Há dois anos...
Se deixo errar meus pensamentos, não encontro ninguém. O melhor, afinal de contas é a morte.
(Lou Andreas-Salomé)
A manhã estava fria. Árvores sem folhas, sons de corvos e nuvens cinzas carregadas. O inverno entrou em seu ápice. Brumas entre as paisagens que cercam meu vilarejo. Cheiro de morte, de velhice e de isolamento. Meu corpo acorda cansando de alguns anos de vida. Sou escritor, não de poesias, nem de romances... Sou um ser que fabula. Escrevo a vida. Acho que já vivi muito e tenho memórias de quem viveu mil anos! Parece uma frase dita por Baudelaire, mas saiu assim... Sempre gostei de ler.
Preciso sair... Comprar o pão exige coragem para enfrentar esse frio nórdico. Acho que vou ter uma crise de faringite! Não sei... Moro sozinho há anos e tenho como amigo meu gato, Miuzo. Vida vazia... Completamente distante do mundo. Quem sabe alguém por aí perca alguns segundos lembrando de mim ou do que restará de mim algum dia. Você pode até me chamar de pessimista, no entanto, é o que espero dos outros e da vida. Vida sem muitas emoções ou histórias, porém rica em imaginação que foi mergulhada na tinta que deito agora no papel. A pesar de tudo, como já disse, tenho milênios vividos na minha memória. Alguns me acham estranho, mas não sou não, apenas tenho preguiça de pessoas, de iniciar novas histórias e de mudar meu estilo de vida tão meu. Às vezes viver freneticamente dói!
Finalmente, saí. O frio me acompanha. O padeiro falou comigo, deu-me o melhor pão do dia e ofertou-me o seu sorriso. Passo rapidamente os olhos na decoração da padaria e vejo alguns cartazes de antigos filmes com Brigitte Bardot e Jeanne Moreau, um pouco déplacé para o tipo de comércio, mas enfim, cada um tem seus gostos e escolhas. Percebi que havia doces saborosos enfeitando as prateleiras, contudo nunca me dei a esse prazer. Os doces sempre me atraíam, me seduziam como uma linda moça virgem caminhando com seus lindos pés nus na areia da praia, mas sempre comprei apenas o pão. Por quê? Sei lá, pão é algo que agrada o paladar e a visão, enquanto que os doces, assim como a linda moça, não passam de ilusões e prazeres carnais. E, também, convenhamos que sou do tipo que nunca muda de hábitos, coisa de gente quase velha... Nada muda de lugar, nada de mudar a marca dos produtos ou mudanças de hábitos. Tudo deve ser e estar como quero e como gosto... Pintados e paralisados como quadros! Miuzo sabia muito bem como era nossa vida juntos.
Ao chegar em casa, apenas o gato me esperava, cortei minha fatia de pão, tomei meu café e fui ver o jornal. O que vi me desagradou. Estou tão entediado, sem ânimo para escrever hoje. O papel me parece estranho e a caneta, uma inimiga mortal. Adoro canetas, faço até coleções delas, assim como as de tintas coloridas e as de penas antigas. Acho que caneta é um objeto refinado, culto, expressivo, grandioso e letal. Ela é um objeto símbolo de poder. Não que as minhas sejam as mais caras do mundo, mas são caras no sentido do apego e do sentimento, posto que elas carregam, uma por uma, um pouco de mim, de minhas impressões digitais, de meu DNA. Além disso, meu pensamento inteiro foi traduzido em palavras por elas. O fato é que desde ontem sinto palpitações e um mal estar descendo cabeça abaixo. Algo que parece medo ou pressentimento. Deve ser o clima? Não sei. A gente, às vezes, não se adapta fácil às estações, mesmo tendo nascido em uma delas. Eu sou complicado, já dizia minha mãe. Prefiro sempre a primavera ao inverno, pois é doce e há flores e cores.
Olho pela janela, desligo a tv, sento-me na poltrona de couro cru marrom que foi presente dos meus avós paternos ao meu pai. Deste último não me restam lembranças, nem boas nem ruins. Há livros por toda parte, mas não tenho vontade de lê-los agora. Tenho vontade de dormir, mesmo não fazendo nada que requeira esforço, me sinto cansando. Não posso dizer que seja a idade, pois ainda sou demasiadamente jovem, pelo menos para me aposentar. De lembranças e tédio, compus várias obras literárias, entre contos e fábulas infantis. Sei que o que sou está exposto em minha escrita. Tenho plena consciência de que o inspetor careca e bigodudo do Comissariat de police de Brezolles que bisbilhota minhas coisas neste exato momento não encontrará nada que desabone a minha ética e a minha biografia: duas palavras que se encontram na moda neste século. Vejo que mexem em tudo, reviram meus livros, minhas gavetas, meus armários. Nem meu banheiro fedido escapou. Lembro também que eu tinha roupas sujas para lavar, mas não deu tempo. O cheiro de morte rondava por toda a casa, que já não era limpa há muito tempo. Sei que ele vai descobrir que, em vida, eu tinha a síndrome de Diógenes, pois adorava colecionar fotos, em demasia, de atrizes internacionais, e não era apto para faxinas cotidianas. Havia fotos em todo lugar, do quarto ao banheiro, mas eu não era um tarado sexual, apenas gostava de vê-las olhando para mim de modo que eu precisava dos olhares femininos para existir. Daí a bagunça, a casa de vilarejo era uma espécie de testemunha do tempo, pois datava do século XVII, herdada de pai para filho, logo necessitava sempre de reformas. Eu não ligava para isso, já que, para mim, ter um teto, um métier e comida todo dia eram o mais importante.
Lembro que dormi sentado depois do café da manhã e não acordei nunca mais... Ainda procuro entender o que se passou: se fui assassinado ou se tive uma morte natural. Tudo o que sei é que se passaram dias, meses, anos! Coisas do mundo moderno que nos assustam, mas que um dia acabam: cortaram meus rendimentos e as contas mensais da casa não tiveram saldo suficiente no banco para serem pagas no débito, isso tudo exatamente esse mês. Foram anos de economias e privações. Outrora, economizara muito para uma velhice tranquila, mas morri, deixando assim uma boa quantia para minhas contas e para o Fisco francês. Deste modo, uma vez deixando de serem pagas as contas, sentiram a minha falta e prestaram queixa à polícia. Por isso, exatamente hoje, vieram encontrar meu corpo ressequido como uma múmia sentado em uma poltrona de couro diante de uma janela. É lógico que dizer corpo é tentar personificar um ser que um dia viveu.
O fato é que morri há dois anos e mesmo tento escrito várias obras, ninguém veio a minha procura ou sentiu a minha falta durante todo esse tempo. Tudo ocorreu assim: Senti-me mal, uma sonolência me pegou e dela não consegui mais sair. Sabia que ainda estava vivo, mas meu espírito foi me abandonando aos poucos sem reação alguma. Teria sido eu envenenado? Ou foi morte natural? Apesar de tudo isso, o mais impressionante é que, nesse sono estranho, ainda pude sonhar. E foi no sonho que rememorei as viagens que fiz por lugares incríveis na França, em Portugal, na Suíça, Bélgica, Itália e Brasil. Senti penetrar no meu corpo e na minha memória a doçura do meu lado mais humano: minha infância, as viagens com meus pais e meu primeiro amor. Depois, senti meu corpo enfraquecendo, os órgãos vitais parando, assim como a vontade pelas coisas vai parando quando se acha que vai morrer. Um vazio profundo tomou conta de mim nesse dia. Minha memória foi falhando e meu coração engessando friamente. Tinha vontade chorar, mas os olhos estavam secos e não consegui sair do sono. Era como se eu visse minha vida e minha morte e, por isso, estou aqui para denunciar. No íntimo, percebi ainda dormindo que era o fim de alguém inexistente ao mundo.
No jornal do meio-dia e nos «faits divers» estão as notícias do achado do meu corpo: um corpo não procurado, não desejado, não explorado, não amado por ninguém. Um corpo lembrado apenas pelas suas faturas mensais e pela sua conta corrente...vazia. Dois anos foram necessários para que eu tivesse direito à uma sepultura, à uma notícia de jornal nas páginas policiais, ao meu nome na mídia local e, infelizmente, fiquei mal falado na boca do povo. Fui o assunto no vilarejo inteiro. Nem sei se isso me reconforta, mas ao menos fui encontrado. Quero dizer... o que restava de mim foi encontrado. Regozijo-me por isso, pois quantos já partiram assim sem que seus corpos sejam encontrados. Posso dizer agora que tenho orgulho de poder ficar, enfim.... deitado, pois dois anos sentado em uma poltrona de couro cru foi, talvez, o maior castigo que tive enquanto cadáver. Miuzo, a solidão, o anonimato e o isolamento foram meus únicos companheiros de vida, no entanto, o sonho e os olhares femininos saindo das fotos coladas nas paredes foram os únicos que velaram meu corpo após minha doce e silenciosa passagem. Tenho certeza de que Miuzo, por não ter mais comida, abandonou-me também. Se pelo menos esses olhares pudessem falar à policia sobre o que me ocorreu. Se eles pudessem testemunhar algo... Espero que a polícia forense descubra efetivamente de que fui vítima, pois, somente descansarei quando souber de que realmente eu morri. Por enquanto, aguardo o sepultamento do meu corpo com a presença do coveiro e da polícia e observo o que dizem os moradores da região, pois esperar é o que mais sei fazer.
Autora: Cristiane Grandinot é doutora em Estudos Lusófonos pela Université Sorbonne-Nouvelle Paris 3 e professora de Língua e Literatura da Rede de Educação Básica do Estado do Ceará.
Instagram: @cristianecls
Facebook: Cristiane Grandinot
E-mails:cris_francesa28@hotmail.fr /crisfrancesa@gmail.com