UM CHAMADO ESTRANHO
Naquele povoado semideserto, nós estávamos andando no estilo:
- “Quo vadis” (para onde vais?)
- Sei lá!
Ruas de cascalho, calçadas rotas pelo passar do tempo, casas descaiadas, povo simples que nos olhava furtivo pelas janelas malcuidadas. Crianças em pequenos grupos, com os cabelos a reclamar de pentes, brincavam alheias ao sol vermelho que se morria depois da tarde causticante como picada de marimbondo.
Zelito comentou, - isso é um fim de mundo. Como é que as pessoas moram por aqui? Essa secura...
- Deve ser por pura falta de oportunidade, rapaz. Argumentei. Ninguém gosta de viver na penúria.
E depois de um breve silêncio, complementei, talvez falte a essas pessoas, alguém que tenha visto mundo diferente das que elas estão acostumadas a ver, que converse sem se portar como dono da verdade e apresente as alternativas...
- E se elas não quiserem ir embora daqui?
- Mas é exatamente isso que eu estou falando, não é saindo do lugar que as coisas se resolvem, pelo contrário, quando você sai do local em que o problema nasceu e que ao mesmo tempo tem as alternativas, você leva o problema para o lugar novo e terá dois problemas para resolver. A adaptação e a solução do problema velho.
- Isso é filosofia de feira pobre...
- Pensa comigo. Na nossa visão. O que falta a essa gente? Alternativas? Ânimo? Conhecimento formal, sim porque o conhecimento prático eles têm, porque se não tivessem, não estariam vivendo por aqui.
Psiu! Ouvimos ao mesmo tempo...
- Você ouviu isso?
-Sim. Eu também ouvi. Acho que veio de detrás daquela pedra grande amarela parecida com o pão de açúcar. É veio dali. Tem um homem com chapéu de palha escorado na bengala.
- Eu estou vendo. Vamos lá ver o que ele quer?
- Sim. Não temos nada para fazer. Conversar com um morador, talvez esclareça algumas dúvidas que estão corroendo meu juízo. Boa tarde senhor. O senhor nos chamou.
- Chamei sim. Vocês não são daqui. O que é que estão procurando?
- Para falar a verdade nem mesmo nós sabemos o quê.
- Então siga o conselho de um velho que já viu muita coisa ruim acontecer por aqui, vão embora enquanto é tempo.
- Agora o senhor despertou a minha curiosidade. O que foi que aconteceu ou o que é que está para acontecer que não devemos participar?
- Olhe aquele resto de ponte ali, junto da pedra vermelha... fazem muitos anos que não corre uma gota d’água por baixo dela.
- Bem, considerando a geografia do lugar, não é de se estranhar, mas o que é que isso tem a ver com a nossa permanência?
- Eu não sei se devo, mas vou contar a história. Depois vocês avaliam se querem ficar iguais a nós.
E levantando a manga da camisa, mostrou o braço amarelado, descarnado, com a pele semitransparente e seca como papel sobre os ossos.
- Tudo isso que vocês estão vendo não existe mais. É apenas a lembrança do sofrimento daqueles que desafiaram a realidade e resolveram enfrentar as coisas que a gente não tem força nem conhecimento para fazer. O homem que era dono de parte dessas terras trouxe um pessoal para cavar poço para ter água para alimentar o gado que ele queria criar. Trouxeram equipamento e cavaram por muitos dias sem encontrar nada. De vez em quando, a broca emperrava, eles traziam ela para fora e recolhiam um material parecido com barro amarelo, que brilhava no escuro e a gente sentia um arrepio quando chegava perto.
- E o senhor ficou sabendo o nome disso?
- Não. Ninguém nunca soube. Mas quem chegava perto, sentia formigamento pelo corpo todo.
- Seria radioativo, Zelito? Eu estou sentindo algo estranho desde que chegamos junto a essa pedra.
- Não duvido que seja radioativo porque eu estou sentindo vibração como zumbido de alto-falante desregulado, mas vamos ouvir o resto da história.
- Com o tempo, a quantidade retirada foi aumentando e vinha caminhão com tanque todo fechado buscar o material para levar não sei para onde. Todo mundo queria ter um pouco disso dentro de casa, porque nem precisava acender lamparina, qualquer pouquinho dava para iluminar a casa toda.
Dias depois as pessoas que tinham vindo fazer o buraco fecharam tudo e foram embora, dizem que todos morreram, mas nós ficamos com o que restou do material, secando aos poucos, sem fome, sem dormir...
- Mas o senhor está vivo.
- Não. Eu acho que não estou. Nem eu nem mais ninguém daqui. Isso que vocês estão vendo é só ilusão...