Silêncio no desembarque

O Embraer E-Jet E75S decolou às 10:47 a.m. As condições de voo incluíam nuvens esparsas, velocidade do vento em torno de quatro nós nordeste e visibilidade de 10 milhas.

Essa aeronave foi o palco que o acaso escolheu para o reencontro de um homem e uma mulher que um dia se amaram.

O señor, um viticultor chileno com traços andinos, olhos esbugalhados e portador de uma heterocromia severa, era um dos 77 passageiros do voo de Newark para Montreal. Ele ocupava a poltrona 7B, no corredor.

A madame, uma marroquina lindíssima, esguia, olhos castanho-escuros, cabelos brancos presos em um coque elegante, era a chefe dos comissários de bordo.

Ambos estavam na casa dos 70 anos.

O señor e a madame, dois jovens estudantes na Universidad de Chile, um dia se encontraram em uma sala de aula e se apaixonaram. Durante o relacionamento, de apenas algumas semanas, ela engravidou. Ele não queria ter aquele filho; ela, sim. Preocupado com a carreira e sob forte pressão dos pais, ele a abandonou. Sophie, o rebento, passou a infância e parte da adolescência em abrigos para menores infratores mantidos pelo estado e na fase adulta, se tornou uma ladra de joias e objetos valiosos bem sucedida. Da mãe, herdou apenas o hábito de usar o relógio no pulso direito.

De volta ao presente. Durante o voo de pouco mais de uma hora, a madame passou pelo señor diversas vezes, sem o notar (ao menos, pareceu assim). Ao contrário dela, ele a observara, não apenas uma vez, mas sete vezes. Por que ela havia passado por ele tantas vezes sem o olhar?

“Seria possível?” — o señor se perguntou. — “No puede ser” — concluiu.

O voo transcorreu normalmente, exceto por uma forte rajada de vento a poucos metros da pista de pouso.

Um minuto antes da aterrissagem, a voz suave da chefe dos comissários anunciou a chegada ao destino:

“Mesdames et Messieurs, bienvenue à Montréal. Veuillez rester assis avec votre ceinture de sécurité attachée jusqu'à ce que l'avion soit complètement à l'arrêt et que le signal lumineux de la ceinture soit éteint.

(Senhoras e senhores, bem-vindos a Montréal. Por favor, permaneçam sentados com o cinto de segurança afivelado até que o avião esteja completamente parado e o sinal luminoso do cinto esteja apagado.)

“É ela?” — o señor se perguntou.

“Veuillez faire attention en ouvrant les compartiments à bagages au-dessus de vos têtes, car des objets peuvent avoir bougé pendant le vol. Merci d'avoir choisi de voler avec nous et nous espérons vous revoir bientôt.”

(Por favor, tenha cuidado ao abrir os compartimentos de bagagem acima de suas cabeças, pois os objetos podem ter se deslocado durante o voo. Obrigado por escolher voar conosco e esperamos vê-lo novamente em breve.)

— Sí, es ella — concluiu, afastando qualquer dúvida sobre quem era a madame.

Já no solo, os motores do avião foram desligados, e os passageiros começaram a formar fila no corredor para o desembarque.

A chefe dos comissários, em pé à porta da aeronave, seguia o protocolo ao cumprimentar os passageiros que desembarcavam, expressando um agradecimento formal:

“Merci d'avoir voyagé avec nous. Au revoir et bon séjour!”

Cada cumprimento, mesmo gentil, refletia uma profunda exaustão. Seu olhar, perdido, não se fixava em passageiro algum. A expressão de seu rosto não revelava apenas cansaço físico, mas também resignação e tristeza.

O desembarque estava prestes a ser concluído. Restavam apenas dois passageiros na fila: um africano idoso e o señor.

O africano tinha cicatrizes ao redor dos olhos e em cada face do rosto. Estava vestido em um manto longo azul-claro adornado com um cravo fresco na lapela que esbanjava elegância. A chefe dos comissários repetiu, sem hesitação, o cumprimento para ele (“Merci d'avoir voyagé avec nous. Au revoir et bon séjour”) e recebeu dele beijos soprados no ar.

Na sua vez de receber os cumprimentos, o señor se deteve diante dela, olhando em seus olhos à espera de algum sinal de reconhecimento. Silêncio. Nada.

Decepcionado, talvez até indignado, ele se dirigiu a ela:

— Hélène, sou eu, Martín — disse ele, com a voz entrecortada.

Ela desviou o olhar para o relógio no pulso direito, demonstrando impaciência, sem se preocupar com o que Martín pensaria dela. “Será possível que ele não percebeu o quanto eu o desprezo, mesmo eu tendo o ignorado durante todo o voo?”, pensou ela, embaraçada. Sem responder, Hélène, desfez o coque, dirigiu-se à cabine do piloto e lhe deu um beijo na boca. Para ela, o voo NX 717 havia chegado ao fim.

Abalado, ele desceu do avião, cambaleante, e viu o africano, elegante e altivo, que caminhava à sua frente virar-se e olhá-lo com frieza. Foi então que aquele passageiro incomum (um imperador africano?) ergueu o braço direito formando um ângulo reto com o antebraço, recolheu quatro dos dedos da mão direita, deixando apenas o médio ereto, e o apontou para ele. Sem entender este gesto de desprezo, o segundo em poucos minutos, o señor se voltou para si mesmo, resignado.

“Teria Hélène o reconhecido e mesmo assim o ignorado? Será que o tempo havia apagado de sua memória as lembranças dos momentos em que se amaram?”

Imerso nesses pensamentos, Martín seguiu em direção ao carro onde a esposa e dois netos o aguardavam, e viu mais uma vez o africano acenar para ele, desta vez do banco de trás de uma Rolls-Royce com uma bandeira nacional da Etiópia na frente.

Fazia frio e nevava naquele Natal em Montreal.

Lysandra Verdanis
Enviado por J P Berlin Jr em 06/09/2024
Código do texto: T8145743
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