anja de candura

A tarde findava em Belém. No Bar do Parque, enquanto apreciavam uma cachaça de jambu com alguns petiscos de camarão ao alho e óleo, Percival prosseguia a boa conversa com o colega Olímpico, enquanto aguardavam os demais companheiros de magistério.

— Então, Olímpico, como se deu mesmo essa revolução na vida do amigo? Há cinco anos, partias embatinado para o teu doutorado em Psicologia na Europa e, agora, acho-te doutor, de fato; porém, muito bem casado com essa jovem italiana. Anna, ela se chama, não? Como a conheceste?

— Sim, caro Percival. O dia em que conheci Anna Beatrice realmente foi insólito. Era a primeira semana de janeiro de dois mil e vinte e três, em pleno frio do inverno.

Tinha saído cedo do Colégio Pio Brasileiro, onde residem os padres brasileiros que estudam na Cidade Eterna, pois deveria ir ao Vaticano. Tomei o metrô e, quinze minutos depois, estava na fila imensa para cruzar a Porta Angélica. Havia uma multidão se comprimindo para entrar na Basílica de São Pedro. Após passar pelo serviço de fiscalização, ainda aguardei mais quarenta e cinco minutos para chegar à porta principal do templo; e, dela, mais vinte para alcançar, no compasso da fila, o altar principal com o majestoso baldaquino de Bernini.

A multidão estava silenciosa. A iluminação amarelada ressaltava as expressões das esculturas barrocas. Enfim, chegando ao espaço à frente do altar-mor, em um local fortemente controlado por oficiais da Guarda Suíça, pude me deter por dois minutos e dizer alguma oração, contemplando o corpo exânime do papa emérito, vestido com uma simples casula vermelha e outras roupas clericais, sem ostentação. Ele foi um dos maiores teólogos contemporâneos e um amante da música clássica. O estado visível de sua senilidade e do corpo provado pelas últimas enfermidades me causou grande impressão e angústia. Orientado pelos guardas, saí, como os demais, pela lateral da basílica. Por sorte, havia por ali a exposição de um belo presépio, onde me detive em contemplação, para beber do sentimento de ternura causado por aquela arte natalina e expurgar a angústia que a visão do corpo de Bento XVI me provocara.

Saí, em meio à multidão, rumo ao metrô da Ottaviano. Seguia cabisbaixo, enquanto minha batina se balançava no vento frio, e eu ajustava meu cachecol e meu gorro. Foi quando escutei:

— Com licença! Bom dia! Posso falar um minuto com o senhor?

Já ia dizer que não e que estava com pressa, quando levantei o olhar e deparei-me com aquela anja de candura a falar comigo.

— Prazer, chamo-me Anna Beatrice. Hoje estou com meus colegas da UNICEF, divulgando nossa campanha de combate à fome e à desnutrição infantil em alguns países da África.

— Prazer, Anna! Chamo-me Olímpico. Não precisa me tratar com formalidade.

— Obrigada, Olímpico! É um dia triste, não? Bento representava muito para você?

— De fato. Ele foi um grande teólogo. Um homem muito culto que agora nos deixa. Além disso, este momento de sua morte representa um ponto de mudança de época na História da Igreja atual. Por isso, resolvi vir ao funeral.

— Meus sentimentos!... Na verdade, não sou religiosa nem frequento igrejas, exceto por causa das artes e da história que conservam. Mas respeito as pessoas religiosas e gosto da mensagem de Cristo, tanto que estou colaborando nesse projeto da UNICEF. Quando te vi, senti que deveria falar contigo. Por isso, atravessei a via e vim ligeira.

Eu olhava nos seus olhos, que sorriam com ternura para os meus... Meus olhos penetravam sua alma e chegavam ao seu coração, de onde emanavam apenas amor e luminosidade. Foi assim que conheci Anna. Ela já era doutora em Sociologia – inteligentíssima! Assim ela entrou na minha vida. Tudo aconteceu num contexto improvável e repentino, mas com um sentido maior. Como mulher, ela fez uma revolução de cento e oitenta graus na minha história. Apresentou-me o projeto da UNICEF, ao qual subscrevi e passei a contribuir. Trocamos contatos, falávamos com frequência, saíamos juntos e viajamos uma semana a Veneza, onde começamos a namorar. Depois, conversei com os bispos responsáveis pelo Colégio. Já não poderia permanecer com a batina, pois a Igreja requer o celibato aos padres. Fui sincero e ético e escolhi o caminho do amor em vez da infelicidade de uma vida que não mais me fazia sentido... Assim iniciou nossa história, e estamos, hoje, aqui em Belém.

— Que história, Olímpico! Parece até coisa de destino! Dá até para escrever uma novela! O importante é que vocês estão felizes! Um brinde ao vosso sucesso!

— Saúde!

— Saúde!

Exclamavam jubilosos Percival e Olímpico, enquanto brindavam com os copinhos de cachaça de jambu.

— Mas olha quem chega! Finalmente, o Beto, o Idacir e o Juvenal!

— Pô, rapaziada! Já estávamos pensando que não viriam mais!... Garçom, por cortesia, mais petiscos, jamburana e caipirinha!

SOUSA DA SILVA Jonas Matheus
Enviado por SOUSA DA SILVA Jonas Matheus em 04/03/2025
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