Uma história do amor sublime
Causou-me estranheza quando vi pela janela minha mãe passando conduzindo a charrete. O dia mal havia amanhecido, para onde iria? Deixei o café que estava preparando e saí em seu encalço. O chão encharcado pela chuva que caía quase ininterruptamente durante aqueles dias me dificultou os passos, mas pude alcança-la quando parou para abrir a porteira.
_Mamãe, onde vai a senhora?
Ela nem desviou o olhar, e respondeu-me com a fisionomia trancada.
_Vou ao cemitério ver seu irmão.
_Mas porque logo assim tão cedo, e com um tempo desses? Retruquei, olhando para o céu nublado e recebendo no rosto os pingos da chuva.
Ela tornou a subir na charrete, bateu o arreio no burro e disse:
_Ele está me chamando.
Antes que pudesse afastar-se, agarrei-me à borda da charrete e subi, sentando-me ao seu lado.
_Como assim, mamãe? O Augusto morreu já tem dez dias...
Trazia na face uma expressão de visível desatino. Pareceu que não iria dizer nada, mas por fim explicou:
_Sonhei com ele sendo levado pela correnteza. Me chamava desesperado porque estava se afogando. Preciso ver como ele está.
Percebi o quanto ela estava perturbada, mais até do que no próprio dia do enterro, onde, ao contrário do que temíamos, demonstrou-se surpreendentemente calma e conformada. Talvez seu sentimento naquela ocasião não fora outro senão de alívio, porque terminava enfim um período de vinte e sete anos de muita doação e sofrimento.
Meu irmão caçula nascera quando eu, a mais nova de minhas irmãs, tinha pouco mais de oito anos. Era uma criança linda, de olhos profundamente azuis e de cabelos muito pretos, ambos tão brilhantes e vívidos que chamavam a atenção de qualquer um que o visse. Começou a dar seus primeiros passos bem cedo, antes de completar seu primeiro ano de idade. No entanto, surgiu de repente um tremor em sua perna direita, ao qual o médico da cidade não deu importância, mas que evoluiu para um ataque epiléptico que o jogou ao chão, causou-lhe uma grande ferida no rosto e o fez estremecer por cerca de dez minutos, sem que pudéssemos fazer nada para conte-lo. A partir daí, quando menos se esperava seu corpo era acometido por esses ataques, os quais foram se tornando tão freqüentes que, para evitar que ele se machucasse a cada tombo, minha mãe passou a vesti-lo com uma túnica pela qual passava na cintura uma faixa longa o suficiente para ata-lo a uma outra pessoa, de maneira que o tempo todo haveria alguém para segura-lo.
Com o transcorrer dos anos seus ataques foram se tornando mais agressivos, chegando a uma terrível tarde de domingo em que ele permaneceu durante quatro intermináveis horas estremecendo e espumando pela boca, os olhos saltando das órbitas, as veias grossas estourando no pescoço. Findado o martírio, todos pensamos que não sobreviveria, tamanha a exaustão que se abateu sobre ele. Mas antes que houvesse se recuperado por completo, outro ataque já o arrebatou novamente. A partir daí nossa mãe, por precaução, achou melhor que ele ficasse em uma cama.
Os médicos diziam que não havia cura para seu mal, e meus pais saíram em busca de qualquer recurso que pudesse ao menos aliviar seu sofrimento. Um tio que vivia na Itália mandou de lá uma medalha de Sâo Valentim abençoada pelo Papa, que ficou em torno do seu pescoço até que o cordão que a segurava apodreceu, sem no entanto surtir efeito algum. Remédios, chás, novenas, benzimentos, tudo foi em vão. A esperança veio na notícia de um padre que, diziam, operava milagres numa cidade tão distante que levaram três dias de trem e mais dois sobre um pau-de-arara para lá chegar, levando o pequeno Augusto cujas juntas dos joelhos, mãos e pés já estavam irreversivelmente retorcidas pelas inúmeras crises. Mas uma voz de um alto-falante, do alto de um poste, tentava dispersar a multidão que se aglomerava naquela praça, dizendo que não era preciso que o padre atendesse individualmente cada paciente, todos já estavam abençoados e podiam retornar às suas casas. Na viagem de volta, um senhor cego que sentara ao lado deles começou de repente a enxergar, e diante do milagre que se realizara tão proximamente, mas não se estendeu a seu filho, papai resignou-se:
_Se Deus quer que ele viva assim, que assim seja.
Por vinte e sete anos minha mãe esteve incansavelmente ao seu lado, dia e noite, tomando-o nos braços durante suas crises, como que tentando trazer para si parte do sofrimento do filho, dando-lhe de comer, de beber, cuidando de sua higiene, de sua aparência. Ele não respondia a nenhum estímulo, tinha sempre os olhos azuis perdidos em um ponto qualquer do quarto, seu corpo flácido só reagia às cruéis investidas dos ataques epilépticos. Mas podia-se perceber alguma luz em seu semblante toda vez que mamãe tomava-o no colo para aparar sua bela cabeleira negra.
Foi numa manhã de sol radiante que ele veio a falecer, depois de uma noite inteira sem nenhuma crise, o que certamente lhe rendeu a fisionomia alva e tranquila com que foi sepultado. E depois de tanta dedicação, do amor incondicional e irrestrito, minha mãe sentiu-se aliviada não tanto pelo fim do sofrimento do filho, mas por ter sido atendida na prece insistentemente feita à Virgem Maria, onde pedia que a morte o levasse antes dela para que, por toda a vida, em nem um único dia ele pudesse ficar sem o seu amparo.
Logo depois do enterro levantaram grossas nuvens no céu, e desde então aquela chuva não havia dado trégua, aquela mesma chuva que encharcava nossas roupas quando chegamos diante do cemitério. Mamãe nem se preocupou em amarrar o animal, e atravessou apressadamente o portão de entrada, comigo a segui-la. Estávamos próximas ao túmulo de meu irmão quando notei que, por conta das águas da chuva, a terra havia cedido parcialmente ao lado da lápide. Mamãe também percebeu e, aflita, desatou a correr em direção ao túmulo. Eu fiquei alguns passos para trás, e logo depois ouvi seu grito ao mesmo tempo em que vi seu corpo desfalecer-se no chão.
_Mamãe! Chamei, apavorada. Correndo em sua direção, agachei-me e tomei sua cabeça em meu colo. Estava desacordada. Quando olhei para frente, fiquei estarrecida: a água havia entrado abundantemente pelo buraco formado ao lado da lápide, e podia-se vislumbrar o caixão de Augusto boiando dentro do túmulo.
O coveiro, que não estava longe, veio em nosso socorro. Minha mãe foi conduzida ao hospital, e o médico, ao ouvir o meu relato, diagnosticou seu estado de choque. Durante quatorze dias ela permaneceu em côma profundo, e quando, por fim, voltou a si, não era mais a mesma pessoa. O trauma psicológico havia afetado severamente o seu cérebro.
_Sua mente é equivalente à de uma criança de três anos – explicou-nos o doutor.
E assim permaneceu para o resto de seus dias, uma criança com corpo de mulher. Nós, suas filhas, dispensamos-lhe toda a atenção e cuidados necessários, sob o olhar incompassível de nossos maridos e diante da indiferença de nosso pai. E além de nós, tudo que ela teve nos anos em que ainda viveu foi uma boneca de pano da qual jamais se separava, cujos olhos haviam sido pintados de azul e cuja cabeleira abundante era formada por longos fios negros de lã.