Como informou um renomado filósofo, o mundo todo é um sofisma de composição, pois tudo nele é resultado de vontade e representação que a mente do homem constrói para preencher a sua própria realidade. O quer dizer que, para cada um de nós, o mundo real é aquele que temos na nossa cabeça e não o que as narrativas dos cientistas, líderes religiosos, filósofos e demais influenciadores procuram nos mostrar. E como diz outro não menos renomado pensador, nós somos uma espécie de ponte entre o ser e o nada, e tudo que fazemos na vida destina-se a preencher um vazio que sem a consciência humana jamais teria conteúdo.

É que quando a luz se retrai a escuridão ocupa o espaço que ela deixou assim como a ignorância entra no lugar da sabedoria quando ela se ausenta. Essa é  a lei que estabelece que todo vazio tem que ser preenchido. Destarte, quem não quer perder o lugar não o deixe vago.

Esse talvez tenha sido o erro de Jeová Elohin, se podemos chamá-lo assim agora que já sabemos quem ele é. Erro não, diríamos, porquanto estamos falando de Deus e Deus não erra. Corrijamos esse termo para descuido e assim evita-se chocar o leitor mais conservador, se acaso ele conseguiu nos seguir até aqui, o que achamos pouco provável. Isso dizemos porque depois de fazer o casal humano, Deus achou de tirar umas férias, porquanto se diz que ele descansou depois de completada essa tarefa que deu origem a essa tradição que manda o homem descansar no sétimo dia da semana, porque esse é o dia do Senhor, conquanto quem o aproveite sejamos nós mesmos, que o tiramos para folgar.

Descontadas as críticas que podem ser levantadas a esse respeito, porque há quem entenda ser esse um argumento de vagabundos que não gostam de trabalhar e justificam a sua preguiça atribuindo a Deus a razão da incúria, temos para nós que, se de fato Deus descansou no sábado, nós não teríamos que estender essa lassidão também para o domingo, porquanto Deus descansou um dia só e não dois como fazemos nós que a ele agregamos também o primeiro dia da semana, para não ficar só no último.

Mas desse descanso que Jeová Elohin se deu ao luxo de tirar é que a coisa se complicou, pois com isso ele, digamos, dormiu ou simplesmente se ausentou da terra e deu azo a que Samael se introduzisse no Jardim do Eden para subverter as suas crias. Porque, quando Samael percebeu que só conseguiria aborrecê-lo se conseguisse estragar parte da sua obra, a primeira coisa que fez foi descer ao jardim onde morava o casal que ele fizera, e ali começar uma sediciosa campanha de intrigas e contraditas para fazer a cabeça deles contra o Criador.

E como era mestre nessas artes de transformismo, trucagens que muitos atores iriam imitar depois, ele travestiu-se na pele de uma serpente, que segundo se sabe, nessas remotas eras era o rei dos répteis que viviam serpeando pelas florestas que Jeová Elohin plantara na Terra no terceiro dia da criação. 

Para fazer esse papel, Samael, dizíamos, assumiu a figura de uma vistosa serpente falante. E eis que o vemos ali, enrodilhado  em volta de uma árvore carregada de frutos que parecem maçãs, que como as outras que Jeová Elohin fez brotar da terra, eram abundantes naquele jardim. Samael está ali, sabe-se lá há quantos anos, ou séculos, pois que o tempo para ele também não existe, ou pelo menos não se conta pelas nossas medidas, esperando pelo momento em que vai vingar-se do monarca que o expulsou do céu e o arrojou na terra, quiçá para cumprir uma sentença de exílio num planeta inóspito e deserto, mas que ele, com a sua esperteza de líder falangista que fora, acabara transformando num reino tão próspero e poderoso que já começava a causar preocupação no seu próprio Criador.

Samael, ele mesmo um ex-elohin, astuto e bem informado como era, sabia muito bem que Jeová Elohin tinha feito aquele casal de humanos para contrastar com as próprias crias que ele e seus companheiros exilados haviam produzido e estavam prosperando na planície de Senaar. E os tinha criado isolados naquele jardim que ele plantara entre os dois grandes rios da região, distante de todas as gentes que habitavam fora dele porque não queria que eles se contaminassem com os vícios e comportamentos que o povo criado pelos nefilins haviam desenvolvido.

Essa era a razão de Jeová Elohin ter plantado aquele jardim e posto lá os seres que ele havia criado, levantados do barro da terra como querem as crônicas oficiais, ou modificados geneticamente como se aventou que pode ter sido. Ali eles viveriam ausentes de problemas de qualquer ordem, sem precisar trabalhar nem enfrentar nenhum dos aborrecidos constrangimentos que o ser humano comum suporta no dia a dia do seu afã de ganhar a vida, procurando fazer hoje sempre melhor do que ontem e amanhã nunca pior do que hoje.

       Tudo quanto era fruto ali havia e outras fontes de alimentação também, de sorte que Adão e sua companheira Eva nada precisavam fazer para ter do bom e do melhor, que afinal, é o objetivo de todo ser humano que se preza, não estando ele, claro, contaminado por vírus franciscanos ou seguindo os princípios daquele Diógenes de Sinope, que pregava o desprezo pelos bens materiais, ou os preceitos de Sidarta Gautama, o Buda, que mesmo sendo filho de gente abastada vivia mendigando pelas ruas da Índia.

Destarte, naquele jardim só havia dois tipos de fruto que Jeová Elohin proibira o casal humano de colher: um era o fruto da árvore do conhecimento e o outro o fruto da árvore da vida. Do resto eles podiam bem dispor.

Agora, bom é que se diga, que frutos, como tais conhecemos essas prodigalidades apetitosas que a natureza nos oferece, certamente que não o eram os tais rebentos das árvores do conhecimento e da vida, assim como jardim, na literalidade da palavra também não o era o lugar que convencionou-se chamar de Éden, onde se diz que o casal humano fixou a sua primeira residência. Na verdade, se quisermos ser explícitos e desvelar o segredo dessa metáfora diremos que o tal jardim das delícias onde o casal humano foi posto para viver era os seus próprios corpos e o fruto do conhecimento, que Jeová Elohin os havia proibido de comer, na verdade era o sexo com o prazer que ele provoca. Pois com ele vem a luxúria e a promiscuidade que muitas vezes contamina os sentidos com o veneno do vício e da malícia. Na mesma esteira de entendimento, diríamos que o fruto da vida era a imortalidade, que aos seres humanos devia ser vedada por conta da própria função que a eles fora delegada, qual seja, a de povoar a terra com seus descendentes, e à cada geração ir melhorando a sua cepa até chegar numa etapa de perfeição que agradasse os olhos e o gosto exigente de Jeová Elohin.

Seguindo esse rumo de compreensão podemos dizer que os tais frutos do conhecimento do bem e do mal, e os da árvore da vida, eram certas propriedades dos seus corpos, pois se existe algum bem e algum mal na terra, é no corpo humano que eles serão encontrados. Assim como o cérebro é o local onde se hospeda a sua razão, e é ela que nos dá o julgamento do que é bem e mal, da mesma forma o desejo de viver para sempre nada mais é que uma aspiração de quem está vivo e não quer perder essa condição. Por isso desenvolvemos a crença na imortalidade da alma porque a do corpo sabemos ser impossível. E desenvolvemos todas as nossas crenças na existência de um mundo além deste para compensar a dor de saber que um dia teremos que deixá-lo.

 

Assim, temos para nós que o propalado fruto do conhecimento foi, na verdade, a descoberta do instinto sexual, ou seja, o sentimento de que o sexo não existe no corpo humano com a única e precípua função de procriar, mas também, e precipuamente, como fonte de prazer. E ainda que essa função tenha sido ocultada por milhares de anos por conta da conotação luciferina que lhe foi dada, e apenas tenha sido denunciada há pouco tempo por aquele médico austríaco que muita gente achou que era um louco devasso, na verdade, é à nossa mamãe Eva que devemos essa descoberta.

Agora, é bom dizer que não era o caso de  Adão e Eva serem assexuados. Se o fossem seria mais uma incoerência posta no plano divino pois o que Jeová Elohin queria era que o casal humano enchesse a terra com uma população descontaminada dos vícios que a civilização dos nefilins estava desenvolvendo. Disso sabemos porque antes da transformação do homus erectus no homus sapiens, se aceitarmos que eles foram obtidos por inseminação artificial, esse nosso ancestral não tinha vergonha de andar nu, como de resto o fazem os nossos irmãos índios que andam pelas florestas com todos os seus órgãos sexuais expostos, sem nenhum constrangimento. A propósito, nem sabem eles que no sexo há alguma vergonha que deva ser oculta e que essa parte do corpo humano possa ser motivo de algum enxovalho e principalmente, que isso decorra de um episódio tão bizarro como esse de que trata o nosso conto.

Samael sabia que Jeová Elohin dissera às suas criaturas que elas poderiam comer de todos os frutos existentes naquele jardim menos daquela que ele chamava de Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, e da outra, chamada de Árvore da Vida,  que, ao parece, ele também plantara ali com um propósito que até hoje não se descobriu, porquanto ainda são tantas as conjeturas que se fazem a respeito e muitas as narrativas que se criaram em torno desse assunto. Mas de Jeová Elohin sabemos que ele tem razões que a nossa razão desconhece e não podemos ficar a interpelá-lo e constrangê-lo a dizer mais do que ele mesmo queira informar, o que entendemos para bem seja, já que, se ele assim resolver fazer, deixará de ser o mistério que ele precisa ser e mistério resolvido perde o interesse, coisa que não seria de muito proveito para o seu propósito.

Samael também sabia disso porque ele próprio conviveu com Jeová Elohin em épocas que as calendas humanas não tem como registrar, já que as medidas pelas quais medimos o tempo ainda não existiam. E Samael, que como sabemos, era um anjo saído da própria essência do Criador, que aproveitando o fato de ele não ter ainda uma personalidade conhecida, emancipou-se e assumiu personalidade própria. E como se fosse uma espécie de alterego negativo de Jeová Elohin, um Mister Hyde que se liberta do corpo de um Dr. Jekil e passa a agir de forma diametralmente oposta às origens de onde proveio, começou a construir seu próprio mundo em oposição ao seu Criador.

Jeová Elhoin, evidentemente, não gostou nada do comportamento que essa sua parte rebelde assumiu e, astuto como deve ser um soberano do seu porte, percebeu que a ambição dessa sua persona manifesta poderia degenerar em uma rebelião incontrolável. Até porque Samael já havia arrebanhado um séquito de seguidores dispostos a aceitar sua liderança, como sói acontecer, às vezes, conosco mesmos quando deixamos que uma parte de nós assuma o controle da nossa vontade e passe a ditar comandos estranhos e perigosos para a nossa própria saúde e razão. Temos exemplos dessa disfunção quando é o estômago que fala mais alto e nos leva à bulimia, ou quando é o coração que dita as razões que a própria razão desconhece e nos leva a cometer enganos e desenganos, ou é sexo que nos força a cometer desatinos que de outra forma evitaríamos. E nesses casos é como se tivéssemos dentro de nós um outro eu que assume o comando dos nossos atos, geralmente contra a nossa própria vontade.

Por mais bizarro que isso possa parecer é bem isso que dever ter acontecido com Jeová Elohin. Na ânsia de dar um corpo material para si mesmo, como o Dr. Jekil fez no famoso conto do senhor R L Stevenson, que por aqui recebeu o bizarro título de O Médico e o Monstro, ele se desdobrou em duas criaturas diferentes e uma delas, a sua parte má se emancipou dele, exatamente como o Sr. Hyde fez com o Dr. Jekil.

Só que, diferente do Dr. Jekil, que teve que matar-se para com isso dar também um fim no demônio que ele criara, Jeová Elhoin não pôde apelar para esse recurso. Porque ele era Deus e Deus não pode morrer, quanto mais matar-se. Daí que, cioso da sua autoridade e ciumento como era do mundo que ele criara, Jeová Elohin simplesmente desterrou essa sua parte rebelde para cumprir sua pena na colônia penal chamada Terra.

Agora, o porquê de ele ter escolhido a Terra como lugar de exílio desses anjos rebeldes, quando poderia ter pautado qualquer outro planeta do sistema solar, ou quiçá, de outros sistemas ou galáxias, é outra das suas ações que ele não viu necessidade de explicar. Pois ele poderia ter escolhido qualquer outro lugar, já que ele é o autor do universo e tem jurisdição em toda a sua extensão.

Todavia, ao mandar para o mesmo planeta os anjos rebeldes e depois colocar nele as suas criaturas modelares, Jeová Elhoin assumiu o risco. E esse risco nós o entendemos bem porque é exatamente o que nós mesmos fazemos colocando nos mesmos presídios os celerados de toda ordem, sem aquilatar os graus de maldade que cada um hospeda em suas miseráveis almas. Daí decorre que as prisões, que deveriam servir de locais de purgação para os crimes que uma pessoa comete acaba retroalimentando ainda mais a criminalidade.

E o resultado é esse que nós estamos vendo.