A história a seguir ocorreu no ano de 1938, em um tempo que, para muitos, já parece distante, mas cujas dores e paixões ainda ressoam fortes naqueles que a viveram. Trata-se de uma narrativa sobre tragédias, daquelas pertencentes às relações mais íntimas: o amor desafiador das convenções sociais, o ciúme corrosivo, as perdas ao se confrontar verdades inescapáveis.
No entanto, nem tudo o que há na vida se resume à matéria. Às vezes, o peso das vicissitudes humanas se entrelaça com o desconhecido. São forças que escapam da nossa compreensão e nos levam a vislumbrar, ainda que por um instante, os limites entre o mundo físico e o intangível. É de amor e morte que se trata aqui, sem dúvida, contudo há também os mistérios que vão além.
Quando Antônio adentrou à igreja naquele início de noite invernal, seus olhos percorreram urgentes o amontoado de pessoas reunidas sob a fraca luz dos candelabros. Por um momento, pareceu não vê-la ali. Mas, então, no canto mais escuro da capela ele a encontrou. Sim, lá estava Helena completamente isolada em seu luto.
O abandono que a envolvia era tão absoluto, pungente, que se sentiu de súbito tomado por uma compaixão inquieta, quase dolorosa. As mãos dela, pálidas e vazias, repousavam sobre o colo como dois pássaros mortos. A cabeça pendia levemente de lado. O olhar vazio trazia consigo toda a ausência do mundo, como se já não houvesse mais nada a ser visto.
Demorou−se mais do que o decoro permitia em contemplá−la. Não era apenas Helena quem sofria. Algo dentro dele começava também a se despedaçar em silêncio. Era impossível ignorar, apesar do semblante triste dela, a delicadeza de suas feições. A beleza do rosto, mesmo abatido, resistia teimosamente às sombras em seu entorno. E talvez fosse isso a lhe ferir, a lhe inquietar os sentidos: vê-la assim tão bela e próxima sem poder consolá-la de modo terno como merecia.
No entanto, havia algo de muito estranho na cena. Alguma coisa escapava-lhe à razão de momento, deixando-o apreensivo. Foi só depois de alguns minutos que compreendeu, com súbito assombro e horror, de onde vinha tal inquietação. O isolamento de Helena era muito mais grave do que apenas distanciar−se voluntariamente para chorar o seu luto.
Ela não reagia às vozes abafadas, aos olhares furtivos. Não compreendia o motivo pelo qual até então ninguém se aproximara a fim de lhe apertar a mão, ou murmurar palavras de condolências.
Talvez, atreveu-se a pensar, Helena acreditasse que o luto lhe cabia apenas pela morte do marido. Ah, mas que terrível engano! Teve ímpetos de alertá-la, de gritar-lhe a dura verdade de onde estava, no entanto calou-se. Como desfazer em palavras um véu tão denso quanto aquele a cobrir os olhos de quem ainda ignora não estar mais entre os vivos?
Helena, sua amada Helena, sentada no canto mais escuro da capela, ainda não se apercebera de que ela mesma estava morta!
O dom de enxergar os mortos sempre lhe causara grande infortúnio. Amargou demais à própria sorte até acostumar-se com aquele fenômeno. No início, foi um tormento. Adolescente ainda, mal conseguia entender o que havia de errado com ele e, quando finalmente entendeu, sentiu o chão firme de sua existência ser arrancado sob seus pés.
O mundo conhecido desaparecera, substituído por outro povoado por almas penadas vagando pelas ruas como sombras indiferentes à própria condição de inexistência. E ele, o único a percebê-las, sentia a sua mente quase colapsar de tempos em tempos. O que fazer, afinal, com uma habilidade que parecia mais uma maldição?
Passou por crises que por pouco não o levaram à loucura. Perdeu o sono, o apetite, a esperança. Porém, com o tempo, e que tempo longo foi esse, decidiu dar algum sentido àquele fardo. Fez do seu tormento um propósito: ajudar as pobres almas a enfrentarem a verdade cruel do passamento derradeiro.
Ele sabia, como poucos, o que acontecia com as almas logo após o último suspiro do corpo físico. Não era um saber aprendido, mas algo apenas existente dentro dele. As almas recém−libertas eram lançadas ao limbo, uma dimensão sombria e atemporal suspensa entre a matéria e o eterno desconhecido. Nesse estranho território, elas assumiam diferentes comportamentos.
Algumas, de imediato, reconheciam a trágica circunstância, no entanto se recusavam a atravessar a fronteira dos dois mundos. Não era fácil deixar para trás pendências, amores, ressentimentos ou sonhos inacabados. Outras, mais confusas, vagavam sem rumo, ignorantes da sua nova realidade. Esquecidas de si, demoravam-se mais até despertar para a verdade. Sua querida Helena, infelizmente, estava entre estas últimas.
E agora, presa ao limbo de um destino incompreensível, ela precisava de ajuda. Não havia como fugir da responsabilidade imposta por sua insólita habilidade: cabia a ele a difícil tarefa de fazê-la reconhecer-se morta!
Então, reuniu a coragem necessária e foi ao encontro dela. Caminhou em silêncio, em passos hesitantes, como se temesse o chão desabar sob seus pés. Não queria atrair a atenção dos parentes. Aproximar-se de Helena, naquele estado, era um paradoxo cruel: a mulher que tanto amou em vida agora precisava dele para partir definitivamente. Quando chegou perto o suficiente, apelou para um tom de voz suave, carregado de cuidado, quase um sussurro a fim de não a assustar.
— Helena, querida...
— Oh, Antônio! − ela levantou-se do banquinho depressa, com o rosto marcado por uma aflição quase desesperada. − Como você demorou, querido… não sei... hum... não sei o que está acontecendo! Ninguém quer falar comigo. Veja só, eles estão me ignorando. Não respeitam a minha dor.
— Você já foi ver o Joaquim? − perguntou, indicando com o queixo os dois caixões dispostos no centro pouco iluminado da capela.
— Não! Eu não tenho coragem de olhar. Querido… hum... o Joaquim descobriu tudo sobre nós. Tudo! − murmurou ela, em tom ansioso, entrecortado, como se temesse que as paredes úmidas da igreja pudessem ouvir tais confidências. − Ele deve ter contado o nosso segredo a todos antes de morrer. Talvez seja essa a razão de tanta frieza comigo. Só pode ser isso. Não há outra explicação.
Antônio levou a mão esquerda à boca e pigarreou. Tentou disfarçar o constrangimento diante da ingenuidade desconcertante de Helena sobre sua própria condição de morte. Não podia falar muito. Desviou o olhar ao redor, preocupado, temendo ser surpreendido por um parente distante ou algum conhecido curioso. Sabia bem que a maioria dos parentes o considerava um homem excêntrico, perdido em distrações, sempre a olhar para o vazio. E falar sozinho com a parede da igreja, fosse por distração ou por um leve traço de loucura, certamente não ajudaria em nada sua reputação.
— Helena… − disse quase num sussurro, desviando o olhar novamente para o centro da igreja. − Você precisa ser forte e ir até lá.
— Oh, Antônio, não tenho coragem. Não posso olhar. Não depois que ele descobriu de tudo sobre nós!
— Escute, querida − retrucou, contendo a impaciência de vê−la naquela situação. − Joaquim não pode fazer mais nada contra mim ou contra você. Meu primo está morto, Helena. Morto! Entende?
Ela balançou a cabeça com lentidão. Seus olhos tornaram a fixar−se no chão da capela, vazios, a procurar ali alguma resposta.
— Não, não, não. Quero ficar aqui – murmurou depressa, a voz cada vez mais baixa, os dedos crispados no banco como se este fosse o último refúgio.
— Meu amor… − ele insistiu, ainda mantendo o tom suave, embora o peso de cada palavra parecesse lhe arranhar a garganta. − Você já percebeu que há dois caixões sendo velados na igreja? − Apontou o dedo indicador naquela direção.
Os dois caixões, de fato, repousavam sob a luz bruxuleante de um candelabro em meio à penumbra no centro da igreja, lado a lado. Em lugares como aquele, uma cidadezinha perdida entre as regiões distantes dos grandes centros urbanos, a igreja era mais que um templo. A tradição ainda não permitia as luzes modernas no seu interior. O local santo, porém, era o centro de todas as despedidas.
Só havia um padre, uma única capela mortuária e, quando a morte se apressava em acolher mais de um morador, mesmo de famílias diferentes, não era raro velar os corpos juntos como mandava o costume local. Era prático, insistiam. Para ele, no entanto, aquilo sempre lhe parecera uma espécie de ironia sombria: duas vidas, às vezes, tão diferentes encerradas num mesmo ritual, compartilhando a mesma última oração.
Helena lançou o olhar hesitante para o grupo de parentes aglomerados em torno dos esquifes. Por um instante, as suas sobrancelhas se ergueram com curiosidade, mas quase tão rápido quanto surgiu, aquele vislumbre desapareceu. Voltou-se para ele com um dar displicentes de ombros.
— E daí? Pode ser qualquer pessoa. Afinal, esta capela não é pra isso mesmo? Velar os mortos?
A facilidade com que ela se desviava da realidade incomodava-o cada vez mais. Era quase um reflexo instintivo. Dizer-lhe a verdade, naquele estado, revelou-se mais difícil do que havia previsto. Não estava preparado para tamanha resistência. Teria de recorrer a uma abordagem mais direta:
— Helena, minha querida, observe bem. Todos os membros da nossa família estão reunidos… em torno dos dois caixões!
Ela hesitou. O olhar deslizou novamente para o grupo. Desta vez, porém, demorou−se mais. Absorveu cada detalhe com a cautela de quem começa a perceber algo de muito estranho. Aos poucos, os seus olhos azuis se dilataram, como se o próprio horror os tomasse de assalto. As linhas de sua testa se franziram de preocupação e os lábios, pálidos, começaram a tremer com um ricto de pura inquietação.
Ela deu dois passos à frente e postou-se ao lado do amante.
— Antônio… quem... quem morreu, além do Joaquim? − perguntou, a voz grave e cortante, sem rodeios.
Ele engoliu a saliva, nervoso. Não havia mais espaço para subterfúgios.
— Querida…
— Quem? − ela insistiu voltando-se para ele, a intensidade do olhar atravessando-o como uma lâmina.
Não havia outra saída.
— Foi você.
O impacto das palavras foi perturbador, ainda mais proferidas em tom baixo. Helena buscou a verdade nos olhos dele. Era preciso sustentar aquele exame desesperado, embora a tarefa lhe parecesse muito difícil. Esforçou-se para manter a calma e não se desviar do olhar perscrutador dela. Não queria alimentar falsas esperanças.
Helena suspirou fundo, cansada, e seus ombros murcharam. Ele se resignou em aceitar a impossibilidade de não poder fazer mais nada para confortá-la.
— Ok… eu… eu vou lá − disse ela, com voz hesitante, quase inaudível.
— Vá, meu amor − ele também sussurrou.− Seja forte.
Não houve despedida entre eles. Helena, afinal, ainda não havia assimilado completamente o peso da verdade. Ela caminhou para o centro da capela em passos incertos, como quem hesita à beira de um abismo, enquanto Antônio, à distância, murmurava um “adeus” carregado de tristeza.
Havia algo de cruel, de inevitável naquele momento, e ele sabia o que estava por vir. Já havia testemunhado o fenômeno incontáveis vezes, entretanto nunca deixava de se impressionar. Quando Helena confirmasse o próprio corpo no caixão, o assombro do passamento derradeiro seria desencadeado de forma rápida, desesperadora, resplandecente e sem retorno.
Ela se aproximou dos esquifes em passos hesitantes, ombros curvados, as mãos tremendo nervosas, sem se dar conta da proximidade dos parentes. Quando seus olhos pousaram sobre o caixão onde repousava o próprio corpo, ela estacou e tomou um susto recuando dois passos. Na mesma hora, virou o rosto estupefato para Antônio e o encarou num misto de horror e súplica. Ele fez menção de ir ao seu encontro, porém conteve-se. Em seguida, Helena apontou o dedo trêmulo para o caixão enquanto balançava a cabeça em negação e ele pôde ler os seus lábios: “não pode ser, isso é impossível!”
Mas o desespero não demorou a ceder. Aos poucos, o pânico deu lugar a perplexidade silenciosa e suavizou a expressão da mulher amada como um sopro divino. A serenidade começou a emergir tímida no brilho dos olhos, espalhou-se por suas feições até apagar os vestígios do horror recente. Ela estava linda, plácida e bela, como um anjo que não precisasse de asas, pensou.
De repente, Helena olhou para as próprias mãos. De algum modo que Antônio jamais soube compreender, o passamento derradeiro sempre se iniciava pelas mãos. Era como se elas, expressões diretas do contato humano, carregassem uma memória profunda de tudo que tocamos em vida. E foi através das mãos de Helena que o fenômeno começou: uma luz suave e constante brotou-lhe a partir dos dedos, subindo pelos punhos, cotovelos, braços, envolvendo o torso e se expandiu até cobrir todo o corpo.
A luz brilhava forte, a fazer o resto do mundo parecer distante, quase apagado. Dava à impressão de uma janela sendo aberta num quarto escuro, deixando entrar os primeiros raios de sol resplandecente. Antônio sentiu-se só, profundamente só, por ser a única testemunha daquele espetáculo fulgurante, grandioso, lindo... no entanto efêmero.
A luz a tomou por completo. Tornou impossível distinguir as linhas do corpo da mulher amada. Helena passou a flutuar alguns centímetros acima do chão, a desafiar o peso do mundo que acabava de abandonar. Em um último e intenso clarão, o brilho atingiu seu auge ofuscante, divino, e desapareceu de súbito, levando-a consigo para sempre.
De fato, foi lindo, apesar de muito triste, pensou.
Ele permaneceu imóvel por um momento. Silencioso. Tristonho. A perda da mulher amada deixara−o desolado. Depois, deixou-se cair sentado no velho banquinho de madeira. As memórias vieram para confortá-lo, invadindo−o como uma onda.
Helena… Ah, Helena. Quantas vezes se amaram de forma intensa, quase febril, entre os poucos momentos que a clandestinidade lhes permitia. Recordou o riso abafado de encontros às pressas, os beijos ardentes, o perfume inebriante, as trocas furtivas de olhares. Um sorriso fraco se lhe escapou dos lábios. Era mesmo irônico sentir uma pontada de felicidade nostálgica em meio àquela devastação.
Nunca a esqueceria. Jamais! Ela seria, para sempre, a sua…
— Antônio, seu desgraçado, traidor! Vou te matar com as minhas próprias mãos!
Saltou do banquinho como uma mola, assustado. O grito de fúria preencheu a capela. Durante todo aquele tempo, Antônio havia esquecido de Joaquim, o primo traído. Ponderou rapidamente sobre a situação do marido de Helena. Joaquim deveria saber da sua própria condição de morte, mas provavelmente se recusava a partir. O homem era de espírito turrão, teimoso, e havia uma pendência importante por resolver. E tal pendência era com ele, o amante da esposa.
Os espíritos vingativos são os mais difíceis de convencer a aceitar o passamento derradeiro. Eles agarram-se ao mundo dos vivos como náufragos em destroços, vagando entre as casas, arrastando móveis, quebrando vidros, perturbando aqueles que consideram culpados de suas desgraças. Para eles, o tormento alheio é a única compensação para justificar o peso de sua tragédia. A morte, nesses casos, não traz paz. Apenas a obsessão.
E, então, tudo aconteceu de forma brutalmente rápida.
Joaquim entrou na capela como um furacão. O ódio iluminava seus olhos como brasas vivas. Seu braço esquerdo estava envolto em gazes sujas, o rosto marcado por cortes ressequidos, e ele mancava com dificuldade. Mesmo nesse estado deplorável, o homem parecia invencível, uma força da natureza que não podia ser detida.
Antônio preparou-se para o confronto. O instinto era de resignação. Estava disposto a enfrentar a vergonha de ser escorraçado por um defunto. Pensando melhor, não estava com medo. Tinha certeza de que fisicamente Joaquim nada podia fazer contra ele. Mas, para o seu espanto, o primo enfurecido não veio em sua direção!
Em vez disso, o furibundo lançou-se, feito uma fera descontrolada, diretamente contra os dois caixões. Ele empurrou os parentes que se aglomeravam ali, derrubando quem estivesse no caminho, indiferente aos gritos e às mãos estendidas que tentavam detê-lo. Com o ombro ileso, num tranco brutal, empurrou os ataúdes com toda a força que seu corpo debilitado ainda conseguia reunir.
O som foi ensurdecedor.
Os caixões tombaram de lado, espatifando-se no piso de mármore num estrondo que reverberou por toda a capela e fez até os candelabros no teto balançarem como pêndulos macabros. A madeira estalou, rachando-se como cascas frágeis.
Os tios de Joaquim gritaram, horrorizados, e lançaram-se sobre ele para contê-lo. As tias berravam, histéricas, as mãos nos rostos. O alvoroço tomou conta do lugar, um escândalo jamais visto na cidade, um verdadeiro caos.
Mas, no meio daquela confusão, Antônio viu!
O primeiro caixão arrebentado revelou os cabelos de Helena espalhados pelas laterais, como uma onda dourada que escorria da madeira. No outro, ele viu o conteúdo expelido durante a queda. E foi a partir daí que o mundo dele virou sob a visão insólita diante de si.
Não era o corpo do primo!
Ficou perplexo, estupefato, piscando diversas vezes para confirmar que os seus olhos não o estavam enganando.
Pois era ele!
Sim, era ele!
Os olhos fechados, o rosto pálido, os membros torcidos em ângulos grotescos. Aquele corpo era o seu. Estava ali jogado ao chão, inerte, frio como pedra, tão morto quanto Helena.
De súbito, o vazio tomou conta de tudo. A verdade chocante caiu sobre ele como um golpe implacável, deixando-o completamente atônito: ele estava morto, e não sabia!
A visão do seu próprio corpo o atingiu como um soco no estômago. Foi impossível desviar os olhos do reflexo distorcido de si mesmo jogado ao chão da igreja como um boneco de pano. A dura realidade abriu-se diante dele, e as lembranças lhe sobrevieram de forma avassaladora.
A sequência de imagens lhe parecia um filme, cruel e inescapável, que se projetava diante dos olhos em cada detalhe da tragédia. A começar pelo bilhete. Sim, o bilhete que Helena enviara às pressas nas mãos trêmulas do filho da empregada. Ele imaginou a voz nervosa dela em cada palavra rabiscada: “Joaquim descobriu tudo. Ele quer nos matar. Fuja, meu querido!”
A cena seguinte pulou para ele mesmo, Antônio, saindo de casa em meio à noite chuvosa. O coração disparado. O revólver pesando como uma sentença em sua mão. A chuva caía pesada. Transformava as ruas de paralelepípedos em trilhas escorregadias, enquanto relâmpagos cortavam o céu escuro em rabiscos frenético. Ele correu em direção à residência do casal.
No meio do caminho, ele viu o carro!
O chevrolet Master Sedan preto, reluzente mesmo sob a chuva torrencial, surgiu na curva como um animal enfurecido. Os faróis brilhavam ameaçadores. Antônio podia ver com clareza o rosto de Joaquim, distorcido pelo ódio, dentes cerrados e as mãos agarradas ao volante como garras. Ao lado dele, Helena. Ela chorava, os cabelos encharcados, as mãos agitadas enquanto tentava tomar o controle do veículo.
Ele, desesperado, sem pensar, levantou o revólver e atirou, mas o carro sacudiu de lado em um desnível da rua. O estampido do tiro ecoou na noite. A bala acertou a cabeça de Helena. Ele viu o instante exato em que a cabeça dela pendeu para o lado, o sangue a misturar-se à chuva no vidro. Os faróis do Chevrolet cresceram diante dele, devorando tudo em seu caminho.
Foi a última coisa que viu.
— Os desgraçados eram amantes! Eles eram amantes! Eles eram…
Os gritos alucinados de Joaquim ecoavam pela capela, a princípio, como o potente rugido de uma fera enjaulada. Mas não demorou muito tempo para começar a diminuir, tornando-se apenas um sussurro distante.
E, então, veio o silêncio.
Dentro dele, algo começou a mudar. Era como se um véu invisível se dissipasse do peito, libertando-o de um peso que ele nem sabia carregar. Uma paz inexplicável irrompeu lenta, mas acolhedora, apagando as dores, as culpas e as sombras que o envolviam. O caos de antes dava a impressão de um eco remoto, incapaz de alcançá-lo.
Sentiu o corpo leve, mesmo a gravidade não tendo mais poder sobre ele. Era uma sensação nova, desconcertante, agradável e impossível de descrever. Não pôde resistir e olhou maravilhado para as próprias mãos porque, sabia muito bem, eram através delas que se iniciava o passamento derradeiro.
E elas começaram a brilhar!