. As mãos se soltaram, quando sua amiga a puxou pelo braço. Ele permaneceu parado enquanto ela se afastava, olhando de vez em quando para trás.
Os anos se passaram. Os dois se encontravam a cada ano, nos bailes de carnaval. Foi no carnaval do ano de 1959, ela com 15 anos e ele com 17, que, em um baile noturno, de segunda para terça-feira, que se enamoram. No término do baile, permaneceram de mãos dadas, ele, muito tímido, não falava, acompanhou-a até a sua casa, junto com os demais membros da família, sem nada dizer.
O sábado se aproximava, haveria o enterro dos ossos e ele pensava:
— “Certamente, lá estaria ela”, assolava o seu pensamento: Mas a dúvida
—” Será que ela estará no baile?”
Sim, lá estava ela, ele a viu logo na entrada. Aproximou-se, cumprimentou-a, bem como a sua mãe. Ela logo lhe enfiou o braço e assim permaneceram. Para iniciar a conversa, ele disse:
— Achava que não viria.
Ela respondeu:
— Não perderia este baile por nada deste mundo, estava louca para te encontrar, pois não sei ainda teu nome?
— Eu me chamo Cizi, isto é, Cizilião Cristóvão da Rocha, e tu? Como te chamas?
— Eu me chamo Marialba.
Assim, sem grandes frases, sem muito falar, começaram o namoro. Às quartas, sábados e domingos, ele ia visita-la. Ficavam sentados no sofá na sala. Sua mãe permanecia na varanda, porém cansada pelo trabalho diário de dona de casa, pegava no sono e roncava. Os dois apaixonados aproveitavam a oportunidade para trocar longos beijos e intermináveis amassos. Com o rádio ligado na emissora local, ouviam um programa de músicas e poesia.
Foi o melhor período de sua vida. Ele amava muito Marialba e ela, por sua vez, também o amava.
—SOLDADO CIZILIÃO
Primeiros dias de julho de 1961. Cizi foi fazer exame médico para incorporação ao serviço militar obrigatório. No ambulatório médico, uma fila de candidatos, todos nus, segurando as roupas nas mãos, aguardavam para o exame médico. O capitão médico, sujeito bonachão, examinava um a um. Os aprovados se submetiam à vacinação, que era aplicada pelo cabo enfermeiro, que parecia ter prazer em aplicar a tremenda injeção. O quartel ocupava uma quadra inteira. A edificação de dois andares e o térreo circundavam o pátio, onde ocorria a parada diária, com revista à tropa, pelo coronel comandante. Na parte frontal do prédio principal, havia uma praça, onde se fazia a preparação física, com campo de futebol e quadra de basquete. Em uma das laterais da pracinha, havia uma escola estadual de primeiro grau, ao lado desta se encontrava instalado o pombal, local, como diz o nome, onde eram criados pombos correio para uso da tropa. Na parte dos fundos do quartel, do outro lado da rua, se localizava a garagem, onde eram guardados os veículos e os equipamentos necessários às manobras de campo. Como primeira instrução, foram colocados em uma sala de aula. Ao Capitão médico coube os primeiros ensinamentos aos recrutas, principalmente, aos que vinham do interior. Ele iniciou prevenindo os recrutas sobre as doenças venéreas. Passou a demonstrar como se utilizavam os preservativos. Demonstrou também os cuidados de higiene corporal, mostrou fotos e desenhos das principais doenças venéreas daquela época.
A vida da caserna, de início, foi dura. Os instrutores eram severos, a ordem unida era diária. Qualquer falha ou deslize os recrutas eram instados a pagar com exercícios físicos, como apoio ao solo. Certo dia, a bateria foi dividida em três grupos, ficando cada grupo com, aproximadamente, setenta homens. O agrupamento estava sendo comandado pelo 2º sargento Munhoz. Tipo durão. Seu berro ecoava longe. O grupo marchava pelas ruas da cidade. Cada elemento portava um mosquetão com baioneta calada. A tropa marchava ao longo da rua de calçamento em paralelepípedo regular.
— Um, dois, esquerdo, direito, firmar cadência.
— Dizia o sargento aos berros.
A tropa passava por duas moças que olhavam e riam. Um dos soldados disse uma piada de mau gosto para as moças. O sargento ouviu e deu o comando:
— Agrupamento, alto. Agrupamento, sentido. Agrupamento, apresentar armas.
Permaneceram em posição de apresentar armas, por mais de cinco minutos, o tempo necessário para que as moças se afastassem do grupo. Nova voz de comando ecoou:
— Agrupamento, descansar armas.
O sargento começou dizendo:
— Quero saber quem foi o engraçadinho que soltou piadinhas para as garotas?
O silêncio foi profundo na tropa, que nem se mexia. O sargento, andando entre as fileiras, dizia:
— Se o engraçadinho não tem coragem de se acusar todos pagarão. Agrupamento, sentido. De arma suspensa, marchar.
Estavam a mais de dez quadras do quartel. A posição de arma suspensa consistia em suspender o mosquetão, que pesava cerca de três quilos, apenas com a mão direita, fazendo um ângulo de 90º entre o braço e antebraço. As primeiras quadras tudo bem, porém, na medida em que o percurso avançava o peso do mosquetão aumentava, ninguém falava nada e o grupo todo sofria calado. Os mais fracos, não aguentando mais o peso e a posição, chegavam a arrastar a coronha no chão, outros tentavam auxiliar com a mão esquerda a sustentação do mosquetão.
De repente, um dos soldados gritou:
— Eu sou o engraçadinho.
De imediato, se ouviu a voz de comando:
— Agrupamento, alto.
— Descansar armas.
O alívio foi total.
Passaram-se mais de cinco minutos, todos em silêncio, esperando a total identificação do culpado, quando o sargento disse:
— Não quero saber quem é o engraçadinho. A tropa deu uma cabal demonstração de companheirismo. O engraçadinho, para poupar a tropa, se acusou, o que para mim isso é o suficiente. Porém, soldados, eu lhes aconselho a não procederem mais de forma despeitosa para com os civis, mormente quando se tratar de senhoritas, que podem ser suas irmãs.
E, assim por diante, levando mais de dez minutos de preleção. Os soldados ouviram em silêncio e, durante todo o tempo que servira, nunca mais houve tal ocorrência.
No fim da tarde, sempre havia formação de todas as baterias, para a leitura do boletim diário. O que mais lhes interessava era a quarta parte, a da ordem e disciplina. Era proferida pelo sargento diante Muchon, com um vozeirão que estremecia tudo e fazia tremer os que deviam ficar detidos ou de pernoite para responder à revista. No entanto, o dito sargento era conhecido de Cizi, residindo na mesma quadra que ele e conhecendo-o desde menino. Acreditava Cizi que, por isso, fora escolhido para trabalhos burocráticos, na sargenteação da Bateria de Comandos e Serviços.
JÂNIO QUADROS:
Jânio Quadros, o homem da vassoura, assumira a presidência da República em 31 de janeiro de 1961, herdando de Juscelino Kubitschek um país em acelerado processo de concentração de renda e inflação. Com o vice-presidente João Goulart, da UDN, conseguira chegar ao poder. Isso foi conseguido graças ao estilo ímpar de Jânio, que constituía o chamado populismo caricato: atacava as elites com denúncias de corrupção e acenava em defesa das camadas oprimidas.
Uma vez empossado, Jânio tomou medidas um tanto controvertidas. A proibição do uso de biquínis nas praias foi o maior exemplo desses atos governamentais. No plano externo, exerceu uma política não alinhada. Apoiou Fidel Castro, diante da tentativa fracassada de invasão da Baía dos Portos pelos norte-americanos. Em 18 de agosto de 1961, condecorou o ministro da indústria de Cuba, Ernesto "Che" Guevara, com a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, a mais alta comenda brasileira. Além disso, Jânio rompeu com o partido que o elegeu, a UDN, provocando enorme insatisfação.
No dia 25 de agosto, 10h30min da manhã, diversos soldados, a convite do padre capelão, se encontravam assistindo a uma missa, pela passagem do dia do soldado, quando, no púlpito, o vigário capelão proferia seu sermão, dizendo:
— “O grande paradigma do soldado brasileiro, Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias, nasceu em 25 de agosto de 1803”.
Enérgico e inflexível no campo de batalha, foi o militar que melhor representou nossos ideais de brasilidade no cumprimento do dever. “Por isto, a data de seu aniversário é celebrada como o Dia do Soldado.”
De repente, veio a notícia de recolher. Jânio Quadros tinha renunciado, os quartéis estavam em prontidão.
A classe de Cizi não havia passado a pronto, ou seja, não tinham recebido todas as instruções necessárias para o cumprimento do serviço militar obrigatório. Parcas instruções de tiro e defesa pessoal tinham sido ministradas às tropas, que agora estavam em prontidão pelo desencadeamento da crise política, pois quando da renúncia de Jânio, o Vice-presidente João Goulart estava fora do país, em visita oficial à China. O Presidente da Câmara, Ranieri Mazilli, assumiu a presidência como interino, no mesmo dia, 25 de agosto. A UDN e a cúpula das Forças Armadas tentaram impedir a posse de João Goulart, por estar ele ligado ao movimento trabalhista. Os ministros da Guerra, Odílio Denys, da Marinha, vice-almirante Silvio Heck, e o brigadeiro, Gabriel Grún Moss, da Aeronáutica, pressionaram o Congresso para que considerasse vago o cargo de Presidente e convocasse novas eleições.
O governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, encabeçou a resistência legalista, apoiado pela milícia estadual. Em seguida, criou a Cadeia da Legalidade: encampou a Rádio Guaíba, de Porto Alegre e com transmissão em tempo integral, mobilizou a população e as forças políticas para resistir ao golpe e para defender a Constituição. As principais emissoras do país aderiram à rede e a opinião pública respaldou a posição legalista. Em 28 de agosto de 1961, o general Machado Lopes, comandante do 3º Exército, sediado no Rio Grande do Sul, também declarou apoio a Jango.
Com a agitação política, a classe de Cizilião permanecia aquartelada, tirando serviço vinte e quatro por vinte e quatro, ou seja, vinte e quatro horas de serviço por vinte e quatro horas de descanso.
Aquartelados permaneciam os soldados, para não saberem o que estava ocorrendo. Todos os rádios tinham sido recolhidos. Na época, recém havia aparecido o rádio portátil de marca Spika, vindos do Japão, com entrada clandestina pelo porto da cidade de Rio Grande. Havia fortes rumores de que seríamos atacados, pois, os soldados permaneciam inquietos, e não havia qualquer tipo de diversão no quartel. Para passar tempo, os que estavam de folga, permaneciam nos alojamentos, uns lendo “gibis”, outros fazendo exercícios, o cabo corneteiro ensaiava um saxofone, enquanto outros batiam palmas e batucavam nas caixas de fósforos. Por iniciativa do soldado “Cruzeirinho”, que era praticante de boxe, no centro do alojamento, haviam recuado as camas e improvisado um espaço em forma de ringue. Ao centro o “Cruzeirinho” desafiava a todos que se aglomeravam ao redor, quando um incauto vestia as luvas. O Cruzeirinho deixava-o atacar com socos, os quais defendia sem qualquer esforço. Após alguns ataques sem sucesso, o incauto recebia um golpe que o jogava no piso. Logo, Cruzeirinho passava a fazer novo desafio, chamando todos de covardes e maricas. Cizi estava ficando zangado com o desafio, pois na verdade o covarde era o Cruzeirinho, que enfrentava apenas quem não tinha o mínimo conhecimento da arte de boxear. Ao seu lado, estava o duzentos e vinte e cinco, soldado que tinha o número seguinte ao seu que era duzentos e vinte e quatro. Portanto, no alojamento, tinham os armários conjugados. Ambos costumavam fazer a barba com o uso de navalhas. Dirigindo-se ao duzentos e vinte e cinco, Cizi lhe disse:
— Dois, dois, cinco, vou dar um susto no Cruzeirinho.
Saiu e foi até o armário, no outro lado do alojamento, pegou a navalha e voltou para o local onde estava ainda o Cruzeirinho a desafiar os demais soldados. Ao aproximar-se disse:
— Vamos ver se tu tens coragem, seu merda de homem, ou homem de merda!
Parou a sua frente. Colocou a navalha aberta junto à perna direita, espalmada dentro da mão, fato este que demonstrava que ele sabia manejá-la e disse:
— Vamos lá, cada um com sua técnica, tu com as luvas e eu com a navalha. Quero virar tua cabeça para trás.
O Cruzeirinho de preto passou a ficar branco. Correu dizendo que tinha horror de navalha, enquanto os demais o vaiavam.
Em 2 de setembro, o problema foi contornado: o Congresso aprovou uma emenda à Constituição (Emenda n. 4), que instituiu o regime parlamentarista, no qual os poderes se concentram primordialmente nas mãos do Primeiro-ministro, esvaziando sobremaneira os poderes presidenciais. Jango tomou posse, mas sem os poderes inerentes ao regime presidencialista. Os quartéis voltaram à normalidade.
Certo dia, quando estavam namorando, no portão da casa de Marialba, pois Cizi costumava ir buscá-la no serviço diariamente, a filha do bodegueiro da esquina, do outro lado da rua, cantava:
— Namoro na Segunda-feira é coisa!
Cizi soltou a mão de Marialba e disse:
— Vou falar com a tua vizinha.
Atravessou a rua e disse para a guria:
— Queres dar-me alguma coisa e estás com vergonha?
A guria correu para o interior da venda, onde havia vários bebuns, tomando cachaça, e disse ao pai:
— Pai, este homem quer me bater.
De imediato, saíram os bebuns e o pai da moça. Cizi recuou tanto que já estava no meio da rua. Foram socos e pontapés de todos os lados, deitado no chão rolava e dava pontapés em todos os que o atacavam. A surra apenas parou quando a mãe de Marialba se meteu entre os paus d’água e se abraçou a Cizi, que, quando pôde se livrar, correu para dentro de casa.
Eram mais ou menos vinte horas, quando chegou a patrulha militar à procura do soldado que tinha dado alteração. A mãe de Marialba disse que ele tinha ido embora. Enquanto ela falava com o sargento, Cizi saía pela porta da frente da casa da vizinha, disfarçado com as roupas e chapéu do vizinho. Ao sair, disse “até amanhã, dona Maria” e passou pelo lado onde o sargento e os patrulheiros falavam com mãe de Marialba.
Correu para a sua casa e se fardou. Como tinha chovido, rolou na sarjeta, onde corria água suja e se dirigiu para o quartel, apresentando-se à guarda, onde registrou a ocorrência, ficando detido para pernoite.
No dia seguinte, foi chamado pelo capitão comandante da bateria, que o interrogou:
— Soldado! Estou lendo a ocorrência. Você foi agredido por diversas pessoas frequentadoras de um bar.
Na ocorrência não consta se você estava fardado ou à paisana. Veja bem, isso é importante e eu quero a verdade. Entendeu?
Cizi ficou gelado. Tinha de pensar rápido. O que aconteceria se dissesse que estava à paisana? Resolveu dizer a verdade.
— Eu estava à paisana.
— Não, soldado! Você estava fardado. É o que vai dizer daqui para frente. Entendeu?
— Sim, senhor.
Às onze horas foi chamado à presença do comandante do quartel, que era um major, onde também se encontrava o capitão comandante da bateria. Perfilou-se, fez apresentação ao major e permaneceu em posição de sentido.
— Ouvi o relato do comandante de sua bateria. — disse o major.
— Podemos tomar uma das duas atitudes: formarmos um pequeno grupo e ir lá quebrar todo o bar e dar uma surra no bodegueiro ou dar-lhe chá de banco, mediante um inquérito militar. O que é que você escolhe? —perguntou o major?
Cizi ficou numa sinuca de bico, tinha vontade de arrebentar tudo, porém, isso não era prudente e escolheu o chá de banco. O homem foi intimado a comparecer no quartel para dar depoimento às 7h30min da manhã. Compareceu, tendo o comandante da guarda lhe dado um banco para sentar e esperar. Às 11h30min, mandou que ele voltasse à tarde, às treze horas, sem falta. Às dezessete horas, pediu que voltasse no dia seguinte e nesse ritual passara o bodegueiro várias semanas.
Passados alguns meses. Cizi está preso. Estranha sensação de se encontrar atrás das grades. Pensa ...
— Lá fora, nesse momento, está ocorrendo o jogo de basquete entre os sargentos e os oficiais. Na próxima quarta-feira, será à disputa de quem vencer contra a seleção dos soldados e cabos, e eu, atrás das grades. Todo o contingente está assistindo a disputa de basquete. No quartel, apenas os que estão de serviço e eu na cadeia. Até os presos e detidos estão assistindo ao jogo, menos eu que estou preso. Como isso foi acontecer? Lembro do sargento Muchon, quando eu ainda era um guri. Morava na mesma rua, costumava brincar com a filha dele, até café eu tomava na sua casa. Quando fiz o alistamento, minha mãe lhe pediu para que olhasse por mim no quartel. Ele disse que tudo faria para que eu fosse um bom soldado. Afinal, ele me conhecia desde pequeno. Levou-me para trabalhar na sargenteação, fazendo escalas de serviço e estatísticas. Não sei como isso pôde acontecer? Ele não precisaria mandar me prender só porque eu, brincado, disse que o Inter era uma merda e que não jogava nada. Ele me mandou perfilar e ficar em posição de sentido, eu ri e disse para deixar disso, pois não havia ninguém no momento, só estávamos nós. Aí ele chamou o cabo da guarda e mandou me prender. E aqui estou, como é que eu pude fazer isso? Estou de plantão, ele está de sargento de dia e quando terminar o serviço eu tenho que render a parada, passar o serviço e voltar para a prisão. Amanhã sairá no boletim, na quarta parte, o tempo de prisão, quantos dias ficarei preso. Olho para o relógio, já faz meia hora que estou preso, o tempo não passa. A porta da cadeia se abre, surge enquadrando a porta o cabo da guarda, olha para mim e diz:
— Vamos, tens que te apresentar para o sargento Muchon, imediatamente!
Entrei na sargenteação, atravessei a porta e disse:
— Dá licença, sargento.
Bati continência, fiz a apresentação de praxe e me coloquei em posição de sentido. O sargento, sentado na escrivaninha, escrevendo permaneceu, deixando-me esperar em posição de sentido por mais de dez minutos. Levantou a cabeça, olhou para mim, deu uma risada e disse:
— Isso é para tu aprenderes que em superior e cavalo gordo não se confia. Tudo voltou ao que era antes.
CHEGARA O CARNAVAL DE 1962
A classe passara a pronto, o expediente ficou mais ameno, a instrução mais rara, o carnaval se aproximava. No quartel, uma comissão de soldados solicitou permissão para formarem o Bloco Quebra-Ossos, que há muitos anos não saía no carnaval. Grandes recomendações foram feitas, principalmente, no sentido de que não poderia haver bebedeiras e brigas. Todos os soldados concordaram. O grande gorila, de aproximadamente três metros de altura, com grandes olhos luminosos, fora desentocado dos fundos do almoxarifado. Uma cotização arrecadou dinheiro para comprar cordas de juta, que serviriam para produzir uma espécie de saia de cordas, pois a fantasia era de selvagens que rodeavam o King Kong. Um dos cabos depilou as pernas e colocou um biquíni, uma peruca loura, ficando uma bela mulher, para representar a mocinha que era agarrada pelo tremendo macaco. A bateria treinava diariamente para tocar uma batucada própria dos selvagens. Tudo estava certo. O sargento Volter se responsabilizara pelo bloco. O bloco sairia apenas uma noite e seria a de segunda para terça-feira gorda. Chegara o dia e o bloco estava na rua. O sargento Volter antes mesmo de sair, já estava “mamado”, com o rosto vermelho de tanta cachaça. A primeira parada do bloco se deu no bar da esquina do quartel. No mínimo, cinco litros de cachaça com Coca cola, corria entre os foliões: a bebida quente passava de mão em mão, cada um tomando um grande gole, até que nada mais restou, apenas a notória embriaguez do bloco do gorila: o Quebra-Ossos. O entusiasmo era total, uma corda de 5/8 de polegadas cobria o perímetro do bloco. Já na rua principal do desfile, fizeram uma parada na concentração. Casualmente, havia um bar na esquina, mais uma meia dúzia de litros de cachaça com Coca-cola. Começa o desfile do Quebra-Ossos. O enorme gorila balançava, talvez por estar bêbado, ou para acompanhar a batucada. O bloco já estava no meio do percurso do desfile quando, em sentido contrário, estava andando a patrulha da Brigada Militar. De repente, alguns foliões levantam a corda e colocam a patrulha dentro do bloco e os cercam. A patrulha tenta se defender, mas é sufocada pelo enorme número dos soldados e o tumulto é grande e generalizado. O sargento Volter, aos gritos, pedia para que parassem. O tumulto só parou quando chegou a patrulha do exército, que deu voz de prisão a todos os componentes, que tinham dez minutos para se apresentarem no quartel. No bloco, havia mais de duzentos homens, ninguém iniciou ou tomou parte no ocorrido. Mais uma vez o bloco ficou proibido de sair no carnaval. No entanto, ninguém foi punido.
CIZI E UM SOLDADO CHAMADO BERTUTI
Aprendera a nadar com tenra idade. E quando rapazola, frequentara assiduamente um clube náutico, no qual treinava natação diariamente no canal ao lado do porto, local onde atracavam navios de grande calado.
Na mesma bateria, a CBS (Bateria de Comandos e Serviços), na qual servia, havia um soldado chamado Bertuti. Seu pai era, na cidade, o chefão do jogo do bicho, e também se envolvia com agiotagem, prostituição e outras coisitas mais.
Bertuti, pelo status econômico, no quartel, depois de passar a pronto, sempre pagava um colega de farda para tirar os serviços. Ele era um bom vivam. No entanto, por estar sempre com dinheiro no bolso, emprestava aos colegas que, na maioria das vezes, não o pagavam mais. Por ser um soldado tido como camarada e amigo de todos era muito popular entre a milicada.
Certo dia, se encontraram por acaso na praia do Cassino, mais precisamente na região dos molhes. Jogaram futebol por algum tempo e a seguir embarcaram em numa zorra, que é um carro de trafegar em trilhos, sob a ação do vento em uma vela. Na cabeça dos molhes, desceram da zorra, e começaram a pesca, com o uso de carretilhas, usando como isca baratas da pedra, as quais tinham de pegar nos lugares mais escuros. Para tanto, era necessário procurá-las, andando entre as pedras.
Já haviam pescado diversos papa-terras, quando Bertuti, na ponta de uma grande pedra, escorregou e recebeu uma onda que o atirou no oceano. Bertuti bateu com a cabeça em uma das pedras e perdeu os sentidos. De imediato, quando Cizi percebeu o ocorrido, se atirou na água. A correnteza era grande e puxava para dentro do oceano, as ondas que quebravam nas pedras, no seu retorno, levaram-no cada vez mais para dentro do oceano. Mergulhou e começou a procurar Bertuti. De repente, avistou no topo de uma onda o corpo de Bertuti, que flutuava, nadou como um desesperado até alcançá-lo. Segurou sua cabeça com o braço esquerdo, passado em forma de forquilha, o braço e o antebraço engatando o pescoço de Bertuti, a fim de manter a sua cabeça fora da água. Nadando de costas, pôde perceber que ele tossiu, expelindo parte da água que tinha nos pulmões. Enfim, estava vivo, com um ferimento na cabeça. Por cerca de trinta minutos, permaneceram flutuando indo oceano adentro. Bertuti recobrara os sentidos, tossia muito, expelindo a água. Nessa situação, ele não conseguia por si só manter-se flutuando, necessitando de uma pequena ajuda que lhe dava Cizi. Eles permaneceram por mais de uma hora flutuando, até que ao longe avistaram um barco pesqueiro que se aproximava. Estavam salvos e foram recolhidos. Bertuti completamente recuperado, dizia:
— Vi a morte de perto! É bicho feio.
Cizi, agora tranqüilo, repousava sobre umas cordas e lonas no convés. O barco pesqueiro levou-os até o entreposto de pesca. Bertuti telefonou a seu pai, que logo foi buscá-los. Para Cizi, o caso fora sem grande importância, tinha feito o que deveria fazer, nada mais do que isso. Porém, Bertuti não sentia da mesma forma, estava imensamente grato por Cizi haver salvado a sua vida. Contara ao pai como havia lhe salvado a vida e como ele era bom nadador. Passados alguns dias, Cizi foi convidado a almoçar na casa do Dom Bertuti. Lá chegando, foi apresentado oficialmente à família Bertuti. Dom Bertuti, homem de baixa estatura, cabelos brancos cobrindo toda a cabeça, pois não tinha propensão à calvície, sua mãe, uma senhora clara, cabelos longos, formando um coque na nuca, seus olhos serenos na cor de mel, beijou Cizi na fronte e o chamou de filho. Bertuti, na apresentação, disse:
— Este é o meu amigo, Cizi, a quem de hoje em diante devo a vida.
Dom Bertuti abraçou-o, agradecendo por haver salvado a vida de seu único filho, dizendo que ambos seriam eternamente gratos.
O almoço foi com excelentes pratos, muitos dos quais Cizi nunca tinha comido antes. Foram servidos vinhos de diversas marcas. Provou a todos, não sabendo se eram ou não bons, pois nada conhecia de vinhos.
Durante o almoço, Dom Bertuti, conhecedor profundo da história do município de Rio Grande, contou em detalhes como fora construído os molhes onde havia ocorrido o acidente com seu filho.
Todos ouviam com atenção a explanação de Dom Bertuti. No final do almoço, foram servidos licores, os quais Cizi provou e aprovou todos. Despediu-se dos familiares do amigo e retornou para o quartel.
Daí em diante, Cizi passou a ser um dos melhores amigos de Bertuti, que nunca se esquecia dele para nada. No término do serviço militar, dias antes da baixa, Bertuti o levou até a sua casa. Lá foi recebido por Dom Bertuti, que lhe disse que gostaria muito que ele trabalhasse com o filho dele. Como Cizi sabia o tipo de trabalho, declinou do convite, dizendo que iria trabalhar na capital, pois tinha um convite de um amigo que lhe arrumara trabalho em uma grande metalúrgica. Viu na face de Dom Bertuti que ficara desapontado com a recusa. Seu amigo e colega de farda, Bertuti filho, insistiu dizendo que ele teria um grande futuro trabalhando com eles, mas, mesmo assim não aceitou. Dom Bertuti, quis lhe dar uma generosa quantia para ele iniciar a vida, a qual não aceitou, dizendo que se algum dia tivesse uma grande dificuldade saberia com quem contar. Todos os anos, na data de seu aniversário, Cizi recebia um cartão ou uma carta dos Bertuti, que dizia:
— Feliz Aniversário, querido amigo! Sempre conte com a nossa eterna amizade.
Sempre respondia, contando como andava a sua vida e os principais fatos ocorridos no último ano.
CAPÍTULO X
O SOLDADO CIZI, A VIDA CONTINUA.
Chegara o dia 30 de abril de 1962, dia da baixa. Os soldados trocavam seus uniformes por roupas à paisana. Inúmeras despedidas, abraços sinceros de quem ficara junto por um longo tempo de camaradagem. Alguns jamais se veriam novamente. Bertuti abraçava Cizi e o fazia prometer que manteria contato quando longe. Assim, aos poucos, os agora reservistas deixavam a caserna e voltavam a sua vida privada de civil.
Cizi procurara emprego na cidade de Rio Grande, no decorrer dos meses de maio e junho de 1962. Em não encontrando, resolvera, em julho, viajar para Porto Alegre, à procura de uns amigos que trabalhavam em uma grande metalúrgica. Lá foi recebido com grande amizade e passados alguns dias começou a trabalhar no setor de fundição. De início, na função de desmoldador e esmerilhador, atividades que consistia, com o auxílio de uma marreta, em quebrar os moldes após a fundição, extraindo deles a peça fundida, a qual, com o auxílio de um disco de corte, retirava os canais e rebarbas das peças.
No início, o trabalho era penoso, passados seis meses, passou a moldador. Na função, tinha que preparar a areia verde para fazer os moldes, preencher as caixas com areais cobrindo o modelo, colocação de machos e abertura de canais.
Em maio de 1963, casou com Marialba, na cidade de Rio Grande, em uma cerimônia simples e modesta, que consistiu em uma singela cerimônia no cartório com as testemunhas. Logo em seguida, foram para a estação rodoviária, onde embarcaram para a cidade de Pelotas, para passarem a lua-de-mel. No dia seguinte, se dirigiram à cidade de Porto Alegre, onde iriam morar.
Passaram-se os anos, casado e feliz, estudando a noite e trabalhando durante o dia. Colara o grau como Engenheiro Mecânico, com ênfase na área de produção de máquinas. Até essa época, ele fora um homem feliz, com uma vida simples e seus pais nunca deixaram que nada lhe faltasse. Namorou e casou com a mulher pela qual se apaixonara. Tinham dois filhos: um varão e uma menina. No entanto, a vida reserva surpresas as quais nunca esperara. Foi no dia 25 de setembro de 1981, passavam das nove horas da manhã. Ele havia parado a Caravan em um posto de abastecimento, na saída da cidade de Santiago do Boqueirão. Enquanto abastecia o carro, seus filhos, Afonso, que tinha, na época, 17 anos, e Janice, com 15, foram comprar guloseimas.
No posto, havia diversos motoqueiros estradeiros, e naquele momento não reparou quantos eram. Um deles disse algumas gracinhas para Janice, um outro chamou Afonso de cunhado. Até aí tudo bem. Após o abastecimento, partiram por uma estrada de chão, se dirigiram para Santo Ângelo, nas Missões, o que seria o destino final. A estrada tinha pouco mais de 100km de chão batido. Não haviam percorrido mais de 20km, quando avistaram os motoqueiros que vinham atrás deles. Logo foram alcançados e o carro cercado. Um deles, dirigindo uma Harley Davidson, toda incrementada, com diversos periféricos cromados e em couro preto, tomou a dianteira, e num certo momento teve de frear para não atingí-lo. No lado direito, uma RD 350, da Yamaha, outras três, uma Honda CB 400, uma Honda CBX 1050 e uma Kawasaki 500, mantinham-se na traseira, estando os motoqueiros cada vez mais perto. Deviam ter avançado mais de 10km, quando decidiu deixá-los para trás. Acelerou a Caravan, fez um desvio à esquerda para ultrapassar a Halley Davidson, mas foi infeliz na manobra, atingindo-a de raspão e se desequilibrou, vindo a cair fora da estrada. Acelerou e os deixou para trás. De longe, viram que eles pararam para socorrer o amigo. Imprimiu maior velocidade do que o normal, para deixá-los para trás. Passaram mais de dez minutos e eles, achando que seria de bom alvitre livrarem-se deles definitivamente, adentraram em uma estrada secundária, que deveria levar a uma fazenda. Depois de alguns quilômetros, pararam sob uma gigantesca figueira. Seu projeto era ficar ali por mais de uma hora, tendo, assim, a certeza de que não mais encontraria com os motoqueiros. Mas, passados mais de trinta minutos, ouviram o roncar das motos e a poeira que se elevava. Tudo bem, iria pedir desculpas e assumir qualquer despesa por estragos causados a moto. Explicaria a eles que estava com sua família, rumando para as ruínas de São Miguel.
Mas quando eles chegaram, começaram a rodear o carro e a eles, que estavam fora do veículo faziam um círculo, em uma velocidade cada vez maior, estreitando cada vez mais o diâmetro do círculo. Todos tinham capacetes com as viseiras baixadas, porém se percebia que não seriam nada amistosos. Após alguns minutos de velocidade alta, esta foi diminuindo, até que todos pararam. Ao lado de onde estava Afonso, parara o da CB 400 que, abrindo uma das maletas de couro, na lateral traseira da moto, retirou um laço trançado, iguais os utilizados pelos peões de fazenda. Os outros quatro, abriram um espaço com suas motos. O da CB400 começou a girar, dirigindo apenas com a mão esquerda, enquanto rebolava o laço com a direita. Os quatro estavam perplexos, porém era evidente que iria laçar um deles. O escolhido foi Afonso. O laço fechara-se em seu tórax. A moto partira em linha reta rumo à estrada. Afonso quase levantou vôo, tal foi o impacto quando o laço foi estendido. Tudo fora tão rápido, Cizi e Marialba correram para alcançar Afonso, mas tudo em vão, seu corpo ia de arrasto pela estrada afora. As quatro motos restantes iniciaram um movimento em círculos. Como Cizi estava mais distante dos demais, o da Harley Davidson, em uma das passadas, estendeu a perna direita e ele foi atingido pela bota, na altura da coxa direita, sendo arremessado à distância. Logo foi socorrido por Marialba e por Janice, que se abaixaram sobre ele, assim permanecendo, enquanto as motos circulavam, em grande velocidade. Chegou o da Honda 400. Todos pararam e desceram de suas motos.
— Meu caro Bernardo, naquele momento eu já chegara à conclusão de que Afonso estaria morto e que o mesmo destino teríamos todos. Um deles pegou Janice, um outro pegou Marialba, abusivamente. Tentei reagir e, estando ainda agachado, fui atingido mais uma vez pela bota, na altura da face esquerda. Senti um zumbido em ambos os ouvidos e tudo ficou preto. Devo ter perdido os sentidos. Quando os recobrei estava amarrado com o laço na grande figueira, podendo ver minha mulher e minha filha serem estupradas pelos cinco homens, cujos rostos não podia ver, pois todos estavam com capacetes e viseira baixadas. Em certo momento, Marialba conseguiu soltar uma das mãos, que estava sendo segura por um deles, conseguindo cravar suas unhas no pescoço do homem que a estava estuprando. O homem lhe aplicou um tremendo soco na testa e ela desmaiou. Agora seu corpo inerte fora abandonado. As atenções voltaram-se para Janice. Com os olhos esbugalhados, parecia não mais estar ali e logo foi abandonada. Todos pareciam satisfeitos, começavam a arrumar suas calças. Em silêncio, o frenesi terminara. Parecia que tinham pressa em se afastar, pois montaram em suas motos e partiram em disparada.
Mais de uma hora depois, após o término da barbárie, quando chegou uma caminhonete Ford. O motorista parou, desembarcou e correu para junto de Marialba, porém se afastou, correu para mim e me desamarrou, perguntando o que acontecera. Respondi-lhe que mais tarde lhe contaria em detalhes, já que no momento queria ver como estavam todos. Corri junto à Marialba, que ainda estava desacordada e logo percebi que estava morta. Corri até onde estava Janice, sentada com os olhos vidrados. Estava ausente, quando a chamei e a sacudi, e assim, pude perceber que ela não mais estava ali.
O terror a tinha feito fugir da realidade sei lá para onde. Disse ao homem que tinha mais o meu filho, que tínhamos que ir buscá-lo de caminhonete. Quando lá chegamos, seu corpo estava completamente desfigurado, jazia junto a uma pequena árvore. Afonso estava morto. O homem da caminhonete, que se chamava Guilherme Dalcorte, tinha uma fazenda na região, se prontificou a levar eu e a Janice até o Hospital de Santiago do Boqueirão e comunicar a ocorrência na delegacia de Santiago.
Passados alguns dias, já estava recuperado dos meus traumatismos, pois havia ficado internado no hospital, por duas semanas. Fui visitar Janice em um hospital de Porto Alegre. Os médicos me disseram que ela estava em estado catatônico, ausente temporariamente, estado este que não sabiam quanto tempo duraria, pois essa é uma maneira do nosso cérebro nos poupar de grandes emoções, e poderia durar meses ou anos, ou até não mais ter reversão.
A polícia, quando me interrogou, queria, saber mais detalhes além dos que eu podia dar. Sabia apenas as marcas das motos. O pessoal do posto nada de importante informou.
Os motoqueiros haviam parado no posto, não abasteceram, não haviam comprado nada, apenas utilizaram o calibrador de pneus, como tantos outros que naquele dia passaram, pois havia um encontro de motoqueiros na cidade de São Borja. Não sei se por falta de pistas ou por desinteresse, a polícia em poucos dias suspendeu as investigações e tudo ficou o dito pelo não dito. E isto foi o que, me fez contratar um detetive particular, que após haver me apresentado um grande rol de despesas e honorários, disse que tinha feito uma completa investigação, mas, assim como a polícia, ele também não tinha tido êxito.
Em janeiro de 1982, vendi tudo o que tinha no Brasil e fui para os Estados Unidos da América. Minha finalidade principal fora buscar um tratamento adequado para Janice. Cinco anos levou para que ela se restabelecesse. Eu aprofundara meus conhecimentos em Engenharia Quântica e Cibernética, na Universidade de Oxford, enquanto acompanhava o restabelecimento de Janice. Ganhei muito dinheiro, prestando consultoria a diversas empresas, nas áreas de cibernética e mecânica quântica.
Dez anos após haver se restabelecido, Janice casou com um americano.
Em um trabalho de pesquisa na Universidade de Oxford, conheci o Professor Alquimíades, que passou a ser o meu fiel escudeiro.
CAPITULO XI
DE VOLTA AOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA
Após a malograda expedição ao pólo, retornara aos Estados Unidos, dando continuidade as minhas pesquisas, agora com maior dificuldade, pois não mais contava com minha mão esquerda. Sendo pesquisador em cibernética, não me foi difícil construir uma mão mecânica que a substituísse com certas vantagens.
No dia 31 de março de 2005, iniciara a primavera, nos Estados Unidos da América. As árvores se cobriam de flores, nos parques as pessoas caminhavam. Sentado, apreciava algumas crianças que brincavam. Finalmente chegara o dia tão ansiosamente esperado. Hoje era o dia 31 de março de 2005. Por incrível que parecesse, eu tinha esperado por cinquenta e três anos, e agora que faltavam apenas algumas poucas horas, pareciam que elas passavam vagarosamente. Não havia conseguido trabalhar, por isso saíra para caminhar no parque. A mão direita apalpa o bolso do casaco de abrigo e lá estava ela, a carta. A segunda carta que me havia entregue o estranho professor, há mais de cinquenta anos. Que revelações ela traria? Como tal sujeito conseguira prever o futuro com tantos detalhes? Sentei em um dos bancos, peguei aquele envelope, segurei-o com a mão mecânica e abri com a mão direita. Bati-o contra o banco. Nele havia igual conteúdo do anterior: a folha de papel se acumulara no canto do envelope. Rasguei a lateral, havia apenas uma carta composta de uma folha de papel. A mensagem, lacônica, dizia apenas:
“Adquira um pequeno bote, motorizado. Saia do porto, na Florida, rumando para as Bermudas, às cinco horas da manhã do dia 31 de maio de 2005. Você deverá levar a bordo do pequeno barco tudo o que possui, que seja possível converter em pequenas barras de ouro. Vá com roupas modestas e leve consigo apenas bagagem de mão.”
Olho para a data aprazada, faltavam apenas sessenta dias. Isto era tudo. No primeiro momento, tive um impulso de rasgar a carta e abandonar, isto é, não cumprir os ditames da carta. Achei-os absurdo, mas lembrando-me de que na última carta ele havia me salvo a vida, dominei o impulso e passei a encarar os fatos.
—Meu caro, Bernardo! Contando com a ajuda de Alquimíades, ao qual passei uma procuração internacional para vender tudo o que me pertencia nos Estados Unidos da América, retornei ao Brasil e vendi todas as minhas propriedades. Juntado o que Alquimíades tinha apurado nas vendas dos meus pertences nos EUA e o que eu havia vendido no Brasil, apuramos $ 246.000,00. Não era muito, pois tínhamos nos descapitalizado na viagem que fizemos ao Pólo Sul. Ao final, apuramos o equivalente a 22,1 kg de ouro. Esta seria a minha bagagem na estranha viagem.
Era cedo da manhã do dia 30 de abril e a temperatura ainda estava bem baixa. O pequeno barco que tinha adquirido, com um motor de centro, começou a se movimentar, com o vagar característico desse tipo de motor. Viajava com a segurança que me era peculiar. O plano estava feito, em cumprimento às determinações do estranho professor, com destino a "South Caicos", a ilha mais ao sul do conjunto das ilhas Caicos, nas Bahamas. Na medida em que ia avançando, a costa da Flórida ia sumindo no horizonte.
Ao longo da costa, a distância ia progredindo, até não avistar mais a linha do litoral. Já estava viajando por mais de três horas, quando faltou o combustível no pequeno reservatório. Parei e comecei a reabastecer, utilizando um dos galões de vinte litros que levara. Acionei o motor e continuei rumo às Bermudas. Duas horas mais de viagem, estava a cerca de 180 quilômetros da Florida, quando começou a se formar uma leve camada de nuvens que, aos poucos, foi se tornando mais espessa e alta. De repente, não mais que de repente, surge um vórtice de um redemoinho. O barco começa a andar em círculos e o círculo, a cada volta, tinha o seu diâmetro diminuído. Naquele momento, tive a certeza de que seria tragado pelas águas e que meu fim teria chegado, supondo que não mais chegaria à superfície. Quando o barco chegou no olho do vórtice, surgiu, de repente, uma caverna submarina, um buraco azul. Devo ter perdido os sentidos e quando voltei a mim estava em um oceano de águas calmas e azuis. Naquele momento, tive a certeza de que não me encontrava no mesmo lugar. Não havia nuvem alguma, me refiz do susto, acionei novamente o motor de centro, que havia apagado e continuei minha viagem. Não tenho a mínima idéia de quantas horas permaneci viajando. Fiz isto até o término do combustível e, para tanto, efetuei quatro reabastecimentos. Pelos meus cálculos, cada um com autonomia de três horas, teriam se passado doze horas, que havia sucumbido no vórtice. Perdido no oceano, a noite chegara e com ela o cansaço e um pouco de frio na madrugada, mas mesmo assim dormi quase toda a noite. O alvorecer me surpreendera em pleno sono, o sol atravessando minhas pálpebras se anunciava e eu despertara. A fome não era tanta, mas a sede, esta, sim, me torturava. Os lábios estavam secos, os quais umedecia com a saliva ao passar a língua. Olhava para todos os lados, apenas água, nada mais do que água. O barco à deriva, nada tinha a fazer. Seria este o meu fim, por que o estranho professor nada disse sobre este acontecimento?
O sol já estava quase a pino, o que me indicava ser perto do meio-dia. Olho novamente para todos os lados e ao longe avisto a torre de comando de um navio cargueiro, que vinha em minha direção. Pus-me em pé e com ambos os braços acenava, logo fui avistado. O navio continuava após haver passado por mim. Porém, dois de seus tripulantes se aproximavam em um bote, com um possante motor de popa. Levando minha pequena e única bagagem, subi no convés do navio, que se tratava de um navio com bandeira Filipina, que ia apanhar açúcar no porto de Charlestom na Flórida. Fui levado ao comandante para que narrasse o acontecido, a fim de que ele registrasse no diário de bordo. Quando o comandante me perguntou quantos dias estivera à deriva no oceano, respondi-lhe com uma outra pergunta?
— Que dia é hoje?
Ele respondeu:
— Dia 5 de maio.
Disse que deveria ter ficado à deriva por quatro dias aproximadamente. Pois, quando pescava, perdera o rumo.
Como estava desidratado, fui colocado em um alojamento, após haver comido e bebido moderadamente. Dentro do cubículo onde iria descansar, apalpei minha mochila e minha mão tocara nas roupas que envolviam minha pequena fortuna. Lá estavam as pequenas barras de ouro. Coloquei a mochila debaixo do beliche e peguei quase que imediatamente no sono. Não sei quantas horas dormi, mas acho que teria sido mais de quatro horas. Levantei e fui para o convés, onde se encontrava um rapaz moreno e franzino, como a maioria dos filipinos.
— Boa-tarde! - Falei-lhe em inglês.
Ele respondeu o cumprimento, fazendo uma mesura.
— Estive perdido no oceano e estou meio desorientado. Vocês estão indo para o porto de Charleston carregar açúcar, não é? Quantas horas faltam para atracarmos no porto?
O rapaz respondeu que faltariam apenas seis horas para chegarmos ao porto. Agradeci a informação e me dirigi para a torre de comando. Lá chegando, estava o comandante, um homem de aproximadamente cinquenta anos, de estatura baixa, disforme, da cintura para cima seu corpo era grande e apenas suas pernas eram pequenas. Porém, não tinha sinais de nanismo. Sua cabeça grande, sustentada por um pescoço curto e grosso, semblante fechado, barba espessa e sem bigode, lhe atribuíam uma semelhança a um dos sete anões da história da Branca de Neve. Quando me aproximei, ele me estendeu a mão, a qual apertei e ele me disse em um bom inglês
— Meu caro Senhor!
— Cizilião Cristóvão da Rocha. Pode me chamar de Cizilião, como sou chamado pelos amigos.
— Senhor Cizilião, que péssimo lugar o Senhor buscou para pescar, logo no triângulo das Bermudas.
Enquanto o comandante falava, meus olhos faziam o reconhecimento da sala de comando. De repente, vejo na parede um calendário antigo, daqueles que tinham um maço de folhinhas uma para cada dia do ano, fixados a uma folha onde havia a propaganda do patrocinador. Lá estava o dia 5 de maio, na folhinha menor, e na maior podia se ver claramente o ano: 1952.
Perguntei, dando continuação à conversa:
— O que há de estranho no Triângulo das Bermudas?
— O Triângulo das Bermudas é um lúgubre lugar. Um sítio de densa atmosfera e sombrias lendas. Muitas histórias são contadas, todo o marujo sabe que ali casos estranhos acontecem. Eu próprio, quando passo pelo tal triângulo, passo com certo receio, porém nunca vi nada de estranho. No entanto, contam vários casos de desaparecimento de navios, barcos e aviões, os quais desaparecem sem deixar vestígios e nunca mais são encontrados. Um avião da National Airlines desapareceu do radar da torre de controle ao se aproximar do aeroporto de Miami. Dez minutos depois, ele reapareceu. Nenhum dos passageiros havia notado nada de estranho, mas quando o avião pousou, seus relógios estavam dez minutos atrasados. Dizem que existem forças magnéticas estranhas que puxam os aviões e navios para o espaço. Que é uma área que sofre com tempestades violentas e furacões. Dizem outros, que há gás metano no fundo do mar, que afunda os navios e derruba os aviões. Alguns dizem que se trata de uma passagem para outra dimensão.
Recentemente, houve um caso estranho, que ocorreu em 1947, não faz mais que quatro anos, uma superfortaleza voadora norte-americana desapareceu estranhamente a cem milhas das Bermudas. Houve buscas intensas por um grande número de barcos e aviões e não conseguiram resolver o mistério. A Aeronáutica americana explicou, atribuindo-o a uma tremenda corrente de ar ascendente, que desintegrou o enorme bombardeio.
Há pouco mais de quatro anos, um avião de passageiros Tudor, da British South América Airways, sumiu quando voava a umas quatrocentas milhas das Bermudas. O aparelho levava uma tripulação de seis homens e vinte e cinco passageiros. O tribunal pelo qual se realizou a investigação sobre as prováveis causas do acidente só pôde dizer que "estas deveriam ser externas". Quase um ano depois desse incidente, um outro avião Tudor, da mesma empresa, com treze passageiros, e uma tripulação de sete homens, desapareceu nas Bermudas, quando se dirigia para a Jamaica. Apesar dos esforços de busca, não se conseguiu resolver o mistério. Não encontraram nenhum resto flutuante, mas aconteceu algo estranho: durante a primeira noite de busca do Tudor, dois aviões, um britânico e o outro americano, comunicaram, independentemente um do outro, terem visto uma estranha luz no oceano, na zona onde desapareceu o primeiro dos aviões Tudor. Como vê, senhor. Cizilião, este é o lugar onde você estava pescando.
A altura dos acontecimentos, eu tinha que ter muito cuidado para não dar qualquer explicação que pudesse causar suspeitas, mormente por estar levando em minha bagagem peças de ouro para as quais não tinha como justificar a sua origem. Cocei a cabeça com o coto do antebraço esquerdo, o que fez com que o capitão perguntasse como tinha perdido a mão. Disse-lhe simplesmente que a teria perdido na infância, em um acidente, do qual meus pais não gostavam de falar. O capitão, homem inteligente, notou que de fato eu é que não queria falar sobre o assunto e não insistiu.
— Caro Bernardo! Como sou um bom ouvinte, ouvi todas as histórias que o meu salvador quis me contar. O homem era ávido por falar e contava as suas aventuras com muito realismo, às vezes parecendo que as estava inventando, mas isso fez com que eu pouco ou nada dissesse a meu respeito até chegarmos perto do porto de Charleston. Disse-lhe que preferiria chegar no meu próprio barco, pois teria que levá-lo até um atracadouro para pequenos barcos. O comandante determinou que dois marujos me dessem a ajuda de que necessitasse e em poucos instantes estava reabastecendo o motor de centro que, após abastecido, pegou na primeira tentativa.
Chegando ao ancoradouro de onde partira, a única coisa que encontrei igual foi que todos falavam inglês americano. No mais tudo parecia diferente. Corri até a primeira banca de jornais que encontrei e como não tinha dinheiro para comprá-lo, procurei ver a data que estava estampada na primeira página: “5 de maio de 1952”. Não havia dúvidas: eu tinha retornado no tempo.
De repente, tudo ficou claro, o estranho professor maneta que eu encontrara aos dez anos de idade era eu mesmo e mais, que daqui a vinte dias deveria estar na cidade de Rio Grande, encontrando com o menino Cizi. Retornei ao barco, a noite já havia chegado, com mais de 20kg de ouro, não tinha onde dormir nem o que comer. Perambulava pelo cais, alguns pescadores jogavam carta em um bar, me aproximei e em inglês perguntei se alguém sabia onde poderia vender um barco com um motor de centro. Um homem informou que procurasse o Lyrou Bob, no final da rua, que ele fazia qualquer negócio. Com a venda do barco, apenas apurei $ 30,00, o que mostra, que fora roubado pelo Senhor. Bob. Mas, tudo certo, afinal, deu para pagar um hotel de terceira categoria por uma noite, fazer uma refeição e sobrou $7,5 dólares. Nunca dormi tanto e tão bem. Já era dia 4 de maio. Acordei, tomei o café da manhã, separei duas peças de ouro de 100 gramas cada uma e dei saída do hotel. Comprei um jornal do dia 6 de maio de 1952. Procurei a cotação do ouro $ 3,2 o grama. Peguei um táxi e me encaminhei ao aeroporto da Florida. Lá, aluguei um guarda-malas e coloquei minha mochila com o ouro. Dirigi-me ao ponto de táxi, indaguei se havia na cidade algum acampamento de ciganos. Sim, havia. Peguei o táxi que me cobraria em torno de $ 5,00 dólares, para me levar ao meu destino. O motorista indagou sobre o que pretendia no acampamento cigano. Disse-lhe que se tratava de uma pesquisa sobre os ciganos e seus rituais, músicas e danças, e ele me disse que lá procurasse pelo cigano Ernandes. O acampamento cigano ficava em uma grande área, a uma pequena distância da praia. As barracas eram características, a brisa do mar trazia o cheiro de peixe frito. Os ciganos são meio invisíveis, no acampamento parecia não haver ninguém. Adentrei em uma das tendas, onde uma mulher fritava os peixes, cujo cheiro eu sentira. Fitou-me com um olhar firme. Grandes brincos de ouro pendulavam nos lóbulos de suas orelhas. Sua pele, embora enrugada pelo tempo, informava que ainda se encontrava em condições de procriar. A luz do lampião e do fogo, seu rosto aparentava ser escuro, suas feições demonstravam que outrora fora bela. Os ciganos envelhecem depressa.
— Estou procurando Ernandes.
Falei em espanhol.
— Não há ninguém aqui com esse nome, senor.
— Como você se chama?
— Não tenho nome.
— De quem então é esta tenda?
— É do meu homem. — Admitiu relutante.
— Ele tem um nome?
— Tem!
— Ernandes?
— Vá embora, senhor.
Os ciganos são retraídos e suas vidas estão impregnadas por superstições que remontam diversos séculos. Conhecer o nome de um cigano quando se é um estranho, significa ter poder sobre ele.
— Diga a Ernandes que quero vender ouro. Uma cortina se abriu, um homem deitado em um catre velho, começava a se levantar.
— Quem falou em ouro? disse uma voz rouca, vinda do homem.
Vestia andrajos e fazia, no mínimo, uma semana que não fazia a barba. Tinha a pele escura de cigano e olhos profundos em um crânio largo. Pareceu-me astuto e interesseiro. Comecei a sentir o cheiro dele quando se aproximou. Nunca tinha visto isso antes. A mulher o escorraçou, sem dó nem piedade, chamando-o de bêbado e imprestável. Deu-lhe uma garrafa de vinho e o expulsou da tenda.
— Você pode fazer negócio comigo! — Disse, a mulher.
— Eu compro o seu ouro, por um bom preço, sem perguntar de onde saiu. Em troca disso você leva a cadela para bem longe daqui.
— Concordei em levar a cadela para bem longe.
Consegui vender sem qualquer explicação as duas pequenas barras de ouro por $600,00 dólares.
—Meu caro Bernardo, seiscentos dólares, em 1952, eram uma fortuna. O suficiente para que eu pudesse calmamente procurar a melhor forma de vender todo o ouro que possuía. Já estava de saída quando a mulher me lembrou da cadela, dizendo:
— Pegue a cadela e vá embora com minha bênção. Mas tome cuidado.
Ela se levantou subitamente me agarrou pelo paletó, e disse:
— Cada dia que passa pior. A maneira como meu homem olha para ela, a maneira como a toca em todas as oportunidades. Sei lá o que está pensando?
Compreendi que cometera um erro. A mulher saiu da tenda, deixando-me estupefato com o meu equívoco.
Logo em seguida, retornou trazendo pela mão uma rapariga e disse:
— Não quero ser responsável por matá-la. — Argumentou a cigana.
— Faça dela o que quiser.
Era uma morena graciosa, pequena, com uns vinte anos, no máximo, tentando, no momento, assumir uma atitude de que” vá tudo para o inferno”. Mas era evidente que estava apavorada.
— Não, não, não posso levá-la.
— Se não a levar será responsável pela sua morte. — Respondeu a cigana.
Não havia outro jeito. Parti levando comigo a jovem. Na primeira oportunidade chamei um táxi, que nos levou até um outro hotel, desta feita na zona central da cidade. Em todo o percurso a moça não pronunciou qualquer palavra. Quando aluguei dois quartos, totalmente separados. Ela apenas disse:
— Pensei que iria se servir de mim.
— Ledo engano. Sou um homem maduro e responsável. Se a trouxe comigo foi por pura humanidade, pois me pareceu que estava correndo perigo de vida. Mas como está comigo, teremos de trocar as suas roupas e eu também devo adquirir novas para mim.
Deixamos o hotel e rumamos para uma loja de roupas feitas. Lá chegando, procurei uma balconista e lhe disse:
— Vista a moça decentemente e jogue suas roupas antigas fora.
Dirigi-me ao lado onde havia trajes masculinos e adquiri roupas novas da época.
A surpresa foi grande ao ver a jovem em outros trajes. Embora franzina, era uma bela mulher. Paguei a conta e nos dirigimos ao hotel. Passava das 19 horas quando lá chegamos, nos dirigimos ao restaurante, escolhi uma mesa, afastei a cadeira, ela se colocou no lugar, aproximei a cadeira e ela sentou. Sentei na cadeira a sua frente e comecei a olhá-la. Em pensamentos conjeturava:
— Como fazer para livrar-me dela, sem deixá-la na rua da amargura? O que ela estará pensando nesse momento?
— Conte-me sua história, pois até o presente momento nada sei sobre você?
— Meu nome é Angelita. Como os ciganos, nunca fui registrada em cartório.
— Por isso não tem sobrenome?
— Há dois anos atrás, descobri que não era filha daquele casal. Aquela que eu pensava ser minha mãe, na verdade, foi quem me roubou de meus pais legítimos. Eu retornara à tenda, quando ouvi que discutiam. Sem ser vista pelos dois, me aproximei para ouvir o que falavam. Ela dizia:
— Se arrependimento matasse eu estaria morta. Roubar filha dos outros para criar, pode resultar em desgraça no futuro. Principalmente, quando temos um débil-mental como marido. Você está abobado por ela e pela bebida...
— Descobri, assim, por que ela me maltratava e ele, por sua vez, me passava a mão sempre que tinha oportunidade. Um dia, a mulher ficou doente e teve de ser internada em uma clinica para uma pequena cirurgia. Nesse dia, ele me atacou e me pegou à força. Eu nada podia dizer a mulher, mas ela desconfiava que o inevitável já tivesse acontecido. Passou a me chamar de cadela corrida e me obrigava a trabalhar de sol a sol. O resto você já sabe.
— Minha cara! Não posso perder a oportunidade que tive de lhe ajudar. Você, de agora em diante, será minha protegida. Quando tiver oportunidade, vou falar-lhe a meu respeito. Por hora, saiba apenas que sou um homem de bons costumes. Convido-lhe a viajar em minha companhia para o Brasil, onde tenho alguns trabalhos a desenvolver.
Eu necessitava ainda trocar o restante do ouro e este não poderia ser com ciganos.
Já havia se passado cinco dias, restavam apenas quinze para o encontro com o pequeno Cizi. Nesse parco período de tempo tinha que vender o ouro e conseguir passaportes falsos, para poder viajar para o Brasil.
A oportunidade aconteceu quando procurei o Senhor Jiovani Bronc. Sim, um dos chefões da máfia americana.
Eu não podia dar muitas explicações para vender o ouro, por isso, por voltas das 23horas, solicitei um táxi.
— Boa-noite, senhor. — Disse o taxista.
— Para onde deseja ser levado?
— Por favor, leve-me a um cabaré de classe média.
O taxista era um latino, muito conversador. Quando estacionou o táxi em frente à casa de diversões, eu já sabia que a suposta dona era apenas uma testa de ferro de um dos chefões da máfia americana, chamado Jiovani Bronc.
Adentrei no estabelecimento. Tratava-se de um cabaré de classe média, se assim se podia classificar. Seus habitués eram, na maioria, marujos e embarcados na Maria Mercante. Atravessei a pista de dança, onde alguns fregueses dançavam, ao som de um trio musical, composto de um contrabaixo, um piano e uma bateria. Aproximei-me do balcão do bar, onde havia um moço delicado, com o cabelo pintado de vermelho, que atendia no balcão. Cumprimentei-o e disse:
— Eu gostaria de falar com a dona.
Uma mulher que se aproximava, ao ouvir meu pedido, disse:
— É comigo que deseja falar? Sou a proprietária.
Fiz uma mesura. Ela estendeu a mão enluvada, cujos dedos ficavam descobertos. Peguei sua mão pelos dedos e aproximei minha cabeça como a fosse beijá-la e disse:
— Encantado, senhora! Sou João Votto. Brasileiro de nascimento e americano de coração. Tenho comigo algo que desejo vender ao Senhor Jiovani Bronc.
Introduzi a mão no bolso e tirei um pequeno pacote, contendo uma das barras de ouro. A mulher vendo que eu tinha conhecimento de causa, disse:
— Aguarde um instante que eu farei chegar o pacote até o Senhor Jiovani! Enquanto isso, tome um drinque por conta da casa.
Consegui vender todo o meu ouro por $ 2,85 dólares, o grama, tendo apurado $ 62.700,00 (sessenta e dois mil e setecentos dólares) e de lambuja consegui documentos falsos, incluindo passaportes brasileiros para mim e Angelita.
Já havia se passado mais de dez dias da minha chegada na Flórida. Levando em uma mala uma pequena fortuna em dólares, embarquei num dos vôos da VARIG, rumo a Porto Alegre, acompanhado de Angelita, que agora se chamava Angelita da Silva. Com escala no Rio de Janeiro, chegamos a Porto Alegre, onde permanecemos por um dia, rumando logo em seguida para Rio Grande. Assim, no dia 25 de maio de 1952, encontrei com o menino Cizi, enquanto Angelita me aguardava em um pequeno hotel, em São José do Norte.
Após haver entregue as duas cartas ao menino Cizi, nunca mais o procurei, pois tinha a convicção de que deveria deixá-lo viver, sem interferir, pois os cuidados que pudesse ter com ele poderiam prejudicá-lo no futuro.
Meu caro Bernardo, eu tinha conhecimento do futuro, não tinha como saber a loteria, as corridas de cavalo, pois não tinha me preparado adequadamente para a viagem, já que não sabia que faria uma viagem através do tempo, o que foi muito bom, e assim, ganhei dinheiro honestamente. Sim, honestamente, eu sabia as empresas que dariam lucros, as que desapareceram e, assim, passei a comprar ações, as quais me renderam uma grande fortuna.
Angelita cursou a universidade, tendo colado grau em Medicina. Casou em 1966 e teve dois filhos. Embora tenha nascido em 1942, hoje, no ano de 1983, já vivi por mais de 94 anos. Sou um velho, enquanto meus contemporâneos ainda estão em plena forma aos seus 41 anos.
Há dois anos atrás, ou seja, em 25 de setembro de 1981, se você se lembra, isso já lhe foi narrado, houve um encontro meu com cinco motoqueiros, lembra? Pois bem, todos aqueles fatos permaneceram na minha lembrança, durante todos estes anos. Eu poderia fazer algo pelos meus entes queridos, mas tive medo de desorganizar o tempo. Por anos a fio, pensava no que poderia acontecer se eu intervisse no sentido de evitar tais acontecimentos. Pensei em um dia, antes da viagem, impedir a mim mesmo de fazê-lo. Até tentei, mas tudo deu errado. Naquele dia fatídico, minutos antes de chegarmos ao posto, em Santiago do Boqueirão, eu já estava lá, com o meu carro estacionado. Meu motorista me perguntou:
— O que estamos esperando?
Disse-lhe que nada, apenas estava apreciando a paisagem, e ele arguiu:
— Em um posto de abastecimento?
— Sim! — Respondi-lhe.
Neste momento, chegaram os motoqueiros. Para que ele não visse o que iria fazer, ou seja, tomar nota das placas das motos, disse-lhe que se quisesse poderia dar uma volta, mas que não demorasse. Quando ele se afastou, registrei em uma caderneta o número e letras das placas de todas as motocicletas: da Harley Davidson, Yamaha RD 350, Honda CB 400, Honda CBX 1050 e da Kawasaki 500. Momento em que chegou a Caravan. Onde está o motorista? Eu preso ao carro, pois já era paraplégico, dado a uma artrose reumatóide. Quando o motorista chegou, eu já havia partido na Caravan, e nada pude fazer para impedir que eu próprio seguisse o caminho para Santo Ângelo. Logo em seguida, partem os motoqueiros. Chega o motorista, disse-lhe que se apressasse pois tínhamos que partir imediatamente para Santo Ângelo. O motorista deu partida no carro, chegando a fritar os pneus. Quando adentrou na faixa, foi abalroado por um ônibus que fazia o itinerário municipal. A roda do Dodge, foi arrancada, não permitindo que o veículo andasse. Nada pude fazer. Apenas me pus a chorar como se uma criança fosse. O motorista, que nada entendeu, procurava me consolar, dizendo que havia apenas danos materiais. Perguntou se eu me havia machucado e eu lhe respondi simplesmente que isso era coisa de velho, chorar sem motivo.
Na semana seguinte, viajei para a cidade de Rio Grande. A imensa casa na Rua Marechal Floriano Peixoto. O carro estacionado à frente. Ordenei ao motorista que procurasse um senhor chamado Bertuti e lhe dissesse que quem queria lhe falar era o avô de Cizilião Cristóvão da Rocha, que também tem o mesmo nome.
Vejo se aproximar do carro o meu amigo Bertuti. Jovem ainda, aos seus 39 anos, quase não mudara nada. Aproximou-se, abriu a porta do carro e me estendeu a mão. Alcancei-lhe a minha e ele a beijou, dizendo:
— Que imensa satisfação conhecer o avô do meu amigo Cizi, o qual não vejo há muitos anos.
Bertuti fez-me entrar em sua casa. Tive de fazê-lo pela entrada da cozinha, pois a cadeira de rodas não sobe escadas. Já no interior da imensa sala de estar, Bertuti me perguntou:
— Como está meu amigo Cizi?
— Seu amigo Cizi sofreu uma tremenda injustiça a qual teremos que reparar. Este é o motivo por que aqui estou.
Narrei-lhe a história, que foi ouvida com muita atenção. Ao final, como seria de esperar, disse:
— Estou eu e minha equipe prontos a servi-lo, quais são os seus planos?
— Primeiro temos que identificar todos os agressores: onde moram, que família eles têm e tudo o que mais possa interessar, como hábitos diários, trabalho, esportes, academias que frequentam.
— Sim, perfeitamente entendido, os dados que acaba de me passar são suficientes para iniciarmos nosso trabalho. Tenho influência significativa dentro da polícia e posso agir com discrição. A nossa ligação nunca será identificada.
Dei-lhe meu endereço, meu telefone, nos despedimos e sem maiores delongas parti.
O RELATÓRIO DE BERTUTI:
Passadas quatro semanas, recebi pelo correio o resultado das investigações de Bertuti. Nele continha todas as informações que seguem:
O da Harley Davidson era filho de um importante industrial, se chamava Rodrigo D’Almeida, tinha 29 anos, não trabalhava, queria apenas andar de motos e fazer grandes pescarias, tinha fama de ser um grande estróina. Dilapidava o patrimônio da família o máximo que podia. Era solteiro e tinha diversas mulheres e uma noiva, sem data certa para o casamento.
O da RD 350 da Yamaha, era dono de um posto de abastecimento em Porto Alegre, se chamava Marco Antônio de Andrade, 39 anos, não tinha ligação alguma com os demais, sendo provável que apenas os conhecesse dos encontros de motos. Era casado e tinha um casal de filhos. Chamava-se Bruno Antônio Santini, um cidadão moderado, administrava seu posto de abastecimento e era motoqueiro casual, nada que depusesse sobre sua conduta.
O da Honda CB 400, chamava-se Harthur Nonemacher, 45 anos, era um personagem da noite porto-alegrense. Gigolô de diversas mulheres e traficante de drogas pesadas como a cocaína, seus hábitos eram todos noturnos. Frequentava diariamente os bordéis de Porto Alegre, onde colocava suas mulheres. Possuidor de uma vasta ficha policial.
O da Honda CBX 1050, conhecido como Gordo, se chamava Martinho da Silveira, 35 anos, era dono de um supermercado, em um dos bairros de Porto Alegre. Cidadão comum, sem qualquer passagem policial. Não tinha qualquer relação com os demais, seu hábito diário era trabalhar no seu supermercado, era casado e não tinha filhos.
O da Kawasaqui 500 era um advogado em início de carreira, com 26 anos, filho de um importante granjeiro em Uruguaiana, era solteiro, pouco trabalhava, vivia à custa de seu pai. Um bom vivam, também não tinha relação com os demais.
No entanto, todos tinham algo em comum. Eram usuários eventuais de cocaína.
Agora eu podia entender porque a policia não os tinha encontrado. Buscaram, em vão, um grupo de cinco motoqueiros. Jamais os encontrariam, uma vez que não havia qualquer elemento de ligação entre eles a não ser a droga que utilizavam de forma eventual.
Ao final de seu relatório, Bertuti dizia:
— Senhor Cizilião, estou a sua disposição para o que for necessário.
Naquele mesmo dia liguei para Bertuti e marquei um encontro na cidade de Pelotas, pois não queríamos ser vistos juntos. À noite, jantamos no Curi Hotel e lá lhe coloquei meu plano de ação, assim me referindo:
— Meu caro amigo, Bertuti, meu neto tinha razão quando, antes de partir para os Estados Unidos da América, determinou que o procurasse. Ele tinha a certeza de que a justiça seria feita. Sou um homem velho e alquebrado pelo tempo. Orgulho-me em dizer que muitos poucos homens tiveram a oportunidade de passar por tudo o que passei nesta vida. Tive que tomar sérias decisões, mas essa que se avizinha é para mim a mais importante. Não consigo nada provar para envolvê-los nas malhas da lei. A crueldade nunca foi o meu forte. Não por ser temente a Deus, o que não sou. No entanto, sou um homem honrado e sempre vivi regido por severos princípios de honestidade e respeito para com o meu semelhante, o que, nesse momento, me leva a uma séria reflexão. Se deixá-los impunes, sabe-se lá se não farão mais crueldades. Se acreditasse na justiça divina, talvez isso me servisse de alento e resignação, mas não acredito. Se os torturasse até a morte, nivelar-me-ia com eles e isso eu jamais o faria.
Bertuti ouvia minhas conjecturas, apenas repetindo, de quando em vez, que faria tudo o que fosse necessário para punir os rebeldes. Finalmente me decidi, gastaria uma vultosa quantia, mas faria a coisa certa. Disse, nos mínimos detalhes, o que planejava fazer. Enquanto falava, Bertuti apenas sacudia a cabeça em sinal de aprovação. Após haver ouvido todos os detalhes do plano, disse:
— Assim será feito.
Quis lhe adiantar algum dinheiro para as despesas, mas Bertuti não aceitou, dizendo que no final acertaríamos tudo.
Em janeiro de 1982, eu, novo, havia partido para os Estados Unidos da América, após haver vendido alguns dos bens que possuía no Brasil. Eu, velho, iniciava a execução do plano arquitetado com Bertuti. Com o nome falso de Rodolfo Aichmann, aluguei uma chácara em Salto Del Gauirá, no Paraguai, fronteira com o início do Estado do Mato Grosso do Sul, entrando pelo estado do Paraná, lugar ermo, longe de tudo e de todos. A casa possuía diversos aposentos, incluindo uma grande sala de estar, que era precedida por um imenso alpendre. O ambulatório médico estava pronto. O veterinário tinha sido contratado, faltava apenas a chegada dos animais.
Em 6 de janeiro de 1982, Rodrigo D’Almeida, desembarca no aeroporto Salgado Filho, de um vôo proveniente de Campo Grande, após haver passado uma semana pescando no Pantanal. Um homem de cor morena o interpela e lhe apresenta um exemplar de uma revista, dizendo ser cortesia. No entanto teria que preencher um formulário para concorrer a um carro Mercedes Benz, no primeiro prêmio, e a uma viagem de uma semana ao Rio de Janeiro, no segundo. Rodrigo folheia a revista. O homem solícito, lhe alcança o folheto e uma caneta. Após preencher o formulário, Rodrigo devolve ao agente de propaganda, agradece e se afasta.
Harthur Nonemacher pára seu carro e se dirige ao café onde costumava fazer o desjejum. Um homem alto, pele branca, bem trajado, se aproxima e lhe oferece um exemplar da revista, dizendo:
- A revista está lhe ofertando a cortesia de um exemplar, apenas deve preencher o formulário e concorrer a um carro Mercedes Benz, no primeiro prêmio, e no segundo, a uma viagem de uma semana ao Rio de Janeiro.
Aquiesceu ao convite, preenchendo o formulário.
Martinho da Silveira, Marco Antônio de Andrade e Delfin da Silva também foram abordados por outras pessoas e estavam concorrendo aos prêmios oferecidos pela revista.
A caminhonete com cabina dupla, rebocando um transportador de cavalos, chegara ao posto de fiscalização de sanidade animal, na divisa entre os estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. O motorista, um afro- descendente, cara redonda e dentes alvos, que se sobressaiam à pele negra, com um amplo sorriso angelical, chegara ao balcão de atendimento e apresentara a documentação do animal com os respectivos atestados de vacinas. A nota de transferência era destinada à cidade de Salto Del Guiará. O motivo do translado era para coleta de sêmen e castração. Tudo certo e a documentação fora carimbada. O motorista agradeceu e seguiu sua viagem.
No aeroporto de Foz do Iguaçu, o avião taxeia na pista após a aterrissagem. Um homem, louro e alto, com cabelos longos, amarrados em forma de cola, exibe aos passageiros um exemplar da revista. Um dos passageiros o identifica e ambos saem do aeroporto em um carro azul, placas RST 2425, do estado do Paraná. Na estrada entre a cidade de Palotina e a de Terra Rocha, no estado do Paraná, à beira da rodovia se encontra parada no acostamento a caminhonete com cabina dupla, com um reboque para animais, tendo dentro deste um garanhão. O motorista examina o motor do veículo, quando chega um carro azul, placa RST 2425, e para junto ao veículo. O homem louro, com cabelos longos, amarrado em forma de cola, cumprimenta o homem afro-descendente. Um corpo de homem é retirado do carro e colocado em um compartimento secreto sob o banco duplo da parte posterior da cabina dupla. Ambos os veículos prosseguem viagem. O carro se distancia da caminhonete, separando-se definitivamente. Quando chega a Terra Rocha, o carro retorna e a caminhonete segue seu rumo.
Na divisa entre o Paraguai e o Estado do Mato Grosso do Sul, o motorista apenas apresenta a nota de transferência do cavalo à aduana e, sem maiores embaraços, segue seu caminho. Ao cabo de uma semana, os cinco animais já tinham chegado. Todos os garanhões de raça, já estavam em suas respectivas baias.
Um momento, Senhor Narrador! Intervém o repórter.
— Não está claro o porquê dos cavalos?
—Meu caro rapaz! Tínhamos que locar um sitio em um país estrangeiro, tínhamos que transportar homens desacordados, isso tudo gera suspeitas, podendo os carros serem revistados nas fiscalizações e na Aduana. Em levando um cavalo, com as devidas notas de transferências, ao passarem nas fiscalizações, os exames eram dirigidos aos cavalos, não sendo observado que levavam um corpo desacordado, no interior da cabina da caminhonete. Mas, continuando:
Cada um alojado em um dos quartos do sítio, sedados, esperava o processo cirúrgico, que os deixaria calmos e sereno para o resto de suas vidas. A castração fora um sucesso. Todos se recuperavam muito bem, mas continuavam sedados levemente, para que não pudessem perceber totalmente o que estava acontecendo. Tudo ocorrera sem traumas e dores. Quarenta dias já havia se passado, após a cirurgia. Na casa estavam apenas os animais. Os medicamentos que os mantinham semi-inconscientes já haviam sido interrompidos a mais de oito horas. Imagine, senhor. Bernardo, quando eles se encontrarem na sala de estar e se reconhecerem, percebendo o que lhes havia acontecido. Eu daria tudo o que possuo para estar lá nesse momento e ver se havia chegado à conclusão óbvia de que tinham sido punidos pelo bárbaro crime que haviam cometido.
Não tenho nada mais a dizer. Eu não sei; meu caro jornalista, se o que fiz é justificável ou não, não sei. Eu acabara de fazer justiça com as próprias mãos. Mas justifico havê-la feita, pois a meu ver, se não a tivesse realizado, aquele crime bárbaro ficaria impune, como tantos outros por esse mundo afora.
Meu caro Bernardo! Hoje, ao contemplar o passado, parece-me que tive uma vida incomum, que talvez nenhum ser humano tenha passado tanta provação. No entanto, considero-me um ser privilegiado, por ter vivido com tanta intensidade e passado tantas agruras e sofrimentos. Mas tenho a certeza de que, após minha morte, se houver algo mais, o que não acredito, poderei enfrentar qualquer julgamento de cabeça erguida e sem qualquer arrependimento, pois não me envergonho de qualquer ato feito em minha existência.
Meu caro jornalista, use a sua imaginação e a habilidade que tem para escrever e faça desses relatos um livro. Mas se o publicar, apenas o faça após a minha morte.
FIM