Pra lá da risca de giz

- Bom dia, diz a mulher, ele não responde.

Toma café, vê as últimas mensagens do Grupo no celular, levanta-se, volta ao quarto. Em seguida, sai armado - a arma é registrada, está dentro da Lei, quem vai proibir?

- Vamos acabar com a ditadura!

Na porta de casa, diz palavrões, diz bom dia, cita a Bíblia com voz possante:

- "Ele jamais nos abandonará e o fez entregando o próprio Filho Jesus à Cruz por todos nós; fê-Lo para que possamos viver a verdadeira vida na felicidade da vida eterna prometida… "

Faz uma risca de giz em frente da casa, conforme viu no Grupo:

- Vou dar o exemplo, já esperei muito...

A mulher vê seu rosto transtornado, o marido passa mais tempo no Grupo do que com ela, filhos e netos. Salta a risca de giz e começa a atirar para a frente, para o alto, para o chão. Transeuntes correm para todos os lados. Alguns poderiam até ser seus companheiros de luta no futuro, mas não pode esperar mais: alguém tem que começar. Então é ele que vai começar, vai se imolar como o Filho do Homem, dá o exemplo. Seus descendentes sofrerão, mas a Redenção terá começado, ninguém pode ser egoísta.

A mulher, a filha e os netos o chamam, tentam impedir, não conseguem. Atirou, matou e se matou. Um parente atribuiu ao Grupo parte da responsabilidade por seu desequilíbrio, mas parou por aí.

A polícia encontrou um trecho de oração escrita por mão trêmula e o levou como elemento de investigação: "Demo-nos sempre ao Criador em sua vontade, pois Ele jamais nos abandonará e o fez entregando o próprio Filho Jesus à Cruz por todos nós; fê-lo para que possamos viver a verdadeira vida na felicidade da vida eterna prometida".