Por oportuno, e principalmente para preencher devidamente todas as lacunas que aparecem nesta na narrativa oficial das nossas origens, achamos conveniente informar que há notícias que dão conta de que Eva não teria sido a primeira mulher feita por Deus para companhia de Adão, mas sim uma guria chamada Lilith, que a exemplo de Eva teria sido levantada do pó da terra ―que a comunidade acadêmica sugere que pode ter sido uma determinada espécie primata ― na mesma ocasião em que Adão foi criado. Essas informações, para quem tiver a curiosidade de saber, podem ser encontradas nas mesmas fontes que foram responsáveis pela versão original desta história, que como já dissemos foi registrada em tabuinhas de argila pelo povo que habitou, nesses primitivos tempos, a planície de Senaar, que depois ficou conhecida como Mesopotâmia.
Mas essa mulher, por ter sido obtida pelo mesmo processo que engendrou Adão, logo brigou com ele porque se revoltou contra a dominação que ele quis impor sobre ela, o que nos leva a pensar que, em princípio, Deus não tinha pensado em estabelecer níveis hierárquicos entre o homem e a mulher. Sabemos que isso só aconteceu depois que Eva, que nesse caso seria a segunda mulher de Adão, cometeu o deslize que foi computado como sendo o primeiro pecado do ser humano.
Controvérsias à parte, porquanto o conceito de pecado é como um quadro pintado por um pintor abstracionista, onde cada
um vê o que quer, temos que esses arroubos de afirmação feminina que se levantam atualmente não são nem um pouco uma coisa de ativistas modernas inconformadas com sua posição na nossa estratificada sociedade, porque desde essas antigas calendas a espevitada Lilith já era portadora dessa bandeira.
As notícias que se puseram a esse respeito dão conta de que Adão e Lilith, assim que saíram da forma, ou da mesa de cirurgia que os transformou de macacos que eram em seres humanos (seja qual for a crença que queiramos esposar), imediatamente começaram a brigar. Que isso seja verdadeiro é mais fácil de acreditar do que em qualquer das alternativas aqui elencadas para explicar como foram criados os seres humanos, porquanto até hoje as coisas não mudaram muito; tudo vai bem enquanto se namora, se deita e se goza e depois do prazer obtido pelo coito cada um vai para a sua casa. Mas quando se vai morar junto e se começa a perceber as diferenças que existem entre os parceiros as coisas mudam. E se não se aprendeu a exercer tolerância e estimar mais a frugalidade da paz do que a gulodice do Ego, o que eram arrufos e beijos se convertem em tapas e pescoções.
E nesse sentido é que Lilith teria dito a Adão, na forma mais feminista que se pode imaginar: "Por que devo deitar-me embaixo de ti? Por que devo abrir minhas pernas para que entres em mim? Por que devo ser dominada por ti? Não fui eu também feita de pó da terra? Não serei, por isso, tua igual?"
A resposta de Adão merece ser registrada por força de todas as querelas que se levantaram por causa dela depois disso e continuam a dar pano para mangas até hoje. Pois consta que ele deu a seguinte resposta: " Eu não vou me deitar por baixo de ti, apenas por cima, pois você está apta apenas para estar na posição inferior, enquanto eu sou um ser superior."
Ao que Lilith respondeu: "Nós somos iguais um ao outro, pois que ambos fomos criados da mesma forma".
“Pode ser”, respondeu Adão, “mas tu foste feita para servir-me de adjutório e não para viver comigo como igual.”
Ao que Lilith respondeu: “Eu não aceito tal subalternidade, porque se eu sou o canal pelo qual o Senhor dará geração ao seu povo, porque terei que contentar-me com essa submissão que se assemelha mais à uma servidão do que à uma verdadeira parceria?”
“Se assim o Senhor dispôs”, Adão teria dito,” quem és tu para contestar, ó mulher? Aos desígnios de Deus não se opõe contraditórios. Nós só temos que obedecer e nada mais”.
“Eu não ouvi o Senhor dizer isso. Tú é que estás dizendo.”
“Digo isso porque tu saíste do meu corpo. És uma parte de mim que tomou forma. Por isso deves-me obediência.”
“Pois comigo não será assim” respondeu Lilith, e imediatamente afastou de cima dela o corpo de Adão que já estava preparado para penetrá-la naquele que seria o primeiro coito do casal.
"Que fazes tu?”, perguntou Adão, com aquele constrangimento de macho que acaba de ser recusado justamente no momento mais sutil de uma relação sexual, que é aquele em que ela começa, pois, a expectativa do coito pode ser até mais prazerosa do que o próprio clímax que dele advém.
“Eu me recuso a ficar por baixo de ti, e se é para ser assim, eu não serei a tua mulher”, arrematou Lilith.
Se tudo isso realmente aconteceu ou não é difícil para obter confirmação, mas há que se reportar que até hoje existem lugares
no mundo onde se computa como manifesta ilegalidade uma mulher ficar por cima do homem na execução do ato sexual como acontece no estado americano do Massachusetts, por exemplo, onde somente o sexo na posição “mamãe e papai” é tido como justificado. E essa curiosa tradição dos massachussetanos, que sabemos ser, em sua maioria, descendentes de colonos calvinistas, notoriamente conservadores e aferrados à literalidade dos escritos sagrados, sem dúvida deve ter vindo desse bizarro episódio liliputiano ( palavra que usamos por achar que foi a partir do nome de Lilith que o escritor Jonathan Swift cunhou o termo que designa o povinho de anões que ele descreveu nas viagens do seu personagem Gúliver. Isso dizemos por que de Lilith, como se escreveu nos documentos que falam dela, se dirá que era uma mulherzinha minguada em seus dotes físicos, o que decerto pesou muito no seu relacionamento com Adão, de quem sabemos ser um rapagão guapo e bem provido dos apetrechos sexuais, a se julgar pelas imagens que dele fizeram os pintores renascentistas).
Ao que parece, Adão e Lilith não conseguiram entrar em acordo e quando a danadinha percebeu que isso seria impossível, conta-se que ela se transmutou num dragão alado, de escamas prateadas e voou para longe, deixando Adão com a boca aberta e aquela parte do corpo intumescida, pulsando na sua mão, o que o levou a apelar para Deus dizendo: "Soberano do universo, a mulher que vós me destes não me deixou penetrá-la e fugiu!" E Jeová Elhoin, ao ouvir a queixa de Adão, enviou três anjos atrás de Lilith para trazê-la de volta. Consta que eles insistiram para que ela voltasse para Adão, ameaçando inclusive afogá-la no mar se não o fizesse, mas sendo ela, como era, uma criatura de opinião, se recusou veementemente a voltar, razão pela qual foi condenada por Deus a perder cem filhos por dia, o que, com o natural aumento da população terrestre se tornariam mil, depois milhões e aí por diante, o que justifica a ocorrência de tanto morticínio no mundo, se quisermos fazer dessa informação mais uma metáfora para justificar a loucura humana.
O que se informou depois disso é que, para se vingar de Deus, Lilith se amasiou com o anjo caído Samael, que nós conhecemos pelos nomes de Satan e Lucífer, e tornou-se a mãe de uma raça de seres híbridos, meio homens, meio demônios, que nós já conhecemos pelo nome de nefilins. E foi só para compensar Adão desse relacionamento conflituoso e fracassado que Deus lhe deu uma segunda esposa, que nós conhecemos pelo nome de Eva.
Quanto à Lilith, ninguém sabe realmente o que aconteceu com ela. Há quem diga que depois que ela deixou o Éden e habitou na terra de Senaar, ela teria se tornado a rainha do povo que lá habitava e estava já em um avançado estágio de civilização. Isso pode ser verdade, porque seu marido, ou amante, o anjo caído Samael, foi o fundador daquele povo e se tornou o seu primeiro rei, sendo adorado naquela terra como um deus chamado Enki. E Lilith também passou a ser conhecida pelo nome de Enlil, “a donzela que tinha lábios miúdos que não sabia beijar e vagina pequena que dificultava a penetração.”
Damos como verídicas essas informações porquanto elas também estão registradas nas tabuinhas de argila as quais já nos referimos e ainda hoje podem ser lidas em vários museus do mundo. Elas constituem uma preciosa fonte de informação desses nebulosos começos da nossa espécie e segundo fontes acadêmicas que consultamos, essas tabuinhas de argila, redigidas na primeira forma de escrita que existiu na terra, o cuneiforme, foram as fontes que inspiraram o grande livro no qual todas essas histórias estão contidas.
Talvez, e essa é uma inferência nossa, esse também seja um dos motivos de Lilith ter se recusado a praticar o coito com Adão, porque, se lembramos bem, o guapo rapaz que Deus fez levantou-se da mesa de operações, ou do molde, como queiram os leitores escolher a alternativa, já como um homem adulto e bonitão, de certo bem provido nos seus dotes sexuais. E Lilith, ou Enlil, se é verdade o que os sumérios escreveram dela, que tinha vagina pequena e lábios miúdos, é bem de ver que temesse praticar sexo com Adão. E quanto ao fato de ter admitido fazê-lo com Samael vamos lembrar que este era um anjo, com capacidade de transmutar-se na forma como quisesse. Nessa condição bem que poderia ter se adequado sexualmente para servir às necessidades de Lilith.
Vá lá se saber. Dizem também que Samael, ou Enki, como era conhecido entre os sumérios, na verdade a estuprou. Mas isso, supondo que tenha sido verdade, deve tê-la agradado, pois ela não só se amasiou com ele como também lhe proveu uma família, o que deu supedâneo para aquela anedota chula que diz que quando o estupro é inevitável, o melhor que se faz é relaxar e gozar.
Agora, se pudermos admitir tais narrativas como verossímeis, nada nos impede de dar à Lilith um papel nessa história, o que seria de inteira justiça. Posto que não havia ainda o instituto do divórcio, temos um Adão abandonado no Éden, sozinho, triste e inconformado, pois depois de ter experimentado o sentimento ―que ainda não se podia chamar de prazeroso, mas que já lhe dava uma gostosa sensação de bem-estar― de deitar-se com uma mulher, nada lhe resta para recuperar essa sensibilidade do que usar a própria mão. Mas este recurso, sabemos nós, foi proibido por Deus, que o considerava indecoroso e prejudicial ao seu propósito de encher a terra com seres humanos devotos e tementes à sua majestade.
Isso porque a semente masculina, lançada fora do útero feminino morre sem encontrar terra fértil para prosperar. Tal comportamento, no conceito divino é um crime tão ominoso quanto o de lesa pátria, razão pela qual o Senhor punirá o seu praticante com a morte, como fez com aquele Onan, filho de Judá, que nasceria alguns pares de séculos depois e que, como está escrito, ao fazer sexo com a mulher do seu falecido irmão para cumprir a lei do levirato, preferia derramar sua semente no chão ao invés de fazê-lo no útero da ex-cunhada.
Foi, portanto, para evitar que Adão caísse na tentação desse crime, que viria a chamar-se onanismo, que Deus lhe fez uma segunda mulher, a quem ele deu o nome de Eva. E como a tecnologia de fabricação de seres humanos já havia evoluído para uma etapa, digamos, mais técnica, ele preferiu fazer Eva isolando o que nele havia de feminino e transportando essa qualidade para outro ser, o que, a bem da verdade, como já foi dito e se repete apenas para confirmar a tese, é bem consentâneo com modernas práticas de engenharia genética que hoje são corriqueiras em nossos centros de reprodução humana.
É claro que ao admitir essa hipótese a nossa imaginação não consegue escapar do perigo de ver o Criador como uma espécie de Dr. Frankenstein dessas antigas calendas, que a partir de partes de um ser constrói outro, visão essa que seria até engraçada se não ofendesse uma crença defendida com unhas e dentes por, pelo menos, uma metade da população do planeta que nela enxerga, não apenas uma bizarra metáfora, mas sim uma verdade literal mesmo. E dessa imagem, para não perdemos o curso da narrativa, vejamos Adão se levantando, ainda um tanto tonto como acordam todos os que são submetidos à operações cirúrgicas tão complexas, e vendo do seu lado uma nova companheira ― mulher já composta com todos os atributos que lhe são próprios, os lábios úmidos e carnudos, desejosos de beijar, os seios maduros em condições de amamentar e os órgãos sexuais prontos para receber a semente masculina e procriar ―, tenha dito aquelas palavras que foram registradas: “Esta sim é osso dos meus ossos e carne da minha carne! Ela será chamada mulher, porquanto do ‘homem foi extraída.”
Tenhamos em conta que quem criou essas estranhas versões da criação da mulher não deve ter obrado no vazio, já que essa informação não surgiu apenas do bestunto dele, o que quer dizer que ela não foi gerada a partir do nada nem saiu da sua cabeça por conta de uma imaginação fertilizada pela superstição própria de um povo que acredita ter sido escolhido para ser a maquete ideal da humanidade. Nem que essa informação tenha sido trazida por mensageiros do reino celeste, que de ordinário costumavam fazer regulares embaixadas ao território do dito povo escolhido.
Explica melhor quem diz que na verdade essa narrativa se justifica na própria tradição de uma sociedade fundamentada no
poder patriarcal. E assim é possível conferir alguma credibilidade a quem a cunhou e dizer que nada aqui foi inventado, mas apenas refletido a partir de uma crença vigente naqueles tempos. Porque o conflito pelo poder entre o homem e a mulher é coisa que vem de muito longe e bem certo está quem diz que o homem manda e a mulher obedece, mas no fim ele sempre faz o que ela quer. Mas é daí que se reproduziram histórias, lendas e superstições em voga no ambiente em que viviam, que com o tempo e todas as metalinguagens que se apõem a narrativas como essas se tornam verdades eternas que só a muito custo e coragem de quem o faz acabam sendo desafiadas.
Com tudo isso ficamos a conjecturar no que Adão deve ter sentido ao acordar do seu letárgico sono e ver do seu lado uma mulher toda prontinha, que não precisava ser conquistada com estratégias de sedução ou com outros encantamentos próprios que falam ao coração e principalmente ao ego feminino, que nessas coisas de relacionamento é muito mais exigente que o masculino. E o que deve ter falado nesse momento para ela, pois que a mulher ainda não tinha nome e por inferência queremos crer que nem ainda articulava alguma coisa parecida com um pensamento encadeado pelos padrões da lógica, o que só lhe foi possível depois que lhes foi adicionada no cérebro uma camada mais de neurônios. Isso, sabemos nós, só aconteceu com o propalado episódio da degustação do fruto do conhecimento. E ao que parece, foi depois disso que a mulher desandou desbragadamente a falar, o que ainda hoje é uma causa de desespero para o homem pois para cada palavra que ele articula a mulher despeja pelo menos dez.
A propósito, talvez Adão não tivesse mesmo dito nada, pois o que consta é que quem falou foi Deus e ele disse ao então jovem casal, como se fosse um pastor no seu púlpito, ou um rei no exercício do seu poder de constituir ministros, “sede férteis e multiplicai-vos! Povoai e sujeitai toda a terra; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todo animal que rasteja sobre a terra!”
Bem pode ser. Afinal, Deus é Deus e tudo pode fazer, a seu talante e sem precisar justificar porque o faz desse modo e não de outro que todo mundo possa entender e achar normal. Se ele fez o mundo, o mundo lhe pertence e ele pode fazer dele o que bem entender. Para o que não se justifica qualquer justificativa serve, e esta, como qualquer outra, cabe neste contexto, por isso a registramos e deixamos o seu julgamento para o leitor. Seja como for a forma pela qual a mulher apareceu no mundo e se foi uma ou outra, no caso Eva ou Lilith a primeira, o fato inquestionável é que a cabeça do homem nunca mais foi a mesma depois disso. Porque, ao que parece, as maiores besteiras que ele comete na vida tem sempre um motivo ligado a uma mulher, de sorte que mais certo estavam aqueles gregos que diziam que a primeira mulher foi posta na terra como uma represália de Zeus contra os homens porque estes haviam se rebelado contra os deuses depois que o titã Prometeu lhes entregou o fogo que havia roubado deles. Pandora era o nome que os gregos davam à essa mulher originária, que ao descer na terra trouxe consigo uma caixa com todos os males que os deuses iriam prodigalizar aos homens dali em diante. Não dá para não pensar que essa narrativa não esteja associada ao sexo da mulher, que de fato tem o formato, não de uma caixa, mas de uma pequena bolsa, bolseta, no dizer popular, o que derivou o termo chulo pelo qual é conhecido o órgão sexual da fêmea da espécie humana. De qualquer modo, com qualquer formato, ele pode ser vinculado à famosa Caixa de Pandora, considerando todos os males que um homem atrai para si quando se prende a uma mulher mais pelos seus dotes sexuais do que por outros encantos, diremos, menos libidinosos. Mas como não se quer, neste nosso relato, levantar humores mais peçonhentos do que aqueles que normalmente afloram no espírito das pessoas que são confrontadas com narrativas que contrastam com crenças já nelas entranhadas, fiquemos com a imagem de que a mulher, seja ela Lilith ou Eva, foi feita com o propósito explícito de ser a cara-metade do homem e servir-lhe de matriz na qual ele derivaria seus descendentes. E com isso podemos justificar o curso que foi dado a essa história e aos próprios eventos que hoje estamos vivendo.