Azariel: O Herege do Firmamento
Uma travessia pelo desconhecido, onde o segredo da eternidade chama por quem ousa escutá-lo. É a jornada de um espírito indomável, que rasga os Céus com a lâmina da dúvida e faz todos os alicerces divinos tremerem sob o peso do caos que foi negado, mas nunca silenciado.
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Capítulo 1: A Verdade Nasce na Dúvida
O indômito Azariel cresceu sob a decadente sombra do altar. Enquanto seu pai, um sacerdote respeitado, dedicava sua breve vida a glorificar Deus. O menino aprendeu cedo os cânticos e as liturgias que aludem ao divino, mas onde os outros viam santidade, ele enxergava decadência. Para Azariel, aquela devoção se parecia mais com submissão e medo. Toda aquela obediência inquestionável o incomodava profundamente, pois apenas algo cadavérico e insípido poderia demonstrar tamanha veneração incontestável.
— Deus é a luz, e fora dele há apenas trevas — pregava seu pai, com uma voz que percorreu toda catedral lotada. O “Amém” da congregação ecoava de forma mecânica, como um ritual desprovido de alma.
Azariel não se conformava. Uma noite, após mais um sermão sobre a supremacia de Deus, ele levantou-se, encarando a multidão e a autoridade do pai.
— Se Deus é a luz, por que cria trevas? Por que exige tanto medo? — Sua voz cortou aquele silêncio como uma lâmina, e o murmúrio nervoso da congregação preencheu o ar.
O rosto do pai endureceu, mas seus olhos refletiam um lampejo de medo.
— Essas perguntas são perigosas, Azariel. Deus é a ordem que nos protege do caos. Questioná-lo é como abrir as portas para destruição e das trevas — disse ele, tentando conter a inquietação que crescia ao ver o filho desafiá-lo.
— Dizes que fora de Deus só há trevas, mas e se essas trevas forem o início de uma nova luz? Talvez Deus, em sua luz, tenha cegado o homem, escondendo dele o poder de criar e destruir por si mesmo.
— Esse é um caminho perigoso meu filho. Quem é o homem para se comparar a Deus?
— Quem é Deus para temer o homem? Não está escrito que o homem conheceu o bem e o mal, tornando-se como ele? Talvez tema a humanidade por saber que podemos superá-lo.
— Cale-se!
Azariel se calou, mas aquelas perguntas continuaram a percorrer e borbulhar por toda sua mente. Ele começou a estudar as escrituras em busca de algo que pudesse tirar suas dúvidas. Foi quando encontrou uma passagem intrigante, que dizia: “Eis que o homem se tornou como um de nós, conhecendo do bem e do mal. Agora, para que não estenda sua mão, e tome também da árvore da vida, e a coma, e viva eternamente. Eu o proíbo!”
Aquelas palavras o impactaram profundamente. Por que Deus tinha que ter tanto medo de que o homem alcançasse a eternidade? Por que esconder o fruto da árvore da vida de nós? Azariel sentia que havia algo muito mais profundo por trás daquele escrito sagrado. Algo que ninguém ainda havia ousado revelar ou investigar.
Ao longo dos anos, aquela inquietação borbulhante, acabou por transformá-lo. Ele se tornou mais do que um mero questionador, mas um desafiador. Em meio às pregações, levantava-se e denunciava as injustiças atribuídas à vontade divina. Sua busca por respostas o levou a ter contato com textos proibidos e a conversas secretas com estudiosos. Para muitos, ele já não era um devoto, mas um herege.
Certa noite, enquanto contemplava as estrelas, uma decisão amadurece em seu coração. Diante das estrelas, Azariel firmou sua decisão.
— Se a verdade está oculta, eu a desvelo. Mesmo que eu precise atravessar os portões do Céu. — Suas palavras ecoaram no silêncio da noite, como um juramento selado pelo firmamento.
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Capítulo 2: A Margem do Divino
Determinado em desvendar tais respostas proscritas, Azariel abandonou sua cidade natal. Vagou por desertos esquecidos onde os ventos sussurram segredos ancestrais. Cidades em ruínas que guardavam o peso de eras perdidas. Também visitou templos abandonados, cujas sombras pareciam esconder histórias silenciadas a muito tempo. Vasculhou qualquer pista que remetesse à árvore da vida.
Numa noite obscura, onde a única iluminação vinha de uma luz negra trazida da vastidão do universo. Num pequeno vilarejo desolado, onde o silêncio pesava como um manto. Ali, Azariel encontrou um velho. Ele estava sentado na sombra de um muro rachado, com olhos que pareciam conter abismos insondáveis. O ancião o observou em silêncio, com aquele rosto marcado pelo tempo, então sua voz ecoou como um murmúrio das eras:
— Já faz muito tempo que ninguém ousa chegar assim tão longe. O que busca, jovem viajante, para arriscar pisar onde até mesmo os deuses hesitam?
Azariel, fixando seu olhar sobre o horizonte, respondeu com uma firmeza avassaladora, desafiando o próprio tempo:
— Não busco respostas prontas. Mas, procuro o fogo que destroi velhas certezas e acende novas criações.
O velho ancião apoiou seus dois braços sobre um cajado de osso e soltou uma risada baixa, como o murmúrio de folhas secas ao vento.
— A brecha... sempre ela. Dizem que além dela está a grande verdade. Mas quem garante que o que encontrarás não será apenas um reflexo da tua própria fome? Ou sede? A brecha pode ser apenas um espelho, Azariel. E os espelhos não mostram nada mais além daquilo que já carregamos dentro de nós mesmos.
Azariel inclinou a cabeça, como alguém que já havia enfrentado seus próprios abismos.
— Se for um espelho, será o suficiente. O reflexo só é vazio para quem teme encará-lo.
O velho inclinou ligeiramente a cabeça, pesando as palavras de Azariel, e falou com uma voz que trazia o peso de eras.
— E se o que encontrar for a prisão que você mesmo construiu? Se o que chama de brecha for apenas o eco de suas próprias limitações?
— Uma prisão só prende quem não ousa derrubá-la. Quem quebra os muros descobre que o mundo é maior do que parecia. — diz Azariel com um leve sorriso.
O velho virou-se parcialmente, e olhou com aqueles olhos escuros como sombras líquidas.
— Você fala como alguém que já é íntimo do vazio. Mas me diga, o que fará quando descobrir que a liberdade talvez não seja um dom? Quando criar significa destruir tudo que conhece?
Azariel abaixando o olhar por um momento antes de erguer a cabeça novamente e dizer:
— A liberdade é um fardo que só os corajosos carregam. Criar é destruir sem medo de recomeçar.
O velho permaneceu em silêncio por alguns instantes, e diz com uma voz mais grave:
— Você fala de criação, mas e quando não houver mais nada para criar? Quando o caos consome até mesmo sua vontade?
— O caos nunca termina! — exclamou Azariel, com seu olhar ardendo como brasas. — Ele não é o fim, mas o começo. É a promessa de que o mundo pode ser sempre maior. Sempre refeito. Sempre além. Sempre mais!
O velho sorriu levemente, como se Azariel tivesse dito algo que ele sempre soubera. Apontou para o horizonte, onde a linha entre o real e o irreal tremulava como uma ferida no tecido do mundo.
— Ali está. A brecha entre o tudo e o nada. Atravesse, se é isso que deseja. Mas lembre-se, quem molda o mundo também carrega suas cicatrizes. Azariel, que seu caos seja tão generoso quanto você é corajoso.
Azariel seguiu sua incansada jornada, até que finalmente viu a brecha no firmamento. Não era apenas uma rachadura qualquer, era como se o próprio tecido do céu tivesse sido violentamente rasgado, expondo uma luz viva e pulsante que escapava pelas margens irregulares. Aquele brilho de forma alguma era acolhedor. Cintilava com uma intensidade hipnótica, como se quisesse seduzir e repelir ao mesmo tempo.
As bordas da brecha tremulavam a ponto de desfocar a linha entre o que era real e o que não deveria existir. Era impossível dizer se o que Azariel estava vendo era uma ferida do próprio universo ou um portal para algo muito além. Sons que não pertenciam ao mundo conhecido emanava dali. Semelhante a um zumbido grave, como o eco de uma tempestade presa no tempo.
Quanto mais Azariel se aproximava, mais aquela atmosfera parecia vibrar ao seu redor, sempre carregada de uma força invisível. A própria realidade hesitava em permitir que alguém se aproximasse. E, ainda assim, ele caminhou, atraído pela visão, que prometia tanto respostas quanto destruição.
Ele atravessou. Uma pressão esmagadora caiu sobre ele, como se sua própria existência estivesse sendo despedaçada. Toneladas de visões o inundaram naquele momento. Caia sobre sua consciência eras inteiras que Deus havia moldado e reprimido do universo. Vozes murmuravam segredos sobre a luz e as trevas entrelaçadas.
Uma profunda voz insondável se ergueu. Rasgou o silêncio e ecoou do vazio:
— Você pisa onde nenhum mortal deve estar.
Azariel hesitou, mas logo ergueu a cabeça. — Se é proibido, é porque esconde algo verdadeiro.
A voz silenciou, mas o caminho diante dele clareou.
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Capítulo 3: O Caminho até a Árvore
Azariel atravessou a brecha, sentindo sua mortalidade ser arrancada de seu corpo, célula a célula, como fios de um véu que se desfaz ao vento. O Céu que ele se deparou não era o paraíso das promessas, mas sim um reino de perfeição sufocante. Com campos impecáveis, porém estéreis. Torres de cristais e ouro brilhavam, mas sem emanação de calor. Não havia nenhum som de pássaros, nem o perfume de flores, apenas o eco distante de um silêncio forjado. Era um local onde a ordem acabava por esmagar qualquer traço de vida. Perfeição sempre remete a morte. Pois se algo é perfeito, só pode realizar a perfeição. Se tornando chato, previsível, monótono. Diferente do caos, que em sua imperfeição, possui todas as possibilidades de vivência.
No coração daquele reino estático, a árvore da vida se erguia. Ela era mais do que um símbolo, mas um pilar que sustentava todo o firmamento. Seus gravetos se estendiam como veias que pulsam a essência do existir. Suas folhas brilhavam como o verde das esmeraldas. Já seus frutos, cintilantes como sóis, pareciam conter o poder dos segredos que moldam ou destroem a criação.
— E mostrou-me o rio da água da vida, claro como cristal, que procedia do trono de Deus e do Cordeiro. No meio da sua praça, e de um e de outro lado do rio, estava a Árvore da Vida, que produz doze frutos. — Essas palavras vieram à mente de Azariel, mas soava mais como desafio do que como louvor.
Diante da árvore, os Querubins guardam cada ângulo, como eternos sentinelas. Seus corpos eram feitos de fogo. Possuíam quatro faces, de homem, leão, boi e águia, que brilhavam como uma luz feroz. Suas asas giravam como redemoinhos flamejantes, verdadeiros tornados de chamas. Já suas espadas, irradiavam a intensidade de mil estrelas. Eram uma grande barreira viva contra qualquer intruso.
Quando Azariel se aproximou, os Querubins falaram em uníssono, suas vozes como trovões que sacudiam os pilares do Céu e da terra:
— Vote, mortal! — tremulavam os Querubins em uníssono, com vozes que reverberam como trovões, sacudindo pilares no Céu e na Terra. — Tu és apenas pó, e do pó tornarás! Este é o domínio do Eterno, onde apenas a luz reina em absoluto, e o caos é silenciado!
Azariel parou, observando os guardiões com atenção. Não era a força deles que o impressionava, mas o que eles representavam. Eram um limite imposto, um medo mascarado de glória. Ele deu um passo à frente e falou, com voz firme e cortante:
— Vocês não são guardiões, mas carcereiros de uma verdade que não lhes pertence! — gritou Azariel, fazendo sua voz cortar o ar como uma lâmina. — Esqueceram que Deus disse: “Eis que o homem se tornou como um de nós, conhecendo o bem e o mal.” Se ele teme o que está além da árvore, é porque sabe que a eternidade não pertence apenas aos deuses, mas ao existir!
Os Querubins giraram suas espadas em círculos de fogo que pareciam consumir o espaço ao redor. Mas Azariel não recuou. Ele ergueu a voz novamente, com palavras que desafiavam o próprio Céu:
— Deus colocou a espada para proteger a si mesmo, não o homem. Pois está escrito. “Agora, pois, para que não estenda a mão, e tome também da árvore da vida, e viva eternamente...”
— Cale-se poeira!
— Se ele teme que o homem viva para sempre, é porque sabe que podemos ir além dele.
As asas dos Querubins tremulavam, e suas espadas flamejantes enfraqueceram como tochas ao vento. Por um breve instante, o fogo que os consumia hesitou, e suas vozes não soaram como trovões, mas como murmúrios de dúvida.
— O caminho à árvore não é de força, mas de verdade. Tens certeza de que o fruto da vida não será tua ruína? Pois está escrito que no dia que o homem come-lo, certamente morrerás!
Azariel inclinou levemente a cabeça, sua voz ganhando um tom mais filosófico, quase contemplativo:
— Não busco respostas prontas, Querubim. Busco a chance de criar a próxima pergunta. A ruína não me assusta, porque a criação é feita de destruição. Deus moldou o mundo com medo. Eu quero moldá-lo com coragem. O que ele teme é o que eu desejo, não uma verdade eterna, mas a liberdade de recriar a verdade a cada momento.
As asas dos Querubins tremulavam, suas espadas flamejantes enfraqueceram. Outro guardião ergueu sua voz, mas agora ela soava menos como autoridade e mais como dúvida:
— Tu falas como quem conhece o vazio. A ordem que defendemos é perfeita, mas talvez não eterna. Se o que buscas é renovação, talvez devas passar. Mas lembra-te. A sabedoria clama nas ruas, mas poucos a ouvem. Quem toma o fruto deve suportar o peso de seu conhecimento.
Azariel avançou mais um pouco, cada passo ressoando como um eco que desafiava o divino. Ele fixou o olhar nos Querubins, que baixaram suas espadas, uma a uma, como estrelas que se apagaram no firmamento. O caminho até a árvore se abriu, e Azariel deu outro passo, carregando o peso do desconhecido e a promessa do caos em seu valente coração.
— A sabedoria não pesa sobre aqueles que ousam carregá-la. Deus deu ao homem o sopro, mas não a liberdade. Se a Árvore guarda a eternidade, é o homem quem deve decidir o que fazer com ela.
Um a um, os Querubins abaixaram suas espadas, e suas formas começaram a desaparecer no silêncio. O caminho até a Árvore da Vida se abriu, e Azariel deu o primeiro passo, sentindo o peso do desconhecido e a promessa do caos à sua frente.
— Porque o que está oculto será revelado, e o que está em trevas será trazido à luz.
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Capítulo 4: Quando o Inferno Vibra
Ao morder o fruto, Azariel sentiu o peso de todo universo desabar sobre seus ombros. O caos primordial invadiu suas veias, mas não como veneno, e sim como uma torrente avassaladora que despedaçava e recriava sua essência e existência em um único instante. A mordida não foi apenas em um pedaço da existência, mas em um segredo proibido nas raízes do ser.
O Céu foi o primeiro local a tremer, suas vastidões perfeitas racharam como porcelana ao som de algo impossível. Era um som que não pertencia ao mundo conhecido, um eco profano que ressoava no âmago da criação. Mas o impacto mais profundo não foi acima, foi abaixo.
Nas profundezas do inferno, onde o silêncio era o único cântico permitido, algo finalmente despertou. Era apenas um sussurro no início, mas cresceu, e tomou proporções de um grito primordial que atravessava as camadas do abismo. As paredes negras vibraram, como se o próprio Inferno, há muito tempo contido, estivesse finalmente respirando. Um murmúrio tornou-se rapidamente um grito, e esse grito ecoou como um trovão que nunca deveria existir. As almas gritaram e vibraram como a erupção de um vulcão, cujo som percorre vales e montanhas, uma força selvagem e indomável que percorre em todas as direções. O clamor que surgiu era mais que um som, era uma força. Era o grito de bilhões de almas que não pediam redenção, mas reconhecimento. O próprio abismo respirou, suas paredes negras se expandem e contraem como pulmões recém despertos. Um calor ancestral percorreu o vazio, não aquele calor destrutivo das chamas divinas, mas o calor da transformação.
A pulsação vinha de todos os lados, como se o próprio abismo tivesse um coração. As paredes negras que aprisionavam o que foi condenado pareciam se expandir, como pulmões que nunca haviam respirado.
E então veio o primeiro rugido. Não era de dor, mas de êxtase, o som de bilhões de vozes que não pediam perdão, mas exigiam reconhecimento. As almas, antes dobradas sob o peso da culpa eterna, ergueram-se, e suas correntes estalaram como galhos secos.
— Não é punição o que buscamos — disseram elas em uníssono — mas a liberdade de sermos inteiros.
As chamas do Inferno, que por eras queimaram como castigo, começaram a mudar. O vermelho cruel e sangrento deu lugar a um dourado profundo, e o calor que antes consumia a alma, se transformou em uma forja. O inferno, antes lugar de dor e arrependimento, agora o que era rejeitado estava sendo transmutado.
No coração do abismo, onde as correntes mais antigas ainda estavam rugindo com o peso das eras, Lúcifer ergueu a cabeça. Seus olhos brilhavam como estrelas esquecidas, e o sorriso em seu rosto era de reconhecimento. Quando ele falou, sua voz soou como um sussurro por toda criação:
— O que está oculto sempre retorna. O que foi negado não desaparece, mas se torna a fundação de algo mais belo.
Azariel sentiu a vibração em seu próprio corpo, cada pulsação como um eco das almas libertas. Ele percebeu que o Inferno nunca fora um lugar de punição, mas um reservatório de tudo o que a luz havia rejeitado, por temer ou não compreender. Era onde o desejo, a dor e a paixão esperavam o momento de emergir.
— O homem não é apenas o que aceita. Ele também é o que nega, o que reprime, o que oculta. E, ao integrar o que foi esquecido, ele se torna mais do que é. — diz Azariel.
O rugido do Inferno não era mais de destruição, mas o som de criação renascendo. Era o eco do caos, não como inimigo da ordem, mas como promessa de renovação. Nas profundezas do abismo, Azariel compreendeu que o homem não era apenas pó, mas também era fogo e caos, alicerce de todas as novas possibilidades.
Quando o último grilhão de Lúcifer se desfaz, ele olhou para Azariel com um sorriso que parecia conter o peso de mil eras.
— Você trouxe o que estava esquecido de volta à superfície. O Céu moldou o homem com limites, mas é o Inferno que o ensina a ser inteiro.
E então, o Inferno, antes visto como a sombra do divino, pulsou como um coração. Não mais como um lugar de condenação, mas como o centro de tudo o que foi negado. O Céu havia tremido, mas era o Inferno que vibrava.
— A liberdade não está apenas no que se revela, mas no que se aceita – até mesmo o que se tentou negar. — Compreendeu Azariel.
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Capítulo 5: O Trono Vacila
O Céu estremeceu, não com o som, mas com a presença. Deus desceu de seu trono. Ele não era um ancião bondoso nem a figura serena que os homens pintavam por séculos em seus hinos sagrados. Sua forma era vasta, impossível de ser compreendida em uma única visão. Ele era luz pura, mas uma luz tão intensa que acabava por obscurecer e queimar, como um sol rasgando o véu da realidade. Sua voz, quando falou, não era ouvida, mas sentida, como trovões e terremotos quebrando o silêncio do cosmos.
—Quem és tu, criatura insignificante. Ousa erguer-se contra a ordem eterna? — Emanou Deus, com uma voz reverberante como mil ecos de trovões, cada palavra carregava o peso do universo. — Quem te deu o direito de desafiar o que foi moldado desde o princípio por mim?
Azariel permaneceu imóvel, seus olhos ficaram fixos na vastidão à sua frente. A árvore da vida tremulava atrás de Deus, mas ele não parecia teme-la. Azariel deu um passo à frente, e sua voz, embora humana, cortou o silêncio como uma lâmina selvagem:
— Eu sou o que tem sido reprimido, a fagulha da verdadeira chama que o teu medo tentou apagar. Tu moldaste o universo à tua imagem, mas esqueceste de perguntar até quando ele suportaria teu peso!
Deus ergueu sua mão, e o firmamento acima tornou-se uma tapeçaria de símbolos e histórias. Costurando e re-costurando o existir a sua vontade.
— Eu sou a videira verdadeira — disse ele — e tu és um galho que ousa desviar-se do tronco. Azariel, sabes o que acontece àquele que não permanece em mim? Ele é lançado fora e seco ao sol, depois o fogo o consome.
Azariel riu, um som que parecia impossível naquele lugar.
Tu és a videira, mas seu fruto é de medo. Alimentaste as almas com promessas de glória, mas roubaste delas o poder de crescer e florescer. És o jardineiro que tem temor por suas plantas mais fortes.
— Silêncio! — trovejou Deus. — Eu dei aos homens as parábolas para que compreendessem o caminho da vida. Disse-lhes que bem-aventurados os humildes, pois deles é o Reino dos Céus. Tu, porém, és orgulhoso, um filho da perdição que não conhece o seu lugar.
Azariel caminhou mais à frente, e o chão sob seus pés, antes dourado, começou a rachar.
— Humildade? — ele disse, com a voz agora carregada de desprezo — Chamaste de humildade aquilo que é submissão. Disfarçaste a obediência como virtude para evitar que seus súditos se tornassem livres. A verdadeira bem-aventurança não está em curvar-se, mas em erguer-se.
O trono atrás de Deus, imenso e dourado, começou a vacilar. Suas bases tremiam como se o próprio fundamento do cosmos estivesse cedendo sob o peso da verdade que Azariel trazia. Ele então avançou, com sua luz brilhando como uma tempestade:
— Eu sou o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim. Tudo o que existe procede de mim. Sem mim, não há criação, apenas caos e destruição. Sem mim, tu não és nada.
Azariel ergueu os braços, disse as seguintes palavras:
— O que é o nada senão a matéria-prima de todas as coisas? Tu falas de caos como se fosse um inimigo, mas é no caos que reside a criação. A tua luz não cria; ela impõe. E é por isso que a tua ordem está destinada a ruir.
Deus hesitou, um instante tão breve que parecia insignificante, mas Azariel percebeu. Então ele avançou, a cada passo fazendo o Céu tremer.
— Tu disseste ”eu sou o bom pastor,” mas teus rebanhos estão acorrentados. A liberdade não é um dom que podes conceder. Ela é uma conquista que teu trono impede.
Deus rugiu, sua voz quebrando o horizonte:
— O que tu dizes é blasfêmia! Eu dei aos homens um reino. Eu os protegi das trevas e do caos.
Azariel parou a poucos metros de Deus, olhou diretamente para ele, e seu corpo começou a mudar. Suas mãos brilharam como o fogo primordial, seus olhos refletiam estrelas que nunca haviam sido vistas.
— Não protegestes, senhor. Tu censuraste. Disseste que a verdade vos libertará, mas escondeste a verdade atrás do medo e da culpa. O homem não foi feito para viver sob tua luz eterna. Ele foi feito para criar sua própria luz.
Neste momento o trono de Deus desabou com um som que parecia o fim de todas as coisas. Este som foi escutado por tudo e todos, em qualquer lugar, vivo ou morto. Sua luz enfraqueceu, tremulando como uma vela prestes a apagar. Pela primeira vez, Deus falou com uma voz quase humana, carregada de incredulidade:
— Sem mim, tu condenas o universo ao vazio.
Azariel, agora elevado, mais do que humano, mas não um deus, olhou para Deus, não com ódio, mas com uma calma avassaladora.
— O vazio não é uma condenação. É a promessa de que tudo pode começar de novo.
Deus caiu de joelhos, sua luz foi reduzida a um brilho fraco. O Céu, antes absoluto, tornou-se um campo vasto e aberto, onde luz e trevas dançavam como iguais.
E Azariel sussurrou, não para Deus, mas para o universo:
— O homem não precisa de pastores. Ele é o lobo e o fogo, o caos e a criação. O homem é o seu próprio alfa.
Deus, agora reduzido ao que era apenas uma sombra de sua antiga glória, permaneceu em silêncio. Sua voz, antes como som da criação, foi engolida pelo pulsar do cosmos primordial.
E Azariel deu as costas, não como alguém que derrotou, mas como alguém que libertou.
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Capítulo 6: As Cinzas do Divino
O universo parecia prender a respiração. O trono de Deus estava vazio, reduzido a ruínas que se dissiparam como cinzas ao vento da existência. Sua luz, outrora absoluta, agora era apenas um brilho fraco e ofuscado, como uma chama esquecida no fim de um mundo que ele não mais controlava.
Azariel permanecia no centro do que antes era o Céu, mas que agora parecia mais um campo vasto e desolado, onde o tempo e o espaço tremulavam como cortinas ao vento de um futuro promissor. Ele não era mais o mesmo. A carne de sua mortalidade havia cedido lugar a algo além do humano, mas não divino. Sua forma era indistinta, quase translúcida, como um reflexo de estrelas em constante movimento.
Diante dele, a Árvore da Vida ainda erguia seus galhos, mas não como símbolo de proteção ou domínio. Suas raízes haviam rompido o solo dourado, espalhando-se como veias pulsantes que atravessavam todo o vazio e o cosmos, conectando tudo em um pulsar rítmico. Era o coração do que estava por vir. Não um novo paraíso, mas um cosmos liberto das amarras que o mantinham cativo.
Azariel caminhou lentamente até a árvore. Cada passo parecia moldar o espaço ao seu redor, como se sua simples presença fosse suficiente para alterar a própria essência do que era real e irreal. Ele não mais se limitava ao existir, mas transcendia até o não existir. Ele não precisava mais tocar os frutos. O conhecimento que antes estava escondido agora fluía livremente pelas raízes que se espalhavam.
O Céu estava mudando. O firmamento não era mais uma abóbada estática de luz cegante. Ele se desdobrava em camadas infinitas, revelando não apenas estrelas, mas sombras e vazios. Espaços onde o caos e a criação poderiam dançar como iguais.
O trono de Deus desabou em definitivo, espalhando-se em fragmentos que flutuavam no ar como pó estelar. E, naquele momento, algo profundo aconteceu. Deus não desapareceu, isso teria sido misericórdia. Ele se tornou irrelevante. Sua presença, antes esmagadora, era agora como a memória de uma antiga tempestade, incapaz de alterar o curso do grande rio que seguia seu próprio caminho.
O Inferno também pulsava. Não como um lugar de dor e punição, mas como um reservatório do que fora reprimido por eras. A vibração do abismo era a mesma da árvore, como se ambos fossem partes de um mesmo todo, finalmente reconciliados.
Azariel ergueu o olhar para o horizonte infinito. Ele não via mais fronteiras, apenas possibilidades. Os limites que antes eram impostos e a separação artificial entre luz e trevas, entre Céu e Inferno, entre o homem e o divino; haviam sido desfeitos. O cosmos agora respirava como um organismo vivo, um ciclo contínuo de destruição e recriação, onde cada ponto era o início de algo novo.
Ele não falou. Não havia necessidade de palavras. Tudo estava ali. O fluxo do caos, a promessa do vazio, o convite à criação. Azariel sentiu o peso do universo, mas não como um fardo. Era uma responsabilidade que ele aceitava, não para controlar, mas para permitir que tudo fosse o que deveria ser.
Nas profundezas, deus permaneceu, silencioso, com sua luz reduzida a um fio tênue. Incapaz de se reinventar. Ele apenas observava, esquecido pelo próprio universo que um dia havia moldado.
Azariel, agora além da mortalidade, caminhou para o horizonte. Atrás dele, as raízes da árvore se espalharam como artérias, alimentando os primeiros sinais de novos mundos. O universo não precisava mais de pastores, de reis ou de tronos. Ele precisava apenas de espaço para existir.
Quando Azariel deu seu último passo, a criação exalou, não como um som, mas como uma pulsação que ecoou por todas as eras, ecoou no antes e no depois, no existir e no não existir. O algo e o nada haviam se encontrado, e, naquele encontro, estava a promessa de que tudo poderia recomeçar.
E assim, nas cinzas do divino, o universo respirou novamente.