A estátua enlouquecida

 

Sempre que passava pela Siqueira Campos em frente à praça Serzedelo Correia, eu via um vulto de uma mulher cujo estado sobrepunha o vegetativo à pétrea rigidez. Uma mortalha branca que lhe alcançava os tornozelos davam - lhe a aparência de uma romeira de uma alguma procissão nos confins nordestinos. Poderia também ser comparada a uma das sertanejas espoliadas em sua marcha rumo a Canudos, seguindo o beato Antônio Conselheiro. Situava-se entre o místico e o fantasmagórico, entre a santidade e o assombro. Sua imobilidade e seu silêncio me instigaram e eu me perguntava como poderia sobreviver no feérico movimento no coração de Copacabana, onde os transeuntes passam apressados sem lhe dar atenção. Sentia por ela pena e pavor em mesma intensidade. Quem afinal era esse misterioso vulto? Talvez fosse apenas uma estátua viva que ganhava sua vida simulando a imobilidade.

A esquina onde ela pairava feito assombração era uma passagem obrigatória para quase todos meus destinos, de sorte que a via quase diariamente. A cada dia ela me surgia de duas formas, ora como uma aparição fantasmagórica e ora 

uma estátua viva, completamente imóvel. Eu nutria por ela, além de medo e compaixão, também uma aguda curiosidade. Como poderia se alimentar se jamais a vi de braços estendidos e olhares de súplica como os demais mendigos que lotam as calçadas de Copacabana? Onde dormia? Pois estava sempre de pé sem nenhum papelão ou algum velho farrapo estendido à guisa de colchão? Ela era diferente de todos eles. Nada pedia, nada falava, apenas se postava imóvel e inerte num canto da calçada por onde transitavam multidões apressadas. Pensei várias vezes em abordá- la e , se possível, desvendar algo de sua enigmática existência, como fiz com vários outros miseráveis, estátuas vivas e músicos que habitam nas ruas de meu bairro. Antes de fazê-lo perguntei a um ambulante que fazia ponto próximo de onde ela se postava, se tinha ouvido algo acerca da muda aparição. Disse- me ele que tinha ouvido falar que a criatura era enfermeira num grande hospital no Ceará quando, ao que tudo indica, adoeceu das faculdades mentais e abandonou a família, marido e filhos, fugindo para o Rio, onde vive nesse estado vegetativo há vários anos. Não soube me responder onde dormia, como se alimentava ou fazia suas necessidades básicas. Era de fato um enigma até mesmo para os ambulantes que tudo sabem e observam no entorno de seus pontos de venda. 

Um dia enchi os bolsos com todas as moedas que achei em casa e que somadas eram suficientes para um café com leite e pão amanteigado na chapa. Fui para a esquina onde ela fazia suas aparições diárias e dela me aproximando, estendi-lhe a mão, oferecendo- lhe a módica quantia. Sua reação foi quase instantânea, lançou- me um olhar assustador e passou a urrar: "sai daqui seu demônio, você veio me corromper?!" Fiquei paralisado pelo espanto e com o resto de coragem que consegui reunir disse-lhe: " você já foi enfermeira de um grande hospital, né? Quero lhe ajudar a tomar seu café". No entanto, o que lhe disse aumentou sua fúria. Ela contraiu violentamente todos músculos faciais, dando-lhe uma aparência aterradora e com dentes rangentes de ódio, repetiu "demônio vai embora, me deixe em paz"! Depois que dei- lhe as costas, tentando escapar de sua súbita fúria, passou a me atacar , desferindo-me seguidamente fortes golpes nas costas, com um pesado saco que carregava na mão e quando me virei para defender- me , ela cuspiu uma grossa e viscosa secreção salivar, atigindo-me em cheio no rosto e berrou ainda mais alto: vai embora demônio".

Corri para me abrigar numa cafeteria próxima, pedi para lavar o rosto, passando em seguida depois álcool, pois seu catarro com forte odor havia se entranhado na minha face.

Teria sido um pesadelo, uma premonição? Não, era tão real como todos nas imediações e como a própria estátua viva que, em seguida , voltou para seu canto lá permanecendo inerte como de costume.

Sentei num bar próximo, ordenei seguidas doses da mais forte cachaça para relaxar e esquecer o insólito acontecimento. No entanto, ainda pensei por muito tempo: como será possível enlouquecer uma estátua?

 

Roberto Leon Ponczek
Enviado por Roberto Leon Ponczek em 21/11/2024
Código do texto: T8202056
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