O vestido da boneca
As aulas recém iniciavam, era março. Verão ainda. O céu se tingia de um vermelho-alaranjado todo final de tarde, quando a menina voltava para casa. A cor do céu, do sol poente, o composê mais perfeito que sua foto-memória registrou.
O grupo escolar ficava uns bons quarteirões de sua casa. Cursando o segundo ano primário, a menina dedicada, ía muito bem nos estudos. Na inocência de seus 8 anos, facilmente conciliava todas as suas responsabilidades. Mas, criança é criança. As tarefas escolares e o cuidado com a maninha menor, eram muito fáceis de conciliar, brincando de aulinha tudo se resolvia. Já o auxílio nos afazeres domésticos e demais brincadeiras, às vezes ficava difícil organizar a contento das exigências da mãe. Ou faltavam horas para brincar ou tarefas por aprontar. Na verdade, geralmente sobravam brinquedos fora do lugar.
Ao olhar vigilante da mãe, nada escapava. E, diariamente a cena se repetia: '_Se amanhã esta boneca estiver fora do lugar, vou dar para as meninas da vizinha!' Essas palavras quase não ecoavam nos ouvidos da menina, tantas eram as ameaças. Num coração infantil não cabe a maldade de gestos impensados dos adultos. Jamais imaginou a pequena, que tal fato se consumasse. Mas infelizmente, naquele entardecer de março...
Voltava a menina da escola, como era de seu costume, saltitante e feliz, correu para o pequeno quarto que dividia com os irmãos e de pronto foi procurar sua boneca. Não sabia explicar bem porque, mas intuitivamente naquele dia, temendo talvez uma insana represália da mãe, achou por bem escondê-la embaixo da cama. A menina ajoelhou-se diante da cama, rastejou, farejou, esbravejou arrastando-se pelo assoalho e, ainda não acreditando no que via, ou não via, chamou por ela, como se fosse possível ouvi-la. Em vão, gritou inúmeras vezes, ela não respondeu. Já com os olhos marejados, correndo às tontas, foi ao encontro da mãe e, temendo a resposta que ouviria, toda trêmula mal conseguiu pronunciar: '_Mamãe cadê minha boneca?' A mãe limitou-se a responder: '_Fiz o que havia prometido! Dei para a filha da vizinha!'
As lágrimas verteram copiosas dos verdes olhos da menina. Somente seus soluços romperam o silêncio que se fez. Perdera ali mais uma significativa parte de sua inocência. Não sei precisar por quanto tempo, naquele dia chorou a menina. Sei no entanto, que ainda hoje chora ao recordar sua história ou contemplar na gaveta, de sua boneca, apenas o vestido.