Colar de cacos
A casa simples no topo do morro sem muro, sem cor, sem tempo, sem colo. A lida era tanta, tanta criança, que tempo para demonstrações de afeto era tempo que não havia. O caráter irretocável, a opinião alheia eram preocupações maiores. Para tanto, o mais importante eram os limites e, o jeito de construí-los era impô-los. Obedecer. Resignar. Calar. Foram os primeiros verbos que aprendeu-se conjugar (e ainda não se esqueceu)! Por conta de outros tantos, como: submeter, dominar, vigiar. Cercear e punir.
Todos os dias, a mesma peça teatral em cartaz. Acabava o almoço, acabava o jantar, passava-se imediatamente ao próximo ato: ¬ Vai lavar a louça e, lava direito essa louça menina ! Vê se hoje não quebra nenhum prato, porque se quebrar, ham... sabe o que vai te acontecer, vou fazer um colar! Já sabe, vai usar um colar de cacos!
O desfecho já se sabia antes da cena inicial. Iniciava-se o rito, lentamente a ‘menina-lesma’ (termo usado pela mãe para identificá-la como lenta) recolhia os pratos da mesa. Calada ia para a pia, tal qual o condenado para o calabouço, ia. Silenciosa, assustada e trêmula. O medo era maior que suas pequeninas mãos, elas não davam conta de segurar os pratos. O coraçãozinho palpitando de medo, o respirar ofegante denunciavam seu pavor! Em sua cabecinha, a pequena menina, não se percebia nos seus 8 ou 9 anos, pensava-se mocinha. Imaginava-se chegando à escola com o maldito colar de cacos. Já podia sentir-se ridicularizada pelos colegas ao vê-la usando-o. Não suportaria o escândalo!
A esta altura da lavação de louça, não sabe mais discernir se a água que escorre pela sua face são respingos da louça que lava, da alma que chora ou dos olhos embaçados que não distinguem mais o que é pior: o olhar severo da mãe, o silêncio cúmplice do pai, ou a pilha de louça que falta lavar. Disfarça, respira fundo... enxuga o rostinho com o pano de pratos, tenta se concentrar e continua o ritual, quando bruscamente, ouve os resmungos da mãe: _ Vamos, apura com essa louça lesma!
Pronto! Plact! Junto com o susto, lá se vai o prato! Desta vez não escorrega lentamente, vai ao chão e vira em mil pedaços. A menina olha para mãe, olha para o chão, não enxerga o prato em pedaços, enxerga o colar de cacos! Chora. Desesperadamente chora e, abaixa-se para juntar os cacos antes que a mãe possa fazê-lo. A mãe irrompe furiosa e rispidamente empurra-a para o lado, xingando: _ Deixa que eu junto isso, sua lesma-chorona, termina de lavar essa louça, que eu vou fazer o seu colar!
Como a menina concluiu sua tarefa? Não se sabe ao certo. Sabe-se que apesar de sua lentidão, conseguiu lavar todas as louças que lhe incumbiram de lavar (ainda lava, as vezes). Por certo, quebrou todos os pratos que lhe escorregaram das mãos e, assumiu integralmente, todos papéis que lhe impuseram nas peças da vida, (chorando baixinho) sem reclamar. Foi portanto, mais pertinaz que a mãe! Cumpriu todas as suas tarefas, enquanto a mãe não concluiu a confecção do colar de cacos (eram tantos). Mas, por vezes, ainda hoje a menina receia usá-lo.