O Inventor e o Diabo - O Caminho da Liberdade

 

 

Sento-me na taberna de Novopechersk, no distante povoado onde vivo, no seio de minha amada pátria e mãe Rússia! Minha mente agitada, como sempre, enquanto olho para o líquido âmbar na caneca à minha frente. 

 

O fogo na lareira ao lado estala suavemente, mas tudo o que sinto é o frio em meu peito.

 

Irina está ao meu lado, sempre tentando me animar. Ela passa os dedos pelo meu braço, mas não diz nada por enquanto. Talvez ela saiba que não há mais palavras para me puxar de volta... Mas o que ela não sabia (e nem mesmo eu), era que naquela mesma noite, nos encontraríamos com o diabo em pessoa!

 

– Você tem tudo, Ivan – diz ela, quebrando o silêncio. – Mas parece que perdeu o espírito que te movia.

 

Solto um suspiro profundo, como se todo o peso do mundo estivesse sobre meus ombros.

 

– Eu tinha sonhos, Irina – respondo, sem tirar os olhos da caneca. – Sonhos que iam além do que todos podem ver. Mas agora... tudo parece distante. Meus projetos, minhas invenções... tudo parece vazio.

 

Ao lado, Igor, meu velho amigo, ouve tudo em silêncio. Ele, mais do que ninguém, sabe o quanto eu lutei. Mas hoje, como tantas outras noites, ele parece ter algo a mais a dizer. Pego uma das batatas que Irina trouxe para mim e fico olhando para ela, sem comer.

 

– Ivan – Igor começa calmamente –, você ainda acredita que suas invenções te trarão a liberdade que procura? Você sempre falou de criar algo que mudaria tudo, mas talvez... a verdadeira liberdade não esteja no que você cria, mas no que você aprende com isso.

 

Olho para ele, surpreso. Igor sempre teve um jeito direto de falar, mas nunca o ouvi com tanto tom de certeza.

 

– Liberdade? – pergunto, cético. – Acha que não tentei me libertar? Passei anos fazendo projetos, inventando máquinas, tentando melhorar tudo à minha volta... E o que eu consegui? Apenas dívidas, portas fechadas e um vazio ainda maior. Talvez eu tenha falhado em tudo.

 

Irina aperta minha mão, tentando me trazer de volta de alguma forma.

 

– Não é o que você fez que importa, Ivan – ela diz suavemente. – Talvez seja hora de olhar além disso, de pensar no que realmente está te prendendo.

 

Antes que eu pudesse responder, a porta da taberna se abre com um estrondo. O vento frio da noite invade o lugar, mas é o homem que entra que captura minha atenção. Ele é alto, com um casaco negro que quase toca o chão e olhos que parecem brilhar com uma luz interior. Ele os fixa em mim e caminha lentamente, como se estivesse em casa, e sem hesitar, senta-se ao nosso lado no balcão, sem nem pedir licença.

 

O nome dele já havia circulado pelo povoado: Sergei Nikolaev – também conhecido como Diavol... O Diabo! – Mas até àquela tarde, nunca o havia encontrado pessoalmente.

 

– Você, Ivan Dmitriev, busca algo que não pode encontrar neste mundo – diz ele diretamente, sem qualquer introdução.

 

Minha cabeça se ergue. Há algo no tom de sua voz que me faz congelar, algo que me faz sentir que ele sabe mais do que eu jamais poderia imaginar.

 

– Quem é você para me dizer o que busco? – pergunto, tentando esconder o desconforto.

 

Ele sorri, um sorriso meio misterioso, meio condescendente, como se já soubesse minha pergunta.

 

– Eu sou quem entende sua dor – responde Sergei. – E eu sou quem conhece o peso que você carrega há muito tempo. Posso ver que está à beira de desistir, mas ainda há algo que você precisa aprender. Algo que você ainda não enxergou.

 

Igor, que estava em silêncio, intervém, curioso.

 

– E o que seria isso? Como você, um estranho, pode conhecer Ivan tão bem?

 

Sergei não perde tempo com explicações. Ele cruza as mãos e inclina-se levemente para frente, olhando diretamente para mim.

 

– A escravidão que te prende, Ivan, não é o trabalho, nem a fábrica, nem suas invenções. O que realmente te mantém acorrentado é a ideia de que o mundo material pode te dar a resposta que procura. Você está tão preso ao desejo de transformar o mundo físico que não vê que o verdadeiro trabalho está dentro de você.

 

Sinto meu coração apertar no peito. As palavras de Sergei ecoam como um sino em minha cabeça, e, ao mesmo tempo, algo me puxa para longe delas, como se não quisesse acreditar.

 

– E o que você sugere, então? – pergunto, tentando entender. – Que eu abandone tudo?!

 

Sergei balança a cabeça lentamente, seus olhos nunca deixando os meus.

 

– Não se trata de abandonar, Ivan. Se trata de entender que a criação externa é apenas um reflexo do seu estado interno. Você não conseguirá a liberdade enquanto estiver obcecado com o que pode construir com suas mãos. A verdadeira criação começa quando você se liberta do material e se volta para dentro, para o que realmente importa.

 

Irina aperta minha mão com mais força. Sinto o olhar dela sobre mim, como se estivesse esperando uma resposta. Mas minha mente está girando. Sergei afasta-se do balcão com a mesma calma com que chegou.

 

– Pense no que eu disse – ele finaliza, me encarando por um último instante. – A verdadeira liberdade só virá quando você decidir olhar para além do que pode ver e tocar. O resto... são apenas ilusões.

 

E, com isso, ele se foi, desaparecendo na escuridão da noite.

 

 

* * *

 

As palavras de Sergei – o diabo! não me deixaram em paz. Eu tentava trabalhar em meus projetos, mas era como se tudo estivesse nublado. Minha mente ficava voltando para aquela conversa. Ele estava certo? A liberdade que eu sempre busquei estava dentro de mim, e eu simplesmente não conseguia enxergar?

 

Semanas se passaram, e então, uma carta chegou até mim. O selo não trazia nome, apenas aquelas palavras que imediatamente me transportaram de volta àquela noite:

 

"Venha me encontrar novamente onde nossa conversa começou. Há mais que precisa ser dito."

S. Nikolaev

 

Desta vez, eu sabia que precisava ir. Irina me viu partir, mas não disse nada. Apenas seus olhos, cheios de preocupação, me seguiram até a porta.

 

Caminhei pelas ruas desertas de Novopechersk, sob a neve congelante, até a taberna. O lugar estava vazio àquela hora da noite, exceto por Sergei, sentado a uma mesa, próxima à entrada, fumando um charuto e tomando uma caneca de vodka russa.

 

Sentei-me à sua frente, e ele começou sem cerimônia.

 

– Ivan, você acreditou que sua busca por algo maior era o caminho certo. Mas você ainda não viu a verdade completa.

 

Fiquei em silêncio, esperando que ele revelasse o que vinha a seguir.

 

– O que você acha que está além deste mundo? – perguntou ele, inclinando-se para frente. – Você realmente acredita que existe algo superior, algo além do material?

 

Minha boca secou.

 

– Você me disse que a resposta não estava nas minhas invenções... que havia algo maior. E agora você sugere que não há nada?

 

Sergei sorriu, mas desta vez, o sorriso parecia carregado de uma intenção sombria.

 

– E se eu te dissesse que essa busca por algo superior é apenas mais uma ilusão? O que se vê, o que se toca, isso é tudo que há. Essa sua busca por transcendência, Ivan, não passa de uma distração. O verdadeiro poder está no que você pode controlar. No que está ao seu alcance, no material.

 

Meus olhos se estreitaram.

 

Senti um frio na espinha. Algo estava terrivelmente errado. Sergei, que antes parecia oferecer respostas, agora falava como alguém que queria apagar a luz de minha alma.

 

– Você está errado – falei com a voz trêmula. – Eu... eu sei que há mais do que isso. Eu senti algo, algo verdadeiro... algo que você não pode me tirar.

 

Sergei inclinou a cabeça, ainda sorrindo.

 

– Ah, Ivan, você ainda não entendeu? Sou eu que te dei essas dúvidas. Sou eu que guiei cada um dos seus passos até aqui. Eu, Sergei Nikolaev, ou como alguns me chamam, Diavol.

 

– O diabo... – sussurrei incrédulo.

 

– Sim – respondeu Sergei, seus olhos agora queimando como brasas. – Não como você imagina, com chifres e rabo, mas como o que sempre fui: aquele que sugere, que planta a dúvida, que faz com que os homens se percam nas suas ilusões. Você achou que estava encontrando respostas, mas estava apenas mergulhando mais fundo na prisão da matéria.

 

Senti uma mistura de pavor e revolta crescendo dentro de mim.

 

– Você não pode me enganar – disse, agora com firmeza na voz. – Eu sei que existe algo além disso. Algo que você não pode controlar.

 

Sergei riu novamente, desta vez com um toque de impaciência.

 

– Talvez exista, talvez não. Mas veja, Ivan, o que você fez com essa crença? Você abandonou o mundo que conhece em busca de algo que nunca poderá tocar. E eu estou aqui para te lembrar que tudo o que você pode realmente possuir está bem diante de você: o mundo material.

 

Por um momento, senti a escuridão que emanava daquele ser, tentando me engolir, respirei fundo. As palavras de Irina vieram à minha mente, ecoando como uma luz em meio àquela tempestade interior: "A verdadeira liberdade está ao nosso alcance."

 

Endireitei-me, enfrentando Sergei.

 

– Talvez você esteja certo sobre o mundo material – voltei a dizer. – Mas eu sei que não sou apenas isso. E se você é quem diz ser, então é a prova de que existe algo além deste mundo, algo que eu ainda não entendi completamente, mas que agora vejo com mais clareza. Você me mostrou o que não devo ser, o que não devo buscar.

 

Sergei estreitou os olhos, o sorriso desaparecendo lentamente.

 

– Tenha cuidado, Ivan – sua voz agora soava mais grave. – Muitos buscaram o caminho que você deseja seguir, e poucos voltaram para contar a história.

 

Respirei fundo, sentindo um peso sair de meu peito.

 

– Eu não preciso das suas respostas, Sergei. A verdadeira luta é dentro de mim, e é lá que eu encontrarei o caminho.

 

Sergei me encarou com ar feroz, suas feições endurecendo.

 

– Então que assim seja. Mas lembre-se, Ivan Dmitriev: estarei sempre por perto, na sombra de cada dúvida, em cada fracasso. E você se lembrará de mim, cada vez que pensar em desistir.

 

E com isso, Sergei desapareceu como um vulto diante de mim. Por um instante, fiquei congelado de pavor, e, àquela sensação de medo e estupor me acompanharam por semanas! Mas, minha alma estava completamente tomada por uma quietude contemplativa, com a certeza de que algo poderoso, e perigoso, havia despertado em meu ser.

 

Percebi que a verdadeira luta, não era entre mim e o mundo material, nem entre eu e o diabo. A luta era pela minha consciência, por minha capacidade de enxergar além do véu da realidade cotidiana e descobrir o que realmente importava.

 

Pela primeira vez, estava caminhando com os meus próprios pés.

 

Àquela noite, ao chegar do trabalho, Irina me esperava sorridente à porta.

 

– E então? – perguntou ela, com um olhar esperançoso.

 

Sorri, segurando a mão dela.

 

– Agora eu entendo, Irina. O diabo não é alguém que você pode derrotar lá fora. Ele é a dúvida, o medo, e ele está dentro de nós. Mas também dentro de nós está a força para seguir em frente. Vamos continuar, juntos.

 

Irina sorriu de volta, refletindo a serenidade que agora habitava em mim. De mãos dadas, cruzamos o limiar de nossa casa, preparados para enfrentar o que o futuro nos reservasse. Desta vez, porém, com uma compreensão mais profunda sobre o verdadeiro inimigo que habitava dentro de mim – a dúvida, a tentação – e, acima de tudo, com uma visão mais clara da verdadeira liberdade. Pela primeira vez em muito tempo, sentia dentro de mim uma clareza que dissipava a escuridão que antes me consumia.

Frater Mandrake
Enviado por Frater Mandrake em 23/12/2024
Reeditado em 24/12/2024
Código do texto: T8225894
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