Ratos Salientes

Voltei da loja de suprimentos com muitos pacotinhos cheios de bolinhas vermelhas , veneno para matar ratos. Meu pequeno sítio era meu paraíso particular. Eu adorava sair de casa, mas gostava mais ainda de voltar para lá.

Entrando em casa sentei por alguns minutos, liguei a chaleira elétrica para esquentar água para fazer um café, enquanto isso acessei na internet as informações de como usar as bolinhas para matar de modo rápido e indolor os ratos que estavam fazendo bagunça, barulho e mordiscando os pacotes de ração dos cachorros.

Horrorizada descobri que os ratos após comer as bolinhas escondidas em perfumadas lascas de queijo morreriam aos poucos, uma morte lenta, por desidratação, sendo que os mais novos levam comida para os ninhos e os mais velhos comiam primeiro. Desse modo se a comida estiver estragada ou envenenada os jovens são preservados e os velhos adoecem e morrem. Uma tristeza forte invadiu meu peito. Os ratos filhotes, cheios de energia, saem para buscar comida e voltam para alimentar o grupo. Que perversa seria eu se de propósito distribuísse em potinhos colocados em lugares estratégicos queijo com veneno dentro, bem escondido. Os mais novos não comem se perceberem que o mais velhos passaram mal. Extremamente organizados, eles respeitam hierarquia. Que descoberta!

Será que existe uma palavra para definir coletivo de ratos? Não descobri isso ainda.

Os ratos têm hábitos noturnos. Dificilmente circulam durante o dia. Achei isso fascinante.

Vendo um vídeo legendado em inglês e gravado acho que em algum lugar da Índia fiquei paralisada durante alguns segundos assistindo ratazanas que tinham tamanhos de gatos roliços andando livremente e comendo cereais em cestos propositalmente colocados em alguns pontos da cidade, nas ruas. Ninguém ali mata os ratos. Eles, assim como os outros animais, tinham sua função na cadeia alimentar e liberdade.

Tomando o café deliciosamente fumegante fiquei pensando que eu não teria coragem de usar nenhum dos pacotinhos que eu comprei. E se algum pássaro ou cachorro comesse o queijo envenenado? Isso não tinha me ocorrido! Seria uma tragédia. Lembrei que eu havia guardado a nota fiscal da loja dentro da carteira, como sempre faço.

Não iria jogar no lixo aquele veneno todo. Eu sem saber havia comprado uma quantidade muito maior do que iria precisar. Foi uma pena eu não ter assistido antes aos vídeos para descobrir como funciona a vida dos diferentes tipos de roedores. Eu nem teria feito aquela compra.

Aprendi detalhes de como se comportam e se reproduzem, quantos filhotes podem ter por gestação, quantos deles existem pelo mundo, como cuidar de alguns que são considerados pets, como os hamsters.

Eu estava decidida não usaria veneno nenhum. Seria uma maldade enorme. Eu compraria um protetor auricular em uma dessas lojas virtuais para que o barulho não me incomodasse e uns cestos grandes com travas para guardar os pacotes de ração. Meus vizinhos haviam se mudado há alguns meses. A casa tinha quase uma dezena de placas de imobiliárias e todos que passavam ali sabiam, estava para alugar. Tudo entraria nos eixos antes que uma família alugasse aquela casa enorme e eu deixasse de ter um precioso silêncio do vento batendo nas folhas das árvores como companheiro de trabalho.

Sempre gostei de animais e nunca matei nenhum deles. As lagartixas do meu quintal eram saltitantes e encorpadas. Elas comem baratas e por isso eu as amo. Tenho que admitir que insetos me deixam desconfortável. Fui picada por um borrachudo uma vez na infância, devo ter ficado traumatizada. Não foi nada grave, um pouquinho de choro no colo quente da minha mãe, uma pomadinha e tudo se ajeitou.

Desde criança gosto de frutas, legumes, raízes, castanhas. Me lembro bem que eu olhava para o cadáver sem cabeça nem patas, sendo servido por adultos salivantes festejando em volta de uma mesa qualquer coisa sem muito sentido, e tinha ânsia de vômito. Minha família me achava estranha, mas era acolhedora. Eu comida arroz soltinho com legumes feitos no azeite e uma farofinha de farinha de milho com flocos grandes misturada com azeitonas, muito alho e cebola, e especiarias tudo bem temperadinho que minha mãe havia feito para mim enquanto meus familiares fatiavam alegremente o corpo crocante da ave que estava estendida na assadeira no centro da mesa de jantar no dia 25 de dezembro. Infelizmente é verdade a história de que o peru morre de véspera.

Surpresa e tocada fiquei quando descobri que os ratos são animais limpos, que gostam de manter os pelos brilhantes, assim como os gatos se lambem para fazer a higiene, ratos aprendem facilmente, podem ser treinados, espertos, adoram ambientes organizados e são muito sociáveis. Nós, os seres humanos os classificamos como imundos por conta da vida urbana insana que criamos para nós mesmos, os ratos acabaram vivendo em esgotos e por isso transmitem doenças. Eles são mamíferos e uma mamãe ratazana pode dar à luz até doze filhotinhos. Eu estava embasbacada.

Voltei na loja de suprimentos, itens para pesca e companhia com as embalagens fechadas e a tal nota para trocar o produto. Expliquei para o gerente que havia comprado por engano aqueles muitos pacotinhos de veneno para rato. Disse que meu caseiro havia me mandado uma mensagem que eu interpretei errado, e ele, ótimo funcionário, não tinha culpa. O homem alto com olhar pontiagudo ficou desconfiado, mas autorizou que eu trocasse por comedouros, paguei a diferença, voltei para casa com vários pratinhos coloridos.

Eu estava viciada nos vídeos sobre roedores mamíferos e suas peripécias. Descobri que existem ratos gigantes africanos que podem medir até um metro e meio e que são treinados para proteger vidas humanas e de animais selvagens. Pronto. Eu estava completamente apaixonada. Estava decidido, eu cuidaria daquela espécie que já sofrera tanto sendo usada em testes para que os remédios fossem inventados para benefícios de nós, os tais animais racionais.

Ratos gostam de comer frutas por conta do cheiro, da textura e do sabor e também saboreiam grãos. Eles são onívoros e comem tudo que encontrarem pelo caminho. Talvez por isso sejam tão numerosos. Eu fazia feira toda semana para comprar frutas da época para mim e para os pássaros que toda manhã vem comer um banquete perto da janela do meu quarto. Não canso de vê-los chegando cedo, cantando muito . É deslumbrante.

Eu tenho árvores frutíferas no meu terreno, mas eu gosto de variedade. Eu colho alguns frutos quando estão maduros e deixo o restantes para os pássaros, as lagartas e a bicharada fazer a festa.

Dentro de casa eu sempre tenho acesa algumas velas de citronela e todas as janelas têm telas para evitar as visitas indesejadas de pequenos seres com asas.

Espalhei os potinhos à noite pelo meu quintal com cereais variados, todos crocantes e deliciosos que eu havia comprado para mim. Coloquei água também. Apaguei todas as luzes como faço todas as noites para que os animais tenham sossego, coloquei meu protetor auricular, os cachorros deixei no espaço cercado. O gato amarelo que chamo de Andarilho vinha me visitar apenas de dia, às vezes, não sei onde ele mora, acredito que seja de algum vizinho distante, nem sei se ele gosta ou não de ratos. Talvez eu fosse descobrir em breve.

No dia seguinte acordei com a cantoria dos pássaros na minha janela, bem cedo, numa rotina musical que deixava meu humor leve para começar meu trabalho remoto.

Eu cuido do sítio com o auxílio do Seu Arcanjo, um ajudante que morava na cidade e vem todas as manhãs às 10 h para trabalhar. Depois de fazer meu desjejum que é um pequeno almoço, como diziam meus velhos tios, vou trabalhar todos os dias no meu escritório com parede de vidro. Dali fico olhando as plantas, vendo meus cachorros vira-latas brincando e observando se alguma borboleta pousa perto do vidro. Sou encantada por essas flores que voam. Sempre digo que com plantas, bichos e sinal de internet para trabalhar eu poderia morar em qualquer lugar do planeta.

Fui no quintal antes de soltar os cachorros e vi que não restava nada nos potinhos de comida. Eu vibrei. Eu havia comprado pela internet câmeras wi-fi para colocar no Ratil. Foi assim que batizei aquele canto do quintal.

Numa das pesquisas vi que os ratos podem ser treinados para usar uma determinada área como banheiro. Eu estava decidida. Se eles gostavam de limpeza e organização teriam isso. Eu tinha umas telas antigas guardadas, eu poderia fazer umas caixas de fácil limpeza com uma mangueira instalada perto do ralo. Vi um tutorial na Internet e percebi que seria fácil organizar tudo.

Logo que as câmeras chegarem eu poderei acompanhar pelo celular, deitada na minha cama, enquanto leio, o passeio noturno e o jantar da rataiada.

Eu colocaria essa noite além dos cereais frutas picadas. O casal Madeiras dono da barraca de frutas reserva para mim todas as machucadas durante o transporte ou feias. São essas delícias que sirvo de banquete para os pássaros agora também seriam degustadas pelos ratos, camundongos e ratazanas.

De manhã, de novo, emcontrei os comedouros limpos como se tivessem sido lavados. Não restavam nem farelos dos cereais e das frutas picadas em cubos grandes.

Pesquisando sobre esses seres curiosos e intrigantes que são os ratos e suas numerosas famílias descobri que bem alimentados eles podem ficar enormes, com pelos brilhantes e sedosos, podem se reproduzir muitas vezes por ano e aqui no sítio circulam à noite, sem medo, como todos os animais merecem fazer.

Manuh Danorte
Enviado por Manuh Danorte em 06/11/2024
Reeditado em 07/11/2024
Código do texto: T8190972
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