Último crepúsculo

Fazia muito frio em Toronto naquela tarde de inverno. A temperatura estava vários graus abaixo de zero. Nas ruas, viam-se pessoas vestidas com grossos casacos de lã, acompanhados por cachecóis, luvas e gorros para se protegerem do vento gelado e cortante. No dia anterior, Emily e Connor estavam entre elas.

Emily, uma analista financeira franzina e sete anos mais jovem do que Connor, era casada com um empresário local bem-sucedido e levava uma vida feliz. Na adolescência, dedicou-se ao tênis de mesa, chegando a ser premiada na escola secundária. Sempre gostou de finanças, desde quando trabalhava como analista de crédito e risco para um banco em Xangai.

Connor, um arquiteto de meia-idade com porte atlético, era um viúvo que carregava o amargor da insatisfação com a profissão e a vida. Havia praticado remo na juventude, sem se destacar, mas manteve o hábito de se exercitar até o dia em que sua esposa faleceu, há 17 anos, vítima de um câncer fulminante. Nunca mais se casou. Desde então, ele foi tomado pelo sedentarismo, uma rotina que só mudou quando conheceu Emily.

Os dois se conheceram no Haven on Yonge, um aconchegante bar da Yonge Street. Nos primeiros encontros, a atenção de Emily era dividida entre Connor e Jack, um indígena norte-americano torcedor fanático do Blue Jays, com quem teve um relacionamento conturbado no passado. Jack dizia ter trabalhado como segurança em diversas estações de metrô em New York City e Jersey City. A partir do rompimento, ela passou a sentir medo dele.

Com o passar do tempo, os laços de amizade entre Emily e Connor se estreitaram e, logo descobriram residirem perto um do outro, a poucos metros do Eaton Centre. Foi então que um dia, na busca de privacidade, Emily teve a ideia de convidar Connor para uma caminhada. Ele aceitou o convite. Saíram do bar antes que o crepúsculo envolvesse a cidade e caminharam ao longo de boa parte da Yonge Street.

No outro dia, repetiram a caminhada e combinaram novos encontros, desta vez, partindo da Yonge-Dundas Square. Essa rotina saudável ajudava a superar o estresse do dia a dia em uma cidade agitada.

Durante o percurso, Connor tinha o hábito de observar os imponentes edifícios e comentar para Emily sobre suas estruturas, tecendo críticas e elogios com a precisão de um técnico bem formado. Enquanto ele observava os prédios, ela demonstrava um entusiasmo sincero em ouvi-lo.

O bar dos primeiros encontros era um ponto de parada obrigatória, um oásis no meio do retorno da caminhada. Naquele horário, Jack não estava mais lá, o que enchia o coração de Connor de alegria. “Há algo muito estranho com esse cara”, pensava. O prédio preferido de Connor, o mais alto da rua, com um lindo terraço na cobertura, ficava perto.

— Olhe para o Eclipse Tower. Às vezes, me pergunto se há alguma estrutura que possa ser tão impressionante quanto essa — disse Connor certo dia, enquanto caminhavam com cuidado pela calçada escorregadia.

— De fato. Mas o que te fascina tanto nele? — perguntou Emily, olhando para cima, admirando a silhueta elegante daquele prédio envidraçado contra o céu.

— Para começar, a combinação do design moderno com a robustez. Cada linha, cada ângulo, tudo parece tão meticulosamente pensado. E as cores? Ah, as cores! — respondeu Connor, com os olhos brilhando.

— Às vezes me pergunto se você não está procurando algo que nunca encontrará. Parece que a análise dos prédios é uma busca inconsciente pelo significado de algo escondido em sua alma — disse Emily, com um sorriso compreensível, mas enigmático.

— Procurando algo? — inquiriu Connor, surpreso.

— Outro dia você fez críticas ácidas contra um deles. A paixão pode ser um peso às vezes — acrescentou, notando um pouco de cansaço nos olhos dele.

— Você tem razão. Por vezes, sinto como se estivesse em busca de algo que nem eu mesmo sei o que é. Mas é difícil para mim ignorar a beleza e a complexidade da arquitetura — disse Connor, com humildade.

— Eu entendo. Todos nós temos nossas paixões. No passado, o tênis de mesa me dava uma sensação de realização. Mas agora, são a economia e as finanças. Lidar com dados complexos e analisar o impacto que geram nas decisões empresariais, me fascina — comentou Emily, acariciando suavemente o braço dele.

— É verdade. Você manteve essa determinação e esse entusiasmo pelo que faz. Eu não. Vez por outra me pergunto se algum dia encontrarei essa mesma paixão na minha profissão — confessou Connor, com a voz carregada de dúvidas.

— Não se preocupe tanto com isso. A vida está repleta de surpresas e reviravoltas — respondeu Emily, colocando a mão no ombro de Connor em um gesto de solidariedade.

— Tomara que você esteja certa — disse Connor, sem conseguir disfarçar sua tristeza.

— Quem sabe, talvez essas caminhadas nos levem a descobrir algo novo, algo que nem imaginávamos encontrar — concluiu Emily, entrelaçando seu braço com o dele. (Ela estava prevendo que alguma coisa importante iria acontecer em breve?)

Retornando àquela tarde fria, o passeio começou de maneira inesperada: um dos dois não apareceu. O vazio ao lado de quem estava presente fazia o frio parecer ainda mais cortante, aumentando o nível de inquietação.

Caminhar com um ritmo mais lento do que o habitual provocava mais inquietação. “Seria apenas um atraso da companhia de tanto tempo?)”, se perguntou. Enquanto o silêncio da tarde era interrompido pelo som distante de sirenes e pelos murmúrios de pessoas passando, uma sensação de desconforto começou a crescer. Foi então que gritos quebraram o silêncio, e uma onda de pessoas correndo tomou as ruas.

Um acidente de carro? Um furto frustrado pela polícia? Uma criança desaparecida? Foi quando, ao desviar o olhar para o tumulto, avistou alguém caído, metade do corpo na calçada e a outra metade no asfalto. Com o corpo congelado, sua alma foi tomada pelo medo. “Meu Deus, ali, tão perto de mim, há um cadáver!”, pensou.

Afastando os curiosos que acionavam seus celulares com frenesi, aproximou-se do cadáver coberto por um manto preto, notando que tinha sido deixado por um jovem calvo e barrigudo acompanhado de uma jovem com uma tiara adornada com lacinhos, enquanto sangue escorria pela canaleta. Levantou o manto por uma das extremidades e soltou. Em seguida, dirigiu-se ao outro extremo e repetiu a ação, deixando à mostra por uns segundos o rosto da vítima que havia minutos antes tirado a própria vida pulando da cobertura do majestoso Eclipse Tower.

Naquele momento, a rua movimentada e todos os elementos que lhe eram familiares durante as caminhadas (o One Bloor; o Massey Hall; o College Park;…), se transformou em um cenário de desolação. O céu escuro pareceu mais distante e o ar que respirava, ofegante, se tornou ainda mais gelado. O caminho para casa, que antes era compartilhado com Emily, agora estava vazio, para sempre, deixando em Connor apenas memórias e uma tristeza que se misturavam com o som dos cochichos dos curiosos e das sirenes.

Depois de se erguer com esforço, Connor, ofegante e confuso, avistou um vulto familiar tentando se esconder entre os curiosos do outro lado da rua. Seguindo seu instinto, Connor começou a persegui-lo, mas não teve tempo de alcançá-lo; durante a perseguição sofreu um enfarte na calçada, em frente do Haven on Yonge.

Caído no chão, Connor reuniu suas últimas forças e, com a voz fraca e carregada de desprezo e revolta, dirigiu suas últimas palavras ao fugitivo que, agachado, tentava recuperar o boné do Blue Jays perdido na fuga: “Jack, seu verme, por que você fez isso? Entre Emily e eu havia apenas uma amizade. Você matou Emily por ciúmes.”

Lysandra Verdanis
Enviado por J P Berlin Jr em 06/09/2024
Código do texto: T8145737
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